São Paulo: de adversário a aliado de Getúlio Vargas

Antagonistas em 1932, paulistas fizeram parte da base do governo de 1934 até 1937, sendo fundamentais para que Vargas derrotasse opositores e pudesse dar o golpe de Estado que deu origem ao Estado Novo.
15 de agosto de 2022
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Vargas em campanha com o povo: a face política e popular. Foto: Arquivo Nacional.

O feriado de 9 de julho, em São Paulo, em memória da Revolução Constitucionalista de 1932, é um exemplo de como a oposição dos paulistas a Getúlio Vargas ficou marcada na memória popular: a luta em favor do retorno do país à ordem constitucional e ao legalismo democrático são representados como uma “batalha justa” contra o autoritarismo de Vargas.

Porém, a verdade é que as coisas não são tão simples. Vargas não tem mesmo muitos lugares de memória em São Paulo. Mas uma leitura atenta da história mostra que, ao contrário do que se pensa, São Paulo, após os conflitos de 1932, foi um aliado importante e fundamental para que Vargas conseguisse se fortalecer no poder entre 1934 e 1937. E esse “apoio paulista” foi tão importante que possibilitou, inclusive, que o presidente conseguisse meios para dar o golpe de Estado que deu início à ditadura do Estado Novo.

Depois da guerra, o acordo e o apoio de São Paulo ao presidente

Logo após o final da guerra civil, travada entre tropas paulistas e tropas federais, de julho a outubro de 1932, começou a corrida eleitoral para a escolha dos representantes populares que tomariam posse na Assembleia Nacional Constituinte (ANC) e criariam a nova constituição brasileira. Esse momento marca o fim da força do tenentismo no governo Vargas. Diversos partidos políticos foram fundados visando às eleições de 1933. Entre eles, nasceu o Partido Constitucionalista (SP), tendo como nome forte o novo interventor federal no estado, Armando de Sales Oliveira, que conquistou 22 das 34 cadeiras paulistas na ANC.

Em julho de 1934, criada a constituição e eleito Vargas como novo presidente – em votação indireta, realizada pelos deputados constituintes, com mandato previsto até início de 1938 –, iniciou-se uma relação forte de São Paulo com o presidente da República. A parceria começara a ser negociada entre Sales, Vargas e outras importantes figuras bandeirantes como Cardoso de Melo Neto, líder da bancada do Partido Constitucionalista, alguns meses antes. Preocupado com a repercussão do fato, Vargas chegou a escrever em seu diário que a costura dessa nova aliança deveria ser feita com discrição, para não gerar problemas antes de sua conclusão.

Por fim, ao anunciar seu novo ministério, Vargas homologou a nova relação com São Paulo, dando aos paulistas duas posições de enorme destaque no governo: o Ministério da Justiça, assumido por Vicente Ráo, e o Ministério das Relações Exteriores, que passou a ser comandado por José Carlos de Macedo Soares. Alguns jornais deram grande destaque ao fato. O Diário da Noite, do Rio de Janeiro, por exemplo, colocou em primeira página uma charge, de autoria do grande desenhista Alfredo Storni, em 26 de julho de 1934, mostrando Vargas caminhando de braços dados com os dois citados. Estava selada a aliança.

A fundamental atuação paulista em favor de Vargas

O apoio de São Paulo a Vargas garantiu a ele ampla maioria nas votações no Congresso Nacional. O Partido Constitucionalista (SP) se juntou ao Partido Progressista (MG) e ao Partido Republicano Liberal (RS), formando um triângulo que seria a base do governo no Legislativo. Em momentos-chave de seu governo, Getúlio Vargas contou com a fidelidade paulista. Podemos citar alguns fatos essenciais:

1) o ministro Vicente Ráo foi fundamental para a repressão contra o movimento operário independente, o que se refletiu na prisão de milhares de pessoas, no ataque a manifestações de rua e na expulsão de militantes estrangeiros do Brasil;

2) Ráo foi também um dos gestores da primeira Lei de Segurança Nacional (LSN) da nossa história. Para relator dessa lei, outro paulista: o deputado Henrique Bayma, também do Partido Constitucionalista. A LSN ampliou o poder do Executivo e possibilitou a Vargas aumentar o controle social;

3) Cardoso de Melo Neto, líder da bancada paulista, em diversas ocasiões discursou a favor do governo Vargas, defendendo o fortalecimento do poder presidencial, a exemplo do que estava acontecendo em países como Alemanha e Itália. Ele e outros dois deputados do partido, Morais de Andrade e Valdemar Ferreira, fizeram 83 discursos a favor do presidente ao longo de 1935. Respectivamente 32, 28 e 23 vezes cada.

Para trazer um exemplo: em discurso no dia 23 de fevereiro de 1935, Melo Neto subiu à tribuna da Câmara dos Deputados e defendeu “um Estado que amplia as suas funções”. Afirmou que “o direito do Estado deve prevalecer sobre o direito do indivíduo”. Esse portentoso discurso pode ser lido, atualmente, na íntegra, online, no Diário do Poder Legislativo.

Ao mesmo tempo, o Estado de São Paulo, jornal que foi uma das vozes paulistas na guerra de 1932, em 1934 mudou seu discurso e prestou ampla solidariedade a Vargas. A oposição local, em especial os representantes do Partido Republicano Paulista (PRP), em diversas vezes questionou a aliança com o presidente. Em resposta a eles, o “Estadão” disse que defendia estritamente os interesses de São Paulo e que, se em 1932 havia razões para ser oposição a Vargas, em 1934 já não havia, pois o presidente estava “fazendo a nossa política” – essas linhas podem ser lidas na edição de 22/07/1935.

O fim da aliança e o golpe de 1937

Os anos de 1934 a 1937 foram fundamentais para que Getúlio Vargas, mesmo em pleno governo constitucional, obtivesse os meios que o fortaleceram e possibilitaram articular um golpe de Estado. A Lei de Segurança Nacional foi o primeiro desses meios, sancionada em abril de 1935. Depois, logo após as revoltas de novembro de 1935 – popularmente conhecidas como Intentona Comunista –, o presidente obteve da Câmara a decretação do Estado de Sítio em todo o território nacional e a reforma da Constituição e da própria LSN, enxertando nelas dispositivos que facilitaram ainda mais a repressão. Em março de 1936, foi aprovado pelos deputados a equiparação do Estado de Sítio ao Estado de Guerra. Em todos esses momentos, o Partido Constitucionalista não só votou a favor do governo como defendeu tais mecanismos.

Assim, o estado mais forte economicamente da federação e com enorme projeção política esteve ao lado do presidente durante todo o processo em que Vargas foi retirando os direitos individuais e coletivos e desmontando a normalidade democrática que vigorava desde julho de 1934. Ao final de 1936, o governador Armando Sales trabalhava com a possibilidade de obter o apoio do presidente na campanha eleitoral de 1937, visando às eleições presidenciais previstas para janeiro de 1938. Apenas no início de 1937 é que ficou evidente que Vargas não apoiaria os paulistas. Por fim, embora José Américo tenha sido escolhido oficialmente o candidato do governo, foi ficando evidente que, na prática, Vargas não apoiaria ninguém.

O golpe de 1937 e o consequente início da ditadura do Estado Novo reanimou o ressentimento de 1930-1932. Além de não obter o apoio à candidatura paulista, São Paulo acabou impedido até mesmo de disputar a cadeira presidencial. Se em 1930 Washington Luís e Júlio Prestes haviam sido tolhidos pelo movimento que alçou Vargas ao poder, em 1937 foi a vez de Armando Sales ver seus planos inviabilizados.

A partir de então ganhou força mais uma vez o discurso antigetulista que se propagará no pós-1945, perpassará a crise que leva à sua morte e será um dos fatores da perspectiva golpista que se ensaiará em alguns momentos, até se concretizar contra João Goulart, um de seus herdeiros políticos.

Na memória nacional, se propagará a posição paulista de oposição a Getúlio Vargas em 1932, mas essa memória silencia esse ponto importantíssimo de nossa história: São Paulo não só apoiou como foi fundamental para Vargas entre 1934 e 1937. Sem São Paulo, as dificuldades seriam maiores para que o presidente se fortalecesse a ponto de obter meios para concretizar um golpe de Estado.

Referências

MOURELLE, Thiago Cavaliere. “O apoio de São Paulo a Getúlio Vargas em direção ao autoritarismo (1934-35)” in: BRUNO, Daniel Machado; COSTAGUTA, Gabriel Duarte. O Brasil Republicano em perspectiva: diálogos entre a História Política e a História Intelectual. Porto alegre: EDIPUCRS, 2020.

MOURELLE, Thiago Cavaliere. “Guerra pelo poder: a Câmara dos Deputados confronta Vargas (1934-1935)”. Tese de doutorado em História. Universidade Federal Fluminense, 2015. 254 f. Disponível em https://app.uff.br/riuff/handle/1/16011

SILVA, Luiz Sérgio Duarte da Silva. O Enigma dos anéis e dedos: discurso e prática liberal nos anos 30. Goiânia: Editora UFG, 2006.

Como citar este artigo

MOURELLE, Thiago São Paulo: de adversário a aliado de Getúlio Vargas. In: Café História. Publicado em 15 ago de 2022. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/sao-paulo-de-adversarioa-aliado-de-getulio-vargas/. ISSN: 2674-5917.

Thiago Cavaliere Mourelle

Doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Possui Mestrado em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Trabalha como Historiador no Arquivo Nacional, concursado de nível superior, desde 2006, tendo trabalhado na mesma instituição, como estagiário, desde 2002. Editor-científico da Revista Acervo desde 2016. Professor da organização não governamental Educafro, na qual faz trabalho voluntário desde 2003, coordenando a equipe de História do Pré-vestibular Comunitário João Cândido. Foi Professor Substituto na área de Brasil Republicano no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2015-2016. Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Republicano, História do Rio de Janeiro, Período Vargas, Proclamação da República, Primeira República (1889-1930), Período Liberal Democrático (1945-1964), Redemocratização.

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