“Sergio Leone – O italiano que inventou a América”: poeira, cowboys e arquétipos do leão do cinema italiano

“Enquanto o Western norte-americano era um mito, o Western italiano era um mito sobre outro mito.” - Christopher Frayling, autor e historiador britânico.
11 de julho de 2023
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"Sergio Leone - O italiano que inventou a América": poeira, cowboys e arquétipos do leão do cinema italiano 1
No original, ˜Sergio Leone - L’italiano che inventò l’America˜. Foto: divulgação.

Sergio Leone foi um dos mais famosos diretores italianos de todos os tempos. Ainda menino ficou muito encantado pelos filmes de Western de John Ford, que também inspiraram Akira Kurosawa com seus épicos de samurais, os quais voltaram a inspirar Leone que por sua vez, se tornou o pai do estilo de anti-heróis com humor e coração que inspirou desde Star Wars aos arquétipos levados ao limite por Quentin Tarantino nos anos 90 e 2000. Eis que com ele surge um movimento 19cinematográfico cíclico de inspiração entre uma vasta comunidade de criadores dos quais muitos deles prestam sua homenagem ao diretor nesse filme dirigido e roteirizado por Francesco Zippel (Oscar Micheaux – The Superhero Of Black Filmmaking /2021) e produzido pelas filhas de Leone – Raffaella e Francesca. O documentário conta com materiais raros de arquivo da Cineteca di Bologna, além de gravações de áudio, entrevistas e imagens de bastidores das gravações de diversos de seus filmes icônicos e teve sua première mundial durante o Festival de Cinema de Veneza em agosto de 2022.

Zippel conseguiu reunir depoimentos de atores como Jennifer Connelly, Robert de Niro e Clint Eastwood, diretores como Dario Argento, Darren Aronofsky,Martin Scorcese, Steven Spielberg, Giuseppe Tornatore e Quentin Tarantino familiares como seus filhos Francesca, Raffaella e Andrea, amigos e jornalistas. Sergio Leone era um homem de família, e sua família incluía, em grande parte, seus colegas de trabalho e funcionários. Ele era descrito como um tipo bonachão, ranzinza, muito confidente e expansivo e com uma criatividade e produtividade incrível.

Durante sua carreira, Leone teve acesso aos atores mais famosos e festejados de sua época. Italianos ou americanos. Trabalhou com Henry Fonda, Charles Bronson, Clint Eastwood, Eli Wallach, Claudia Cardinale, Jennifer Connelly e colheu o respeito e admiração de todos. O “leão” não tinha um temperamento fácil, segundo consta, mas era paternal e muito acolhedor com seus atores e colegas.

Recheado de inúmeras entrevistas, o documentário coloca a visão de vários diretores sobre Leone, o diretor Martin Scorsese, por exemplo, define o western spaghetti de Leone como o encontro da comédia italiana (commedia dell’arte) com odisseias épicas e um puro modernismo cinematográfico. Clint Eastwood se tornou seu arlequino mais famoso, e o ator relembra no documentário momentos pitorescos de suas interações com o diretor e como os seus filmes o elevaram ao status de grande estrela do cinema. Para Quentin Tarantino, Leone é o começo do cinema moderno, o elo entre o cinema clássico e o futuro. Já Steven Spielberg comenta o óbvio – os Westerns de Leone não eram filmados nos USA, Sergio então tira o foco do fundo, da paisagem e o coloca nos rostos de seus personagens. Leone conseguiu criar o seu próprio universo que funciona perfeitamente. Como Kurosawa, Leone bebeu na fonte dos westerns norte-americanos de John Ford dos anos trinta e deu a eles a visão particular do Leste global.

Segundo o cartunista Frank Miller (Sin City) Sergio Leone transforma a câmera no protagonista com seus movimentos giratórios, close ups e takes longos presos às expressões faciais dos atores, como no duelo final do sensacional The Good, The Bad and The Ugly (1966). A tensão é construída em perfeita parceria com a espetacular música de Ennio Morricone – cuja excelente biopic foi lançada em 2021 e, de certa forma, é uma obra complementar a essa sobre o festejado diretos – eliminando a necessidade de diálogos.

Ennio e Leone formaram a parceria perfeita, uma quase fusão de dois grandes talentos, que fica evidente em momentos como Charles Bronson transformando uma gaita harmônica em protagonista no filme Once Upon A Time in the West (1968).  A música e o som surgem substituindo diálogos, conversando com a audiência e servindo de evocação a relevantes momentos dramáticos. Nessa obra, entre outros amigos, Leone contou com a colaboração de Bernardo Bertolucci e Dario Argento na produção. Once Upon A Time in the West é considerado o apogeu do gênero criado por ele e que tornou Sergio mundialmente famoso. Uma obra-prima nos mínimos detalhes, das atuações à cenografia, música e sonoplastia. Sérgio, Bernardo e Dario escreveram o roteiro juntos em encontros que duraram apenas 3 meses. Bernardo e Dario, por exemplo, foram os responsáveis pela criação e caracterização da protagonista de Claudia Cardinale, uma mulher no centro de um mundo duro é implacável povoado em sua maioria por homens.

A manufatura de seus filmes contava sempre com a parceria de amigos íntimos em um elo forte de lealdade. Segundo suas filhas Francesca e Raffaella esses amigos, fora dos sets de filmagem, tiravam férias com a família Leone e frequentavam ostensivamente a casa de Sergio. Como Enzo de Liberto, que era o técnico responsável pela peculiar e divertida sonoplastia dos filmes de Leone e o engenheiro de som Fausto Ancillai. Leone criou uma revolução expressiva nos gêneros em que trabalhou. Humor, drama, tensão e violência convivem harmoniosamente durante a jornada dos seus anti-heróis. Nas palavras de Spielberg “Leone sabia criar solidão e isolamento com o uso pontual de efeitos sonoros”. Sergio também colocava um peso grande na expressividade do momento, na intensidade de uma cena, mesmo que essa não se tratasse de nenhuma ação indispensável para a trama, ele trouxe recursos da Literatura considerados infilmáveis ou ineficientes para as telas, suas histórias também não eram apressadas e seus finais, nem sempre definitivos e plenamente satisfatórios, para ele “a história deveria respirar por si mesma’.

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Mas a obra de Leone não se reduziu aos Westerns “espaguete”, após uma pausa de mais de uma década ele retorna com o projeto para Once Upon a Time in America (1984), com Robert De Niro no papel principal, para nos contar uma grande saga de imigrantes nos EUA, onde explora temas como amizades de infância, amor, ganância, traição e relacionamentos rompidos, juntamente com a ascensão de mafiosos na sociedade americana. Sergio Leone por ele mesmo: “Eu sou muito teimoso e obstinado, eu faço os filmes que quero fazer. Preciso amar um filme visceralmente para fazê-lo.” As tentativas de produzir Once Upon A Time in America foram exaustivas e sua criação levou décadas. Leone teve as primeiras inspirações para o filme em 1968 ao visitar os EUA, a partir dali ele desenvolveu frame por frame toda a história em seus mínimos detalhes.

Porém, apesar de sua grandeza no mundo cinematográfico, ele só conseguiu realizar esse projeto em 1984. Sergio Leone recusou, entre vários outros trabalhos, a direção em O Poderoso Chefão, baseado na obra de Mario Puzo sobre a máfia italiana nos EUA. Sergio já tinha pronta na cabeça a sua epopeia pessoal, que tinha seu foco na comunidade judaica de Nova Iorque e não na italiana. Ele não aceitava substitutos. O filme era seu sonho. Era sua declaração de amor pessoal ao cinema norte-americano.

 O terno filme montado por Zippel termina em uma homenagem linda ao perguntar aos entrevistados o que gostariam de dizer hoje a Leone. Steven Spielberg foi um dos que não economizou em reverência: “Ninguém nunca fez filmes como ele, nem antes e nem depois. Ele descobriu uma marca, uma forma de contar histórias que nenhum outro diretor chegou nem perto. Eu agradeço a ele por tantas ideias transmitidas por seus filmes, as quais eu pude adaptar e transformar em minhas próprias ideias. Eu sempre olharei para Leone como o gigante em cujos ombros eu pude me apoiar.”

O documentário Sergio Leone – The Italian Who Invented America esteve em cartaz no programa do 8½ Festa do Cinema Italiano no Brasil, em final de junho e aguarda lançamento nos cinemas nacionais.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

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