“O Milagre”: feridas expostas sem cerimônias

"O Milagre é um belo estudo de mais um efeito nocivo do patriarcado, o principal responsável pelo longo rol dos abusos aplicados de forma sorrateira e covarde às mulheres."
15 de dezembro de 2022
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“The Wonder” é uma adaptação do romance de mesmo nome de Emma Donoghue. Crédito: Aidan Monaghan/Netflix.

Baseado no romance homônimo de Emma Donoghue o filme conta a história de Lib Wright, uma enfermeira inglesa com experiência de trabalho em guerra, que é contratada em 1962 por um grupo de conselheiros de um vilarejo na Irlanda para acompanhar o caso da menina Anna O’Donnell. Anna afirma estar há 4 meses sem comer e se alimentar apenas do “Manah” divino. Lib, juntamente a uma freira, tem a tarefa de examinar e monitorar a menina para descobrir o que verdadeiramente está acontecendo com ela. Os religiosos fervorosos do local, entre eles os pais de Anna, enxergam nela um milagre e defendem sua santificação. Já os médicos e o jornalista William Byrne (Tom Burke) acreditam em uma farsa bem montada pela família O‘Donnell.  “The Wonder” (“O Milagre”, em português), é um filme que se desenvolve lentamente e é centrado nas figuras interpretadas por Florence e Kíla. O roteiro foi desenvolvido pela própria autora Donoghue, pelo diretor Lelio, e por Alice Birch (Lady MacBeth). 

Florence Pugh (Midsommar) interpreta Lib de um forma bastante intensa. A enfermeira luta contra perdas pessoais dramáticas mas as enterra atrás de sua devoção à profissão e pelo carinho que passa a desenvolver por Anna (Kíla Lord Cassdy). Uma relação de confiança se constrói aos poucos entre Lib e Anna. Pugh está extraordinária nesse papel, a forma como se dedica a seus personagens a colocou, atualmente, na posição de uma das atrizes mundialmente mais requisitadas. Apesar de sua juventude – tem 26 anos – ela já acumula um bom número de prêmios internacionais, entre eles o British Independent Film Award e o Chopard Award em Cannes.

O diretor Sebastián Lelio (Disobedience) é bastante experiente em dramas, não raramente, com finais trágicos. Seu tratamento ao roteiro estimula o expectador a criar suas próprias teorias sobre o desfecho da obra. Caminhamos junto com Lib nessa jornada dentro de uma comunidade conservadora, até para os padroes do séc. XIX, marcada por um comportamento religioso fervoroso e infectada pelo pensamento mágico como subterfúgio às verdades doloridas de uma realidade que pune e oprime as mulheres por crimes que essas nunca cometeram. 

As feridas abertas de Lib nos são expostas sem cerimônias, o seu sofrimento, apresar de silencioso, transcende as imagens e nos contamina. Sentimos a dor de Lib assim como sentimos a dor de Anna em sua jornada de autopunição. As figuras masculinas, não raramente, assumem a posição de meros julgadores e observadores dos comportamentos femininos. Pastores e médicos, apesar de discordarem em se tratando do aproach ao caso, não veem problema algum em transferir a culpa de sua inação e negação às mulheres. Mais uma vez estamos diante de uma obra onde o conceito da “bruxa pecadora” nos é apresentado, mesmo nas cenas mais sutis.

A fotografia e os cenários nos remetem à Irlanda sofrida, ainda lutando contra a miséria e a escassez a mais de década após os anos da Grande Fome (1845-49). A inglesa Lib come com vontade e vorazmente enquanto os irlandeses são modestos em seu apetite, quase que como um forma de constante penitêcia cristã. A gula, esse pecado capital, é uma inconveniência, uma forma de desafiar e debochar da virtude cristã da abstenção.

Algumas decisões criativas talvez tenham sido bastantes previsíveis, apesar de calcadas em reações humanas reais diante de situações de abuso. Não somos agraciados com uma narrativa absolutamente original, mas o trabalho extraordinário das atrizes compensa eventuais tropeços. O Milagre é um belo estudo de mais um efeito nocivo do patriarcado, o principal responsável pelo longo rol dos abusos aplicados de forma sorrateira e covarde às mulheres.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

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