Ocorreu na manhã desta quarta-feira, no Plenário do Senado Federal, em Brasília, uma disputada sessão especial organizada para comemorar o Dia do Senado e os 200 anos da Assembleia Constituinte e Parlamentar. O ato é resultado de um requerimento do Senador Rogério Carvalho (PT-SE). Numa mesa socialmente pouco representativa, estiveram presentes o senador Rodrigo Pacheco (PSD-RO), o ex-presidente José Sarney, o senador Randolfe Rodrigues (REDE-AP), o Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, o Procurador-Geral da República Augusto Aras, o Senador Rogério Carvalho PT-SE) e Leandro Grass, presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan. O deputado federal Lafayette Andrada (Republicanos-MG), encarregado da missão parlamentar sobre o bicentenário da Constituinte de 1823, também falou na plenária.
Além de políticos, repórteres, servidores, membros do Ministério Público Federal, membros de corpos diplomáticos de vários países, assessores parlamentares, professores, ministros e representantes da sociedade civil, a plenária estava repleta de alunos dos Colégios Marista João Paulo II, Objetivo e Adventista, que acompanhados de seus professores participaram de atividades especiais na casa. A seção começou por volta das 10h e terminou pouco antes das 13h. A sessão foi gravada e pode ser vista na íntegra aqui, no canal do Senado Federal no YouTube.
A Assembleia Constituinte de 1823
A Assembleia Geral, Constituinte e Legislativa de 1823 foi a primeira experiência parlamentar brasileira, instalada em 3 de maio de 1823, no prédio da Cadeia Velha, histórico edifício no Rio de Janeiro. Ela ocorreu quando o Brasil tinha apenas 8 meses de independência de Portugal. O Brasil, segundo dados do site do Senado Federal, tinha à época cerca de 4,5 milhões de habitantes, assim distribuídos: 800 mil índios, 1 milhão de brancos, 1,2 milhão de negros escravizados e 1,5 milhão de mulatos, pardos, caboclos e mestiços.
A primeira e a mais importante missão desta Assembleia era elaborar uma Constituição. Na época, a constituinte conseguiu reunir 84 de seus 100 deputados, oriundos de 14 províncias, todos pertencentes à elite econômica e política. Esses parlamentares, à luz das ideias e revoluções liberais que vinham acontecendo na Europa, discutiram temas como a divisão dos três poderes, a liberdade religiosa, a liberdade de imprensa, a presunção da inocência e a criação de universidades.
Jose Bonifácio chegou a formular uma Representação seguida de um projeto para a abolição do tráfico, melhoramento da sorte dos escravos, e extinção da escravidão, mas nada disso foi levado para Constituinte, porque a Assembleia foi dissolvida em 12 de novembro de 1823 por D. Pedro I, que não aceitou a tentativa de redução de seu poder. Os deputados que resistiram ao golpe foram presos, exilados ou deportados. Logo depois desse episódio autoritário, o Imperador nomeou um Conselho de Estado com a finalidade elaborar uma Constituição. Esse novo processo político foi altamente excludente e centralizador. Em 1824, D. Pedro I outorgou a primeira carta constitucional brasileira, que lhe deu amplos poderes, por meio do chamado “Poder Moderador”.
Ao Café História, a historiadora Neuma Brilhante, professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Brasil Império, falou sobre a Assembleia Constituinte de 1823. Segundo Brilhante, aqueles primeiros debates parlamentares ocorreram de forma ora conservadora, ora progressista, sobretudo no que tange à escravidão:
“A escravidão não foi nem colocada como uma questão. De modo algum se cogitou a possibilidade de uma Abolição, nem mesmo algum tipo de regulamentação da relação entre senhores e pessoas escravizadas. A famosa Representação do José Bonifácio ia neste sentido, inclusive muitos elementos que Bonifácio traz no texto dele a gente vai encontrar 1870 com a Lei Rio Branco, conhecida como Lei do ventre Livre, mas lembremos que essa Representação nem chegou a ser apresentada na Assembleia Constituinte, porque ela foi fechada antes. De forma geral, quando a questão era escravidão, adotou-se muito claramente por um silêncio. Em termos de avanços, por outro lado, a Assembleia Constituinte considerou os africanos libertos como cidadãos brasileiros. Essa foi uma pauta defendida de uma forma muito forte por José da Silva Lisboa, o Visconde de Cairu. Ele acabou convencendo as pessoas que participaram do debate desta ideia, que foi aprovada pela Assembleia Constituinte. Isso vai sumir, porém, da Constituição de 1824. Esses escravizados são considerados estrangeiros. Aliás, no que diz respeito a esse caso de pessoas libertas, é importante lembrar que não havia na época qualquer interferência do Estado em relação à propriedade de escravizados. Estamos falando de pessoas que, por uma escolha de seus senhores, conseguiram liberdade e, agora, buscava-se entender o status destas pessoas no Brasil independente”.
Elogios ao parlamento democrático
Na sessão especial desta terça-feira, os participantes da plenária relembraram os principais eventos referentes à instalação da Assembleia em 1823, e destacaram a importância de um parlamento forte e independente para a democracia. Rodrigo Pacheco, que é Presidente do Senado, destacou que o parlamento brasileiro deve superar a desigualdade social e outros problemas brasileiros graves, além de ter o dever de trazer o cidadão para dentro do debate político. “A luta inaugurada pela Assembleia Constituinte de 1823 continua nos inspirando”, declarou no encerramento de sua fala.
O senador Rogério Carvalho, propositor da sessão especial, disse que o parlamento é “símbolo da resiliência politica no país”. Ele disse ainda que, “não fosse esta casa parlamentar, talvez não tivéssemos um país de dimensões continentais”.
O senador Randolfe Rodrigues foi na mesma direção, dizendo que a Assembleia de 1823 foi indispensável para a formação do Brasil. O senador, que é historiador de formação, disse ainda que o Parlamento tem sido palco de “debates históricos acirrados”. Gilmar Mendes, representando o STF, lembrou os debates paramentares que o então senador Paulo Brossard, jurista e professor universitário, travou na casa, em meados dos anos 1970. “O maior orador que já vi, que produziu peças importantíssimas para aquela travessia”, referindo-se a abertura democrática. Já Aras sublinhou que “a Assembleia Geral e Constituinte Legislativa do Império do Brasil, instalada em 3 de maio de 1823, é monumento expressivo e singular da evolução dos tempos, do poder do Parlamento, que qualifica desde sempre os rumos e a vocação permanente da nossa história constitucional.”
A fala do ex-presidente José Sarney foi a mais longa. Em uma fala que durou cerca de 30 minutos, Sarney, aos 93 anos, que estreou na vida política do país há 68 anos, quando, em 1955, se tornou, aos 25 anos, deputado federal, quando a Câmara dos Deputados ainda funcionava no Palácio Tiradentes, no Rio de Janeiro, relembrou em detalhes a instalação da primeira Assembleia Constituinte, destacando vários “oradores” e “vultos” da vida política brasileira da época, como José Bonifácio.
A fala mais contundente e progressista da manhã ficou por conta de Leandro Grass, também historiador de formação. Grass ressaltou que o 8 de janeiro de 2023, quando vários prédios públicos em Brasília foram invadidos e depredados por golpistas, deve ser visto como um capítulo da história brasileira, com muitos outros marcados pela violência, relembrando invasões de terreiros, invasões de comunidades indígenas, a escravização, a violência contra a mulher e a ditadura militar.
Vários oradores citaram historiadores em suas falas, mas quase todos do século XIX, o que ajuda a explicar, em vários momentos da sessão especial desta manhã, uma história marcadamente conservadora, tributária do ponto de vista das elites da época. Essa visão já foi, em muitos aspectos, superada pela historiografia contemporânea. A exceção à regra foi Randolfe Rodrigues, que citou estudos do historiador Luis Fernando Saraiva, professor do Instituto de História da Universidade Federal Fluminense (UFF), e Gilmar Mendes, que citou José Honório Rodrigues (1913-1987).
Repúdio aos atos golpistas
Em praticamente todas as falas, os oradores repudiaram os acontecimentos do 8 de janeiro de 2023. Pacheco chamou os invasores das autarquias de “extremistas” e de membros de uma “horda” que deixou um “rastro de destruição patrimonial” em Brasília. O presidente do Senado sublinhou, contudo, que as instituições democráticas foram firmes e deram uma reposta: “não ao golpismo”.
Senador Rogério Carvalho, por sua vez, declarou: “na data de hoje devemos comemorar a resiliência histórica desse Poder que sempre se colocou como um instrumento contra o arbítrio e os excessos. Não podemos deixar de mencionar as cicatrizes na nossa democracia depois dos ataques de 8 de janeiro. Mas nem mesmo a violência desses atos será capaz de retirar nossa esperança em um país melhor. Diante desse graves fatos, o Parlamento se reafirma e ressurge como arena política. Fora da política há apenas a barbárie, como vimos recentemente”.
Já Rodrigues defendeu que “nunca mais poderemos viver sob a égide do autoritarismo”. Relembrando Brizola, disse: “Temos ódio e nojo à ditadura”. Sarney também falou sobre os acontecimentos do início deste ano, o que lhe rendeu aplausos dos presentes. “Os ataques do oito de janeiro envergonham o país. É algo que não pode se repetir jamais”.
Aras, ainda que breve, disse que precisamos ter uma “democracia baseada na racionalidade, e não na violência”. Leandro Grass, além de situar o 8 de janeiro em uma genealogia da violência do Brasil, agradeceu os servidores do Senado, que estavam cuidando e recuperando o patrimônio histórico da casa, e destacou que além da parte física, o que mais precisáramos recuperar agora seria o “sentimento de pertencimento da sociedade brasileira à sua memória e história”.
“Falas do Trono”
O evento no Senado também marcou o lançamento de uma nova edição das “Fallas do Throno”, nome de uma compilação de discursos históricos proferidos pelos imperadores, Dom Pedro I e Dom Pedro II, e pelos Regentes nas reuniões de abertura e encerramento do ano legislativo da Assembleia Geral Legislativa Brasileira. A nova edição é uma série dividida em 4 volumes e traz as respostas dos parlamentares aos discursos dos imperadores. Desde 2014, a série Falas do Trono, cujos originais estão sob a guarda do Arquivo Histórico do Senado Federal, faz parte do Programa Memória do Mundo da Unesco, que identifica conteúdos com valor de patrimônio documental da humanidade.
A série é um projeto da historiadora e mestre em gestão da informação e conhecimento Rosa Vasconcelos, ex-chefe do Serviço de Arquivo do Senado, com a jornalista Virgínia Galvez, ex-diretora da Secretaria de Comunicação Social, ambas servidoras do Senado.
— A obra foi concebida para trazer à população esse rico material, com a facilidade de compreensão a partir da divulgação do contexto em que ocorriam essas discussões. Assim, colabora para que se compreenda a grandeza do Senado desde suas origens, e a importância do trabalho legislativo desenvolvido pelo Parlamento brasileiro a partir da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa de 1823 — ressalta Rafael Chervenski, diretor da Secretaria de Editoração e Publicações do Senado (Segraf), responsável pela editoração da obra.
A coleção está a venda na versão impressa, na livraria do Senado, mas poderá ser baixada em breve e gratuitamente, em versão PDF, no site da Biblioteca do Senado Federal.