“EO”: uma odisseia em quatro patas

Tragédia e morte seguem EO por onde ele passa, numa fábula que, se não for sobre a trágica condição humana, é sobre a necessidade de tratarmos melhor os animais.
26 de março de 2024
"EO": uma odisseia em quatro patas 1
Filme é co-produção Itália e Polônia. Foto: Mubi.

Quatro anos atrás, nossas vidas mudavam repentina e profundamente – para sempre. A pandemia da Covid-19 pegou a todos de surpresa e, entre lives de música e idas ao supermercado regadas a álcool gel na volta, fomos nos adaptando como podíamos, pouco a pouco construindo um “novo normal”. Algumas mudanças vieram para ficar – e algumas são até positivas. Tomemos como exemplo as iniciativas de difusão cultural de filmes, tão necessárias para manter a sanidade durante o isolamento. Uma destas iniciativas ainda resiste, trazendo filmes fora do eixo de Hollywood: trata-se da plataforma Cinema em Casa com Sesc.

Apresentando-se como uma plataforma de filmes escolhidos por curadores, na qual toda semana tem novidade e os filmes têm data limite para serem assistidos, o Cinema em Casa com Sesc traz sempre uma variada coleção de títulos intrigantes. Um deles, saindo de cartaz em junho próximo, é o polonês “EO”, ganhador do Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 2022.

O cinema sempre deveu muito ao circo, seja com personalidades saídas do picadeiro – como os nossos Mazzaropi e Oscarito –, seja como tema para películas, a exemplo das muitas referências circenses nas obras do mestre Federico Fellini. EO, quando o filme começa, é um burro de circo que, num número de luzes ofuscantes, divide o picadeiro com Kasandra, nome artístico da jovem Magda (Sandra Drzymalska). Um dia, em meio a um protesto contra o uso de animais no circo, EO é levado embora como pagamento de uma dívida.

EO é levado primeiro para um estábulo cheio de cavalos, depois para uma fazenda de burros visitada por crianças com deficiência. Magda o reencontra e celebra o aniversário de EO, e depois desta visita curta o animal foge, embrenhando-se na floresta e passando pelas cidades, em busca de sentir o toque carinhoso de Magda mais uma vez.

O burro não é nenhum grande ator – certamente não do cacife de Messi, astro-cão de “Anatomia de uma Queda” que foi inclusive destaque no Oscar – mas parece demonstrar emoções graças a algo chamado de efeito Kuleshov. Este efeito ocorre com a inclusão de imagens contextuais antes de uma imagem estática, para que esta – geralmente um rosto humano ou animal de expressão neutra – pareça reagir às imagens que a precederam, gerando a sensação de que há uma emoção estampada na imagem estática. A partir deste efeito, EO reage ao mundo ao seu redor, com uma ocasional lágrima artificial estrategicamente posicionada, segundo as imagens que vêm antes do plano fílmico mostrando um dos seis burros que “interpretaram” o protagonista.

É praticamente impossível assistir a “EO” sem se lembrar de “A Grande Testemunha”, título dado no Brasil ao francês “Au Hasard Balthazar”, feito em 1966 por Robert Bresson. Ambos têm em comum o estilo minimalista adotado ao seguir um burro pela vida afora, embora o filme de Bresson toque em temas mais profundos, como espiritualidade, sendo apontado por alguns como uma alegoria dos sete pecados capitais. A homenagem ao filme francês é confirmada pelo próprio realizador, que afirma que “A Grande Testemunha” foi o único filme que o levou às lágrimas.

Salta aos olhos a idade avançada do diretor: quando “EO” estreou, Jerzy Skolimowski tinha 84 anos. Desde sua estreia na direção em 1960, ele já fez mais de 20 filmes, e trabalhou para além do cinema com pintura. Skolimowski assina a direção, o roteiro e a produção de “EO” que, além do supracitado prêmio em Cannes, foi escolhido como um dos dez melhores filmes de 2022 pela revista Cahiers du Cinéma e foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional, perdendo para “Nada de Novo no Front”.

É dado destaque para todos os sons produzidos pelos animais, do relinchar do garboso cavalo à mastigação do nosso amigo burro. São eles, os personagens de quatro patas, mais importantes que os seres humanos na narrativa. Prova disso é que acompanhamos os dramas dos humanos apenas quando EO entra na vida deles e paramos de acompanhá-los quando ele sai – assim mesmo, sem contextualização e sem desfecho. Não nos importa o destino daquelas pessoas, sequer o da mulher interpretada pela prestigiada atriz Isabelle Huppert. Viemos por causa de EO, vamos acompanhar sua história. 

Tragédia e morte seguem EO por onde ele passa, numa fábula que, se não for sobre a trágica condição humana, é sobre a necessidade de tratarmos melhor os animais. Os ativistas no início do filme queriam dar uma vida mais digna aos animais de circo, mas isso definitivamente não acontece com EO. Nós simpatizamos com ele, e sofremos também com ele. Para acalmar nossos corações, resta a frase ao final da projeção: “nenhum animal foi ferido durante a realização deste filme”.

Letícia Magalhães

Historiadora e crítica de cinema. Contribuiu com sites como Filmes e Games e Leia Literatura. Mantém desde 2010 o blog Crítica Retrô, sobre filmes clássicos e antigos, e contribui para os sites Revista Eletrônica Ambrosia e Cine Suffragette, no qual é também editora. Foi vencedora do prêmio do Collegium do Festival de Cinema Mudo de Pordenone em 2021, escrevendo sobre o que mais gosta: cinema e história.

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