O julgamento da professora Rosalice Magaldi no Superior Tribunal Militar

Julgamento de professora em 1978, na ditadura, revela como o interesse de empresas multinacionais e a doutrina de segurança nacional orientavam a con-dução dos ministros do Supremo Tribunal Militar.
13 de dezembro de 2022
O julgamento da professora Rosalice Magaldi no Superior Tribunal Militar 1
Rosalice era professora primária da Prefeitura de Volta Redonda e deputada estadual suplente do Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Imagem: colagem meramente ilsutrativa.

No dia 29 de abril de 1976, era presa, com um pacote de panfletos ditos “subversivos”, em Niterói, no Rio de Janeiro, a professora primária da Prefeitura de Volta Redonda, Rosalice Magaldi Fernandes Parreira, que também era Deputada Estadual suplente do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), com mais de 10 mil votos. A prisão de Rosalice às vésperas do 1º de Maio, dia do trabalhador, não foi, contudo, um acaso dos órgãos de repressão.

Segundo o Relatório da Comissão Nacional da Verdade de Volta Redonda, produzido nos anos 2000, a prisão da militante foi efetuada a partir da “Operação 29 de Abril”, planejada com antecedência pelo Estado a fim de deter uma mobilização operária capitaneada por Rosalice em torno dos trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN).

Em conjunto com o departamento trabalhista do MDB, recém inaugurado em Volta Redonda, Rosalice planejava a distribuição do panfleto “Duas palavras sobre tua luta”, no dia 1º de Maio de 1976, data em que o então Presidente-ditador Ernesto Geisel estaria presente na cidade para solenidades e para a reinauguração do Estádio da Cidadania. Neste manifesto Rosalice conclamava a organização dos operários da CSN a partir de comissões de fábrica paralelas à revelia de Waldemar Lustosa, então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos.

Natural de Juiz de Fora, Minas Gerais, Rosalice chegou a atuar na juventude do MDB, bem como editou o jornal Zero Hora, recorrentemente censurado pela Ditadura. A militância de Rosalice vinha de família. Seu pai Othon Reis fora um importante líder sindical na região de Volta Redonda, sendo, inclusive, eleito presidente do sindicato dos metalúrgicos da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) na segunda metade dos anos 1950. Posteriormente, no período da repressão, Othon sofreu perseguições políticas, mudando-se junto com a sua família para a cidade de Niterói, local em que Rosalice foi presa pelas forças policiais.

A ditadura foi fortemente marcada pela repressão policial, mas também manteve um aparato judiciário, diferente de outras ditaduras latino-americanas. Os julgamentos de presos políticos na ditadura brasileira tendiam a passar por duas instâncias: as auditorias militares e, posteriormente, o Superior Tribunal Militar (STM), além de eventualmente o Superior Tribunal Federal (STF). Elas atuaram judicializando a repressão de uma ampla gama de setores da sociedade, e não só da luta armada, como se supõe.

Condenada a mais de um ano de prisão, a professora e deputada recorreu ao Supremo Tribunal Militar. Mas qual foi a base da acusação? O que aconteceu a ela? Teria conseguido a sua absolvição? O que o Supremo Tribunal Militar teria a ver com aquele caso?

O STM e o julgamento de Rosalice

Em outubro de 1965, a Justiça Militar, a partir do Ato Institucional N.2, passou a ter a responsabilidade de julgar civis acusados de crimes políticos e não somente os crimes tipicamente militares. Assim, o STM, que é a segunda instância da Justiça Militar, expandiu suas prerrogativas. É justamente isso o que explica o julgamento de Rosalice, que era civil e não militar. Tendo sido condenada pela primeira instância por 1 ano e 6 meses, Rosalice apelou ao STM. O julgamento final naquela esfera ocorreu no dia 13 de março de 1978.

Rosalice foi julgada na primeira instância pelo Conselho Permanente de Justiça da 2ª Auditoria de Marinha da 1ªCJM, em 23 de junho de 1977. Ela foi condenada incursa no artigo 45, inciso I combinado com o artigo 49, inciso I, do decreto lei 898/1969, que versavam sobre a utilização de meios de comunicação social para propagandear a guerra psicológica adversa ou de guerra revolucionária ou subversiva e o fato de ser funcionário público, respectivamente. Em seguida, após a condenação, Rosalice recorreu a segunda instância, o STM, a fim de pleitear a sua absolvição. Foi um longo e controverso julgamento, com três sessões: a primeira em 22 de fevereiro, a segunda em 3 de março e a terceira em 13 de março, ambos de 1978.

A prisão de Rosalice tinha a ver com os panfletos que foram apreendidos com ela, em Niterói, no dia 29 de abril de 1976, e com os discursos realizados pela professora, um dos quais feito na inauguração de um departamento trabalhista do MDB, em Volta Redonda, que congregava em grande medida trabalhadores da CSN. Rosalice defendia pautas gerais dos trabalhadores da CSN, como a luta contra a defasagem salarial e a oposição à venda de casas da CSN pela imobiliária CECISA. Nada estranho no setor. Mas os militares viam essas pautas com grande preocupação. Rosalice, aos olhos da ditadura, era uma militante subversiva perigosa para a ordem social e também para o desenvolvimento econômico e industrial brasileiro.

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Fonte: Comissão Nacional da Verdade de Volta Redonda

No julgamento de Rosalice, no STM, os ministros oscilaram entre posições que ora apontavam o caráter subversivo dos panfletos, ora o caráter subversivo dos discursos. A primeira tese era de comprovação mais complicada, uma vez que uma ampla jurisprudência consagrava a impossibilidade de condenar os acusados pela simples posse dos panfletos. Seria preciso demonstra que os panfletos fossem, de fato, utilizados para constituir a propaganda subversiva. Essa dificuldade fez com que os ministros, a partir da parte final do julgamento, passassem a adotar um posicionamento que enfatizasse o caráter subversivo do discurso em Volta Redonda.

Nesse discurso, Rosalice tentou mostrar que “as empresas multinacionais para terem mais lucros, impõem que o aço produzido em Volta Redonda, seja o mais barato possível”, questionando o Estado, uma vez que caberia ao empresariado estrangeiro abocanhar as maiores rendas referentes aos setores de alta tecnologia como automobilística e de eletrodomésticos. Ela também defendeu que a precarização do trabalhador da CSN era evidente, pois era preciso sacrificá-los “para dar mais lucros às empresas estrangeiras”.

O Ministro Civil Lima Torres tomou o discurso como exemplo de “incitação à luta de classes”, o que jogaria “o operário contra o capitalista”. Lima Torres, usando também o exemplo dos panfletos, chegou a indagar: “isso não é guerra subversiva? Isso não é guerra?”.

Na audiência, os ministros do STM recorreram frequentemente a termos como “guerra psicológica”, “inimigos internos” e “guerra revolucionária”, próprios da doutrina que mais caracterizou a atuação da ditadura: a Doutrina de Segurança Nacional, surgida na Escola Superior de Guerra (ESG). A DSN pode ser definida, segundo Maria Helena Moreira Alves, como a forma pela qual o Estado, durante a ditadura, vai encontrar a sua justificação, inclusive modificando suas estruturas para lidar com os desafios do desenvolvimento e da segurança interna.

A defesa de Rosalice argumentou que sua prisão foi ilegal, pois a simples posse de panfletos não configuraria um crime conforme o artigo 45, e nem de acordo com a jurisprudência. Seus advogados também alegaram coações físicas e psicológicas a Rosalice durante a fase do inquérito – anos mais tarde ela relataria as duras torturas sofridas no período da sua prisão. A defesa apontou ainda que materiais como faixas foram plantados na casa de seu sogro em Volta Redonda, de forma a incriminá-la. Graças a Comissão Municipal da Verdade, anos depois do fim da ditadura, soube-se que enquanto estava presa e sob condições de tortura, Rosalice era insistentemente chamada a assinar um documento dizendo que essas faixas realmente estavam na casa de seu sogro. Em sua defesa, na época, aturam os senadores Amaral Peixoto e Nelson Carneiro, na qualidade de testemunhas, mas nem isso foi suficiente para evitar sua condenação.

A estratégia não deu certo. Rosalice foi condenada a 1 ano e 2 meses de prisão. Os termos referentes ao conceito diferenciado de guerra utilizado pelo ministro durante o julgamento e também na sentença do STM é exposto no decreto lei 898/1969 ou Lei de Segurança Nacional: “Art. 45. Fazer propaganda subversiva: I – Utilizando-se de quaisquer meios de comunicação social, tais como jornais, revistas, periódicos, livros, boletins, panfletos, rádio, televisão, cinema, teatro e congêneres, como veículos de propaganda de guerra psicológica adversa ou de guerra revolucionária ou subversiva;´´(grifos meus)”

O caso Rosalice mostra, assim, como os ministros do STM eram sensíveis aos interesses das empresas multinacionais instaladas no Brasil e como suas ações tinham por base os princípios da Doutrina de Segurança Nacional. Esses princípios penetravam em diversas instâncias do Estado, como resultado da associação de uma elite que conspirou de forma planejada e detalhada contra o governo de Jango, a partir de órgãos como o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) com os militares da ESG.

Vale mencionar que diversos ministros fizeram os cursos da ESG, sendo o general e ministro do STM na época do julgamento de Rosalice, Augusto Fragoso, por exemplo, um dos precursores do estudo e disseminação da guerra revolucionária francesa na ESG, a partir de 1959, segundo sublinha o historiador João Roberto Martins Filho.O Ministro civil Jacy Pinheiro, nesse julgamento, disse: “eu também fiz o meu cursinho na Escola Superior de Guerra”.

A defesa da ordem do capital invocou, durante a ditadura, o conceito de guerra para defender seus interesses. Essa guerra que não é a convencional, mas uma guerra que tem várias “armas”, como a ação de um tribunal militar para julgar civis, desde o AI-2. O tribunal militar não usa armas convencionais, mas tem seu espaço nessa guerra contra a subversão em defesa das retaguardas do capital. Assim, cabe ressaltar a necessidade de enxergar a história de Rosalice, que sofreu torturas, como abusos sexuais brutais além de ser submetida a geladeira sob o prisma da defesa da ordem do capital multinacional.

Os porta-vozes da ordem do capital, no STM, condenaram Rosalice e passaram por cima das suas torturas sofridas não por um mero autoritarismo, mas sim por interesses de classe, que se processaram desde a atuação da ESG no pré golpe, com a DSN até o golpe civil militar, em 1964, que catapultou a hegemonia doutrinária de defesa da ordem do capital da ESG.

O placar final do julgamento foi de 8 votos pela condenação de Rosalice e 4 votos pela sua absolvição. Evidenciou-se assim que a ditadura agiu de forma implacável contra as movimentações de Rosalice, passando desde a sua condenação no STM, a aplicação de torturas psicológicas e físicas quando da sua prisão, até a impossibilidade de enterrar o seu pai, Othon Reis, no cemitério de Volta Redonda, quando da sua morte em 1971, visto que ele havia sido banido da cidade. Tais acontecimentos se deram fundamentalmente em razão da defesa da ordem do capital processada pelo STM e pela ditadura empresarial militar.

Referências

ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis (RJ): Vozes, 1984

COITINHO, Angélica do Carmo. O Superior Tribunal Militar durante a ditadura militar brasileira. Fundação Getúlio Vargas, 2018.;

DREIFUSS, René. 1964: A conquista do Estado. Petrópolis. Ed. Vozes, 1981

GARRIDO, Ayra. O General Pery Bevilacqua no Superior Tribunal Militar e a transição jurídico-política da repressão (1965-1969). 2019. 153f. Dissertação (Mestrado em História) – UFRJ. Rio de Janeiro

LACERDA, Leandro. Legalidade autoritária, conflitos na caserna e repressão à oposição: Os julgamentos secretos no Superior Tribunal Militar entre 1975 e 1979. 2022. 315f. Tese (Doutorado em História) – Universo. Rio de Janeiro

LEMOS, Renato. Contrarrevolução e ditadura: ensaio sobre o processo político brasileiro pós 1964. Marx e o Marxismo: Revista do Niep- Marx, v.2, n.2, p.112-138, 2014.

SILVA, Angela Moreira Domingues da. Ditadura e Justiça Militar no Brasil: a atuação do Superior Tribunal Militar (1964-1980). Fundação Getúlio Vargas, 2011

Relatório final da Comissão Municipal da Verdade: D.Waldyr Calheiros – Volta Redonda, 2015

Fonte

Ministro Civil Jacy Pinheiro, na Apelação 41.768 (RJ), de 03 de Março de 1978 (áudio). Brasília: Superior Tribunal Militar, trecho contido entre 14:50 e 15:50

Ministro Civil Lima Torres, na Apelação 41.768 (RJ), de 03 de Março de 1978 (áudio). Brasília: Superior Tribunal Militar, trecho contido a partir de 27:22

Como citar este artigo

NASCIMENTO, João Vitor Hugo Menezes do. O julgamento da professora Rosalice Magaldi no Superior Tribunal Militar. (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-julgamento-de-rosalice-no-superior/tribunal-militar. Publicado em: 17 out. 2022. ISSN: 2674-5917.

João Vitor Hugo Menezes do Nascimento

Licenciado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente é professor de História da educação básica e mestrando em História do Programa de Pós Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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