A ideia que colou: os selos postais, a filatelia e o pioneirismo brasileiro 1
Selos postais brasileiros com diversos motivos ao longo do tempo. Acervo: Museu Correios, Brasília.

A ideia que colou: os selos postais, a filatelia e o pioneirismo brasileiro

O Brasil foi o segundo no país no mundo a adotar o selo portal para todo o seu território, o que despertou o interesse no colecionismo e na imprensa especializada na área.
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O selo postal é uma invenção inglesa. Em 1840 foi lançado o primeiro selo do mundo, estampando a efígie da Rainha Vitória. A iniciativa foi de Rowland Hill, responsável da Coroa britânica pelas reformas postais, e tinha o intuito principal de facilitar e baratear as comunicações à distância feitas por cartas. A ideia envolvia o pagamento adiantado da taxa do transporte da correspondência pelos correios (chamada “porte”) e, para isso, Hill sugeriu a utilização de um “papel selado”, que seria carimbado para provar o pagamento pelo remetente. Até então, não existiam comprovantes das taxas das cartas e nem ao menos um padrão para o pagamento do serviço, sendo possível cobrar tanto de quem enviava quanto de quem recebia a carta.

O Brasil não ficou muito atrás. O país foi o segundo a adotar o selo postal para todo o seu território, indicando que a absorção das reformas inglesas no sistema de correspondência foi feita de maneira rápida pelo Segundo Reinado. Em 1º de agosto de 1843, como consequência de uma série de transformações no sistema postal, entraram em circulação no Brasil os selos posteriormente conhecidos como “olhos de boi”.

Para além de mero comprovante fiscal, os selos sempre buscaram também passar uma mensagem para quem os via, e isso era feito pelas escolhas da imagem. Estampar reis e rainhas era uma forma de levar o poder da Coroa a todos os territórios da monarquia alcançados pelos serviços postais. Era, portanto, uma maneira de o monarca se fazer presente, mesmo em sua ausência física, por meio de uma imagem, um símbolo. Mas, com o tempo, os selos postais começaram a representar outras temáticas, especialmente as ligadas aos considerados grandes marcos das histórias nacionais, tornando-se uma forma de fazer propaganda política e produzir imaginários sobre a história de um povo.

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Os selos postais, contudo, jamais foram apenas um veículo de propaganda ou a solução para um problema de taxação comercial. Esses pequenos pedaços de papel ilustrado se tornaram objeto de inúmeras coleções. Estão presentes em coleções privadas e nas organizadas pelo Estado. Fazem parte de exposições museológicas, arquivísticas e de bibliotecas. Chamam a atenção de quem vê não só pela distinção gráfica, mas também pela história que ajudam a contar. O colecionismo de selos postais é chamado de filatelia

Filatelia: o gosto de colecionar selos

Embora seja difícil precisar uma data exata para o surgimento do colecionismo de selos, sabe-se que este passatempo já era bem conhecido em alguns grupos sociais na Inglaterra nos anos 1860. Ou seja, a filatelia é tão antiga quanto os próprios postais.

A prática colecionista é bastante antiga, mas ela se tornou realmente popular apenas na Era Contemporânea. Isso tem a ver com a Segunda Revolução Industrial, na segunda metade do século XIX. A produção em massa de objetos abre novas possibilidades para o hábito de colecionar. O desejo e a guarda de certos itens produzidos em série se torna cada vez mais comum e acessível nessas sociedades industrializadas, uma vez que a coleção poderia ser formada de objetos relativamente baratos. Esse é o caso do selo postal, produzido graças às transformações das técnicas de imprensa. Colecioná-los, para uma pessoa dessa época, poderia significar guardar uma prova dessa mudança. Além disso, são desejados por serem itens produzidos em todo canto do globo, em países com sistemas postais organizados. Ter selos dava ao colecionador a sensação de conhecer o mundo.

 “Guardo essas pequeninas figuras por dois motivos: primeiro para aprender as diversidades dos desenhos e o sistema de impressão nos diversos países, e, em segundo lugar, porque sempre gostei de colecionar toda sorte de objetos, que me proporcionam matéria de meditação para preencher as horas de lazer”, registrou certa vez o filatelista Thomas Corbald.

Jornais e revistas de filatelia: a voz dos colecionadores

A construção da identidade coletiva dos filatelistas foi feita de diversas maneiras ao longo do tempo, como a partir de encontros periódicos entre os colecionadores, a criação de clubes e sociedades filatélicas, organização de exposições de selos. Outro meio de divulgação de ideias em comum e regras sobre o colecionismo foi a imprensa especializada. Por meio de jornais e revistas, filatelistas descobriam quais selos eram lançados no mundo, como os comprar, além de se comunicarem por meio da publicação de suas cartas.

O início da imprensa filatélica ocorreu em nosso país em São Paulo, no ano de 1882. O primeiro veículo especializado nos selos postais chamava-se O Brazil Philatelico. Editado por Luiz Levy, ele teve periodicidade mensal e contou apenas com três edições.

Levy pertencia a um ambiente de letras da elite urbana paulista. Era filho de imigrantes franceses, que se estabeleceram em São Paulo a partir de uma casa comercial de instrumentos musicais. A loja da família também contava com um café, onde se reuniam homens de letras e estudantes da Faculdade de Direito. Portanto, Luiz foi formado em gostos e costumes da moda europeia adotados no Brasil, associado ao modo de viver urbano que então se construía. Certamente, o apreço pela música, por reuniões em cafés, por leitura de livros e periódicos faziam parte dessa cultura compartilhada. Um desses novos costumes da elite urbana era justamente a filatelia. Mas seu interesse na construção de um veículo ligado a filatelia tem a ver também com o contexto maior da época, marcado pelo crescimento dos serviços de correios e pela introdução do telégrafo, que tornaram mais veloz a distribuição (e o consumo) de notícias e de impressos.

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Selo conhecido como “olho de boi”. E aí, para você, lembra mesmo um olho de boi? Acervo: Museu Correios, Brasília.

O primeiro número de O Brazil Philatelico conta com uma justificativa da existência do periódico, ligando-o justamente aos novos costumes urbanos, e entendendo-a como sinônimo de “bom gosto” e “progresso”, ou seja, como uma prática típica de sociedades “civilizadas”. Levy destaca como grandes cidades do mundo, sobretudo da Europa e dos Estados Unidos, possuem sociedades filatélicas. Por isso, o hobby também deveria ser adotado no Brasil, como uma forma de garantir o “progresso” cultural do país:

“Quando nas principais capitais do mundo civilizado como Paris, Londres, Nova York, Berna, Leipzing, Bruxelas, Viena, Valparaíso e em muitas outras cidades existem jornais desta ordem e mesmo Sociedades filatélicas que se dedicam unicamente a fazer conhecer o estudo da filatelia seria desleixo, se nós brasileiros não consagrássemos também um para um assunto pouco conhecido entre nós, porém que mais dia, menos dia se tornará fonte de importante estudo”.

História Política (e dos “homens ilustres”)

Outra utilidade dos selos e da filatelia, segundo Levy, diz respeito ao conhecimento histórico que poderia ser adquirido pelos selos. Muitos selos, como vimos, destacavam estadistas, acontecimentos e outros elementos da política. Em um entendimento acerca de história bastante típico do século XIX, Levy aponta a importância dos selos para o conhecimento biográfico de “figuras ilustres”, considerados os grandes nomes da história. O selo postal seria uma forma de conferir eternidade a essas personalidades, funcionando como verdadeiros monumentos. Inclusive, Levy chega a comparar os selos postais às estátuas.

O editor se utiliza de uma noção homogeneizante de cultura, associando-a a ideia de progresso. A questão fica perceptível também quando olhamos para as imagens dos selos que esta elite colecionava. Estampados, estavam reis, rainhas, homens brancos ligados à política. Era o que se entendia, a partir de uma perspectiva elitista, como bom gosto e alta cultura, e como a verdadeira história a ser divulgada. Não havia espaço, nesse contexto, para divulgação da cultura e história de camadas subalternas da sociedade. A própria filatelia, como podemos perceber pelos periódicos especializados, era praticada por pessoas da elite, alinhadas a este pensamento. Ou seja, apesar de o selo ser um objeto produzido em massa e com potencial de grande circulação e aquisição pela população de modo geral, o hábito de colecionar e suas regras intrínsecas eram compartilhadas por um grupo social bastante restrito.

As publicações se multiplicam

Nos primeiros anos da República no Brasil é lançada uma nova revista filatélica: O Collecionador de Sellos. De fôlego mais longo do que O Brazil Philatelico, suas edições mensais foram lançadas entre 1896 e1899. Seu editor e principal redator era Raul Paula Remijo de Bellido, que também fazia parte de um círculo urbano e letrado, com tendências republicanas que explicam seu gosto pela imprensa e pelo colecionismo de selos postais.

Bellido foi um dos fundadores do “Club Republicano Marechal Deodoro”, em 7 de abril de 1890, e um dos organizadores do Derby-Club. Seu entusiasmo republicano fica bastante claro ao longo das edições de O Collecionador de Sellos, onde aparecem informações sobre sua amizade com Silva Jardim e Nilo Peçanha, amigos com quem teria sofrido “desacatos e injustas perseguições promovidas pelos chefões monarchistas daquella epocha”.

Na primeira edição de O Collecionador de Sellos, o leitor é informado que o periódico é “órgão do Club Philatelico Sorocabano e da Secção do Brazil, do Club dos Collecionadores de Sellos de Berlim”. Percebe-se aí a importância da atuação de imigrantes alemães para a divulgação da filatelia em solo brasileiro.  São Paulo se torna polo de florescimento da filatelia porque o Estado passa a receber, a partir de meados do século XIX, um número significativo de imigrantes.

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Primeiro centenário do selo no Brasil foi comemorado no regime Vargas, em meio a Segunda Guerra Mundial. Acervo: Museu Correios, Brasília. 

A necessidade da filatelia é atrelada à sua utilidade para a educação pátria e mundial, como “hobby científico” e de divulgação de efemérides históricas e construção de sentimentos nacionais. Bellido afirma que a revista existia “para concorrer, na medida de nossas forças, para o engrandecimento geral da Philatelia e, em particular, para o desenvolvimento nesta cidade, uma das mais adiantadas do nosso prospero Estado”. É perceptível o entendimento de progresso contido nestas palavras, considerando Sorocaba uma das cidades mais adiantadas de São Paulo. Este adiantamento/progresso, vislumbrado pelo redator como fruto da proximidade com europeus, ajuda a entender o florescimento da filatelia em terras paulistas. Além disso, Bellido segue afirmando que a revista deverá ser construída com o esforço de todos aquelles que se interessam pelo progresso da nossa sciencia no Brazil. Mais uma vez, há alusão à ciência e progresso, tal qual entendidos no ambiente de elite da Primeira República.

Ao se utilizar de argumentos que conectam filatelia ao estudo da geografia e da história, as revistas e jornais de filatelia revelam o interesse coletivo despertado dentre os colecionadores para a guarda de selos postais. Em um mundo percebido como cada vez mais veloz e conectado, tanto pelo serviço postal como o telegráfico, passou a fazer sentido, para este grupo, guardar a comprovação material desse tipo de conexão para, a partir dele, conhecer o todo, o global, ou seja, a totalidade dos países e suas características, principalmente políticas (tipo de governo e governantes).

Conhecimento não tão universal assim

Os filatelistas buscavam atingir um conhecimento entendido por eles universal do funcionamento do mundo contemporâneo e de todas as suas novidades: maior circulação de correspondência e ligação dentre vários países, o tipo de regime político dos Estado-nação, novas técnicas de impressão, dentre outros. Tudo isso, acompanhado do conhecimento de imagens que revelavam características das tradições nacionais inventadas por cada país. Contudo, o “conhecimento universal” aclamado pelos filatelistas era, na verdade, bastante particular e divulgador de ideias relacionadas a grupos de elite e do Estado republicano que então se formava em fins do século XIX e início do XX.

No caso do Brasil, esses conhecimentos estavam ligados a um projeto particular de formação da nacionalidade brasileira, de um cidadão-modelo, letrado e conhecedor dos principais acontecimentos históricos do país. É possível perceber, pela observação das imagens dos selos e pela leitura de periódicos de filatelia, que, durante muito tempo, não houve espaço para a divulgação de singularidades regionais e culturas subalternizadas, tudo em prol de uma educação homogeneizante.

Referências

ALMEIDA, Cícero Antônio F. de; KARP, Pedro Vasquez. Selos postais do Brasil. São Paulo: Metalivros, 2003.

BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa (Brasil – 1800-1900). Rio de Janeiro: Mauad X, 2010.

BELLIDO, Raul Paula Remijio de. O Collecionador de Sellos. Ed. Fac-similar. Volumes. 1 a 4. Sorocaba: Club Philatelico Sorocabano, 2004.

BURKE, Peter. Testemunha Ocular: o uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Editora Unesp, 2016.

BELK, Russell. Collectin in a Consumer Society. Nova York: Routledge, 1995.

BLOM, Phillip. Ter e manter: uma história íntima de colecionadores. São Paulo: Record, 2003.

LEVY, Luiz. O Brazil Philatelico. São Paulo, Ano I, n.1 ao 3. 1882. Acervo Museu Correios.

Como citar este artigo

GUAPINDAIA, Mayra Calandrini. A ideia que colou: os selos postais, a filatelia e o pioneirismo brasileiro (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-ideia-que-colou-selos-postais-filatelia-brasil/. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 15 Abr. 2024.

Mayra Calandrini Guapindaia

Graduada (2009) e Mestre (2012) em História pela Universidade de Brasília. Doutora em História pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no Programa Interuniversitário de Doutoramento em História (PIUDHist). É pesquisadora de história na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) desde 2011. Possui interesse nas áreas de Brasil Colonial, História dos Correios, História do Gênero e História da Educação .

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