Os povos indígenas no contexto da Independência

Em entrevista ao Café História, a historiadora Vânia Moreira (UFRRJ) sublinha: “creio que as novas investigações sobre a participação dos indígenas nas lutas da Independência nos ajudam a entender de modo mais rico e complexo não só o passado, mas também os desafios e a grande complexidade do Brasil de hoje”.
12 de outubro de 2022
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Crédito: Raquel Aviani/Secom UnB

O século XIX criou uma das mais potentes (e equivocadas) convicções sobre os povos indígenas: a de que eles teriam morrido e desaparecido nos primeiros anos da colonização portuguesa, fosse por conta de guerras ou por conta de doenças trazidas pelo homem branco. Mas isso não é verdade.

Embora muitos indígenas tenham realmente morrido em decorrência da violência colonial, os “povos originários” estão presentes em todos os momentos da história do Brasil, inclusive hoje, quando lutam, por exemplo, contra a tese do marco temporal. A narrativa do desparecimento precoce dos povos indígenas é muito prejudicial, portanto, porque apaga a presença ativa desses povos em vários momentos do passado brasileiro. É o que acontece com o período da Independência, cujo bicentenário comemoramos em 2022.

Os povos indígenas não foram alheios ao turbilhão político e social que caracterizou as primeiras duas décadas do Brasil do século XIX. Muitos desses povos viram esses acontecimentos de perto, fizeram alianças, participaram de batalhas e revoltas, tinham expectativas, medos e anseios quanto ao que um Brasil independente lhes reservaria.

Durante muito tempo, o papel de indígenas na Independência não recebeu muita atenção dos historiadores. Mas isso vem mudando, e o cenário é positivo. É cada vez maior o número de pesquisadores e pesquisadoras que se dedicam ao estudo desses grupos sociais subalternizados em nossa sociedade.

Para conversar sobre os indígenas no contexto da Independência, conversei com a historiadora Vânia Maria Losada Moreira, que é professora titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Moreira é uma das principais especialistas no assunto no Brasil.

Nesta conversa, a historiadora pontua que 1822 foi resultado de um processo político intenso, com momentos de aberta violência, em que a redefinição de direitos e jurisdições era ponto de pauta na arena do debate político da época. “Em outras palavras”, diz Moreira, “era um momento de incertezas e de disputas políticas e sociais e é nesse ambiente ou conjuntura que devemos avaliar as mudanças ou possíveis mudanças da “situação” dos indígenas”.

Qual era a situação dos povos indígenas à época da Independência?

Quando falamos em “povos indígenas” estamos nos referindo a um universo de povos, de grupos étnicos, de línguas, de culturas e de modos de vida muito diversos entre si. Além dessa grande diversidade, existiam aqueles povos que foram territorializados pelo poder colonial, que compunham a população de aldeamentos, povoados e vilas indígenas, ou que moravam em terras ou casas de colonos, como agregados, cativos, tutelados ou ilegalmente escravizados; e aqueles que eram total e/ou parcialmente independentes do poder colonial, boa parte deles nem mesmo conhecida pelos colonizadores, vivendo em suas próprias aldeias e segundo seus costumes, leis, tradições.

Então, de que povos estamos falando? Para pensarmos o período da Independência é importante fazermos, portanto, uma primeira grande diferenciação entre povos indígenas independentes, autônomos ou relativamente autônomos em relação ao poder colonial e povos avassalados pelo poder colonial, e, a partir dessa primeira classificação, começar perceber as diferentes experiências históricas vividas por esses grupos e indivíduos.

Nas fontes históricas do Brasil colonial e do Brasil Império essa primeira distinção aparece por meio de termos dicotômicos. Hoje, não é politicamente correto reproduzir sem aspas a maior parte desses termos: “gentios” versus “cristãos”; “selvagens” versos “civilizados”; bárbaros”, “tapuias”, “bravos” etc. versus “domesticados”, “mansos”, “caboclos” etc.  As vésperas da independência aparecem algumas estimativas de que que os “índios bravos” giravam em torno de 800 mil indivíduos, enquanto os “mansos” formariam um universo de quase 260 mil pessoas. São, como eu disse, estimativas e as estimativas desse período pré-estatístico estavam muito longe de ser precisas! De qualquer forma, isso dá uma ideia de como as pessoas que viviam na época da Independência percebiam a presença indígena no território e na sociedade.      

Resistência Indígena no Brasil
Arqueiro indígena participa de edição dos “Jogos Indígenas”. Foto: Valter Campanato/ABr.

Mesmo mirando exclusivamente no universo dos chamados povos avassalados continuamos dentro de um quadro muito complexo, composto por diferentes condições jurídicas (livres, cativos, tutelados ou ilegalmente escravizados) e por diferentes experiências e modos de vida. Por exemplo, o índio morador de uma vila indígena era livre, possuía terras e muitos deles participavam da vida política das câmaras, ocupando cargos na vereança ou como juízes ordinários. Desfrutavam de uma vida coletiva com sua família e vizinhos e estão presentes em diferentes regiões ao longo do rio Amazonas, na costa Atlântica e em outras regiões colonizadas um pouco mais interiorizadas. Esse modo de vida, todavia, nem sempre estava disponível para os indígenas tutelados pelo instituto orfanológico, embora, perante a lei, os tutelados fossem também considerados livres.

Gostaria, aliás, de aprofundar um pouco mais esse contraste e a dramaticidade que podia atingir certos setores que caíram nas teias da tutela. Penso muito nas crianças Borun (botocudos) e na tragédia que se abateu sobre esse povo tão perseguido e maltratado desde o início da colonização. Desenvolvi essa questão em um artigo que publiquei na Revista História Unisinos. Os Borun foram vítimas de várias guerras justas durante a colônia e, no regime imperial a política de “catequese e civilização” foi incapaz de protegê-los, garantir-lhes terra e liberdade e apenas uma pequena parcela foi aldeada e, mesmo assim, sem grande sucesso. No entanto, a perseguição que sofreram foi brutal e, sem sombra de dúvidas, um caso típico de genocídio. Poupava-se algumas mulheres e crianças, e essas crianças (kruk, na língua borun), que os colonos chamavam de kurukas, eram traficadas e escravizadas às vistas de todas as autoridades do Império e das províncias do Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia. Para disfarçar a ilegalidade das escravizações, normalizava-se a situação por meio da tutela orfanológica, que permitia que particulares explorassem o trabalho de seus tutelados como contrapartida de educá-los, catequizá-los, civilizá-los. Então, para resumir, falar de povos indígenas é falar de uma questão historicamente complexa.

Indígenas ou comunidades indígenas tomaram parte na guerra de independência?

Sim, participaram de diferentes formas e em diferentes regiões. Todavia, na historiografia os setores subalternos desse período são mencionados por meio de categorias muito amplas, como escravizados e pobres livres, por exemplo, ou como um conjunto variado, pouco organizado e até mesmo amorfo de pessoas, formado por escravizados, gente pobre, de cor, pretos, pardos, índios e mestiços, lavradores, entre outros.

Dentro dessas perspectivas, as diferentes agendas indígenas e seus modos de inserção e participação nas guerras e revoltas do período terminam não sendo identificadas. Gosto muito das investigações e estudos de Karina Melo, Mariana Dantas, João Paulo Costa, Francisco Cancela, entre outros, por estarem na contramão de qualquer simplificação historiográfica, porque, ao irem aos arquivos e analisarem as fontes, buscaram problematizar o lugar social e político dos indígenas em seus contextos sociais e extrair da documentação primária seus projetos e a racionalidade de suas escolhas e ações. São estudos ainda pouco conhecidos e debatidos, mas trazem inúmeras informações importantes que nos abrem uma outra perspectiva bem mais rica das guerras e revoltas do período e dos diferentes significados da independência para um seguimento específico e bem variado dos setores subalternos, representado pelos povos indígenas em sua imensa diversidade. Afinal, dizer simplesmente que existiam indígenas nas fileiras dos exércitos ou nas multidões e revoltas que reuniam outros setores subalternos, como pretos, pardos e mestiços, não chega a explicar muita coisa. Quem eram esses indígenas? Por que estavam ali e o que desejavam? Ficamos sem saber esse tipo de coisa. Creio que as novas investigações sobre a participação dos indígenas nas lutas da independência nos ajudam a entender de modo mais rico e complexo não só o passado, mas também os desafios e a grande complexidade do Brasil de hoje, em que os povos indígenas despontam como um dos setores mais aguerridos e organizados do povo e da sociedade brasileira.

Em que medida a situação dos povos indígenas mudou nos primeiros anos após a independência?

A Independência foi um processo político intenso, inclusive com vários momentos de aberta violência, porque tudo, ou quase tudo, poderia entrar para a arena do debate sobre a redefinição de direitos e jurisdição. Em outras palavras, era um momento de incertezas e de disputas políticas e sociais e é nesse ambiente ou conjuntura que devemos avaliar as mudanças ou possíveis mudanças da “situação” dos indígenas.

A questão indígena sempre foi um tema muito inflamado, tenso e disputado desde o início da colonização, polarizando aqueles que desejam escravizá-los ou tomar suas terras e outros que, ao contrário, entendiam que era importante resguardar seus direitos de liberdade, propriedade (domínio) e de participação política.

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“Anchieta e Nóbrega na cabana de Pindobuçu”, por Benedito Calixto (1927). Acervo do Museu do Ipiranga. A pregação de jesuítas como Anchieta e Nóbrega no Brasil foi uma inculturação recíproca entre a influência do cristianismo para as crenças e costumes dos nativos, utilizando elementos da cultura indígena como uma melhor forma de ensinar a doutrina cristã para eles.

Essas disputas coloniais foram reatualizadas depois da independência, geraram novas discórdias e debates políticos, novos arranjos e pactos nas províncias e localidades. No entanto, nos primeiros anos depois da Independência ainda eram muito fortes os valores típicos do Antigo Regime e, em relação aos indígenas, as antigas leis coloniais favoráveis e desfavoráveis aos indígenas eram recorrentemente citadas, acionadas e mesmos reeditadas.

Pouco a pouco essas disputas foram ganhando uma nova normatividade na legislação imperial, e sofrendo uma crescente influência das ideias liberais e nacionalistas. Do meu ponto de vista, as mudanças são mais visíveis e fortes principalmente a partir do Segundo Reinado, especialmente depois da Lei de Terras. Nesse momento o projeto de “nacionalização” dos indígenas, i.e., de total miscigenação e assimilação cultural, ganhou força, e isso aconteceu porque ele foi acompanhado por uma nova legislação territorial que permitia acabar com as terras coletivas dos indígenas, fracioná-las, vendê-las, doá-las ou aforá-las a outras pessoas, tornando muito mais difícil e complicado para os povos e comunidades indígenas se reproduzirem como comunidades étnicas dentro do chamado território nacional.  

Os debates sobre cidadania vão se tornar cada vez mais recorrentes no Brasil do pós-independência. Para o indígena, o que exatamente significava se tornar cidadão brasileiro? Isso acarretaria, por exemplo, abandonar sua cultura, hábitos ou comportamentos?

Como tantas outras questões, a cidadania esteve em disputa, ao lado de outros temas correlatos como os direitos de liberdade, de propriedade, de participação política etc. Então, do ponto de vista da história, deve-se começar o debate reconhecendo a disputa, os diferentes pontos de vistas, que, além disso, foram-se formando, organizando e modificando-se ao longo do tempo e das lutas políticas e sociais.

Por exemplo, Varnhagen entendia que o lugar social dos indígenas deveria ser o de servos das classes proprietárias do campo e das cidades. Ele argumentava, por essa razão, que os indígenas não deveriam ser tratados nem como brasileiros nem como cidadãos e, pior, mostrava-se muito irritadiço com esse debate político justamente porque existiam outros segmentos da elite política e intelectual do período que pensavam e defendiam o exato inverso dele. Essas ideias aparecem no panfleto político “Discurso preliminar: os índios perante a nacionalidade brasileira”, escrito na década de 1850, e depois republicado na “História Geral do Brasil”, demonstrando que o debate sobre o lugar dos indígenas na nova nação brasileira ainda estava em disputa 30 anos depois da independência. As ideias de Varnhagen davam vazão ao que pensava e desejava uma fração importante da elite. Todavia, esse projeto político não se consolidou na legislação. Na constituição de 1824, por exemplo, os indígenas não são citados, mas eles preenchiam plenamente os requisitos legais básicos para acederam à condição de cidadãos: eram nascidos no Brasil (jus solis) e eram livres.

Então, quando pensamos no tema da cidadania, há diferenças de conteúdo nos distintos projetos que estavam em disputa. Há também formas de comunicação e de expressão muitos díspares entre os projetos políticos em disputa, especialmente quando olhamos para as elites e os setores subalternos. Os projetos de cidadania das elites, na sua diversidade e disputa, podem ser recuperados e analisados em tratados políticos, panfletos, jornais, organizações secretas e partidárias etc. Mas não é assim que acontece com os setores subalternos, pelo menos na maior parte dos casos. Entre os indígenas, por exemplo, podemos recuperar seus desejos, expectativas políticas e projetos nos registros fragmentados que restaram de suas lutas políticas e sociais. Nas lutas que travaram pela própria vida, pela vida dos filhos, na luta pelas terras comunitárias, na luta contra a escravização.   

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Índios da etnia da Rikbaksta na cerimônia de encerramento da nona edição dos Jogos dos Povos Indígenas (Olinda PE). Foto: alter Campanato/ABr para Agência Brasil.

Olhando a história do ponto de vista das elites, não restam dúvidas de que uma vertente importante acreditava que a cidadania plena só seria exercida pelos indígenas quando eles finalmente fossem completamente “civilizados”, isto é, quando abandonassem seus “costumes, comportamentos e sua cultura”. Projetava-se sobre os povos indígenas uma visão de povos na infância, de “menoridade” política, social e cultural e de tutela até que pudessem exercer plenamente a cidadania. Mas nenhum povo indígena se define única nem principalmente por possuir “costumes, culturas e comportamentos” imutáveis no tempo. Ao contrário, ao longo do tempo, um povo se mantem como povo (coletividade) na medida que consegue transformar-se e adaptar-se, e não foi diferente com os indígenas.

Então, posto isto, volto a sua questão: “o que significava para os indígenas tornar-se um cidadão?” Com certeza não significava a mesma coisa que significava para as elites. Encontramos nos arquivos vários documentos que demonstram, por exemplo, que eles passaram a incorporar no seu léxico de luta palavras como “cidadãos” e “cidadãos brasileiros” para defender, dentre outras coisas, a liberdade de si e de suas famílias, as terras que possuíam em comum com outros indígenas e para acessar a justiça e as autoridades na defesa de seus interesses.

Recentemente, em entrevista a UnBTV, você disse que a historiografia apagou a participação dos indígenas no processo de independência. Como isso foi feito?

Esse é outro tema longo e cheio de facetas. Mas, para resumir bem o assunto, o projeto historiográfico que prevaleceu no Brasil oitocentista foi muito influenciado por Varnhagen, que não gostava dos indígenas e acreditava que eles deveriam ser estudados pela etnografia e pela arqueologia, não pela história. De certo modo, os historiadores se acostumaram a pensar o processo histórico sem os povos indígenas, deixando a questão para os antropólogos. Essa divisão intelectual do trabalho terminou criando grades de interpretação histórica em que os indígenas simplesmente não aparecem, ou são apenas percebidos como povos distantes do Brasil moderno, como povos “primitivos” e isolados.  Mas isso mudou bastante desde a década de 1980, e vai mudar ainda mais com o crescente interesse de jovens pesquisadores indígenas e não indígenas por uma história do Brasil mais atenta à presença e participação dos povos indígenas na história.

Como citar esta entrevista

MOREIRA, Vânia Maria Losada. Os povos indígenas no contexto da Independência (Entrevista). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/entrevista-com-vania-moreira-os-povos-indigenas-e-a-independencia/. Publicado em: 11 out. 2022. ISSN: 2674-5917.

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

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