Nada de Novo no Front: filmando a guerra total

Nova adaptação do livro clássico escrito por Erich Maria Remarque concorre em várias categorias ao Oscar. Filme pode ser visto na Netflix.
8 de fevereiro de 2023
Nada de Novo no Front: filmando a guerra total 1
Produção original Netflix baseia-se em livro clássico de mesmo nome. Foto: reprodução.

Quando um filme te deixa desconfortável, muitas vezes isso significa que ele cumpriu seu papel e passou sua mensagem com maestria. “Desconforto” é um modo brando de descrever a sensação que nos causa “Nada de Novo no Front”, filme alemão de 2022 que é adaptação do romance conhecidíssimo de Erich Maria Remarque.

Esta não é a primeira adaptação do livro de Remarque: já foram feitas quatro adaptações diretas para cinema e TV, destacando-se a de 1930, um filme excelente, intitulado em inglês “All Quiet on the Western Front”, que recebeu no Brasil o título “Sem Novidade no Front”. Mas é sobre a mais recente – e poderosa – adaptação que falaremos hoje.
Em “Nada de Novo no Front”, nos encontramos in media res – no meio da ação – já nos primeiros minutos de projeção. A uma cena de batalha na qual os novatos Hans e Heinrich perecem, se seguem cenas de corpos sendo empilhados e lavadeiras tirando o sangue dos uniformes para serem reutilizados. Corta para os novos ocupantes do uniforme: em uma cidade do norte da Alemanha, jovens se alistam no exército. Entre eles está Paul Bäumer (Felix Kammerer), que falsifica a assinatura dos pais para poder se alistar. Após ouvirem um discurso nacionalista inflamado e cheio de esperança – e depois de Paul herdar o uniforme do falecido Heinrich – começa a guerra para eles.

Paul e seus amigos se veem então inseridos num mundo de pólvora e lama, de noites cortadas por sinalizadores e ocasionais ataques da infantaria inimiga, um mundo de choro e perdas constantes – dos companheiros e da inocência. A guerra é processo de embrutecimento para estes jovens que chegaram ingênuos, em busca de emoções fortes e glórias inigualáveis.

Algo que o filme mostra muito bem é que comandantes da mais alta patente não serviram nas trincheiras. Isso também é mostrado em outro filme pacifista seminal: “Glória Feita de Sangue” (1957) de Stanley Kubrick. Nessas duas películas, os militares de alta patente tomam suas decisões no conforto dos grandes salões de residências oficiais, mandando jovens incautos para as trincheiras fedorentas e enlameadas. No final, estes homens que não viram a ação, acabam mais condecorados que os que nela pereceram, mesmo tendo eles algumas vezes, como no filme de Kubrick, humilhado a população local para divertimento próprio.

A época da ação de “Nada de Novo no Front” é 1917, já no final da Primeira Guerra Mundial. A Guerra de posição, guerra de trincheiras, está quase deixada para trás, e agora tanques blindados avançam sobre as trincheiras e usados gases tóxicos e lança-chamas. A Primeira Guerra Mundial, chamada de “guerra total” por alguns historiadores, foi um laboratório de experimentação de tecnologias mortais, como os já referidos tanques e lança-chamas, mas também viu ser usados pela primeira vez para matar engenhocas como aviões, metralhadoras e o gás mostarda.

Por ser colorida, esta versão de 2022 atiça mais nossos sentidos, de modo que sentimos coceira e aversão ao simplesmente vermos Paul com o rosto coberto com a lama das trincheiras. É um experimento de sinestesia, e ao Paul coberto de lama segue esta ojeriza, e quase podemos sentir a textura da lama em nossas mãos e o cheiro insuportável dos corpos apodrecendo na Terra de Ninguém, faixa de terra que separa as trincheiras inimigas.

Num episódio ao mesmo tempo, terno e desesperadoramente triste, Paul dá água para um francês que ele mesmo esfaqueou, enquanto na versão de 1930 ele divide um cigarro com sua vítima. Em 2022, Paul fica com um lenço de um amigo morto, enquanto em 1930 é um par de botas que é passado adiante como prova de camaradagem.

A versão de 1930 foi indicada a quatro Oscars, ganhando dois deles, os mais importantes da noite: Melhor Diretor para Lewis Milestone e Melhor Filme. Aquela era apenas a terceira vez em que eram entregues os prêmios da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. A versão de 2022 foi indicada a nove Oscars, na 95ª edição da premiação. O maior número de indicações não pode ser explicado simplesmente pela criação de novas categorias no Oscar nos últimos 93 anos. “Nada de Novo no Front” permanece atual pelo contexto presente da guerra na Ucrânia e sua sempre discutida possível internacionalização. Tecnicamente perfeito, e reconhecido por isso, “Nada de Novo no Front” é um dos melhores filmes lançados recentemente, e está disponível para assistir na Netflix.

Letícia Magalhães

Historiadora e crítica de cinema. Contribuiu com sites como Filmes e Games e Leia Literatura. Mantém desde 2010 o blog Crítica Retrô, sobre filmes clássicos e antigos, e contribui para os sites Revista Eletrônica Ambrosia e Cine Suffragette, no qual é também editora. Foi vencedora do prêmio do Collegium do Festival de Cinema Mudo de Pordenone em 2021, escrevendo sobre o que mais gosta: cinema e história.

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