Golpe de 1964: Repressão da Marinha é destaque em pesquisa sobre atuação de associação de militares no sul do Brasil

6 de outubro de 2017
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Em dissertação recém-defendida na UFPel, o historiador Robert Wagner Porto examina os vínculos entre a trajetória de membros ou apoiadores da “subversiva” Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB) em Rio Grande (RS) e a repressão vivida por militares e civis da cidade no contexto do golpe civil-militar de 1964.

Bruno Leal | Agência Café História

Poucos dias depois do golpe-civil militar iniciado em 31 de março de 1964, a cidade de Rio Grande, no Rio Grande do Sul, viveu uma violenta onda de repressão da Marinha. Diversas lideranças políticas e sindicais foram presas de maneira abrupta e arbitrária em um navio ancorado ao largo do porto da região. Nas semanas e meses seguintes, a repressão foi estendida a vários militares. Por que uma cidade discreta no sul do Brasil foi alvo de tamanha ação por parte da Marinha? De acordo com o historiador Robert Wagner Porto, em dissertação recentemente defendida na Universidade Federal de Pelotas, o motivo tem a ver, entre outros motivos, com a atuação de militares que eram membros ou apoiavam uma associação militar considerada problemática pelas Forças Armadas no início dos anos 1960: a Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil (AMFNB).

A Associação de Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil

Criada em 1962, a AMFNB vinha causando dor de cabeça para as Forças Armadas. A organização, apesar de jamais ter sido reconhecida pela Marinha, conseguiu reunir desde o seu princípio milhares de marinheiros em todo o país, muitos dos quais alinhados com ideias de esquerda e com as bandeiras reformistas do presidente João Goulart. De acordo com Porto, a associação contava com um projeto de expansão fundamentado na implementação de sucursais nas principais cidades portuárias do Brasil. E mesmo onde não existiam sucursais, era possível encontrar membros ativos da associação. Foi o que aconteceu em Rio Grande (RS), cidade examinada pelo historiador. Através de documentação inédita, Porto identificou e entrevistou três marinheiros que, enquanto membros ou apoiadores da AMFNB, atuaram na cidade de Rio Grande: Domingos Pereira Gomes de Souza, Paulo Costa e um terceiro marinheiro que solicitou que sua identidade não fosse revelada.

Ditadura
Porto defendeu sua dissertação no final de 2016. Foto: Acervo pessoal de Porto.

A notícia da presença de membros ou de apoiadores da AMFNB em Rio Grande causou extrema preocupação na Marinha, por diversos motivos, explica o historiador na dissertação. Em primeiro lugar, porque o porto da cidade tinha uma função estratégica em termos de comunicação com outros países que faziam fronteira com o Brasil. Por ali, poderiam ir e vir elementos considerados ideologicamente “subversivos”. Em segundo lugar, tratava-se (e trata-se ainda hoje) de um porto de grande importância econômica, rota de escoamento de produtos industrializados brasileiros. Em terceiro lugar, a cidade, simbolicamente, tinha um enorme significado para a Marinha: era a cidade natal de ícones da força naval brasileira. Além disso, vale sublinhar que Rio Grande teve uma destacada importância no cenário da crise de sucessão presidencial em 1961: para a resistência de Leonel Brizola, apoiado pelo 3º Exército no Rio Grande do Sul, o controle do único porto oceânico do RS era essencial para a logística (de material e tropas) em caso de conflito armado.

A preocupação da Marinha aumentou consideravelmente quando percebeu que os portuários do Rio Grande apoiavam cada vez mais as reinvindicações da AMFNB. Nesta época, sobretudo no meio militar, Rio Grande, que devido à sua tradição em mobilizações sindicais e trabalhistas, carregava a alcunha de “cidade vermelha”, passou a ser vista como um perigoso entroncamento de elementos civis e militares alinhados à esquerda. Mas, para além do estigma ideológico, Porto percebeu neste contexto um elemento fundamental: o estigma social. Segundo o pesquisador, o que impulsionava à mobilização marinheiros e portuários eram as condições degradantes de vida, bem como as condições de trabalho, como descreve em sua dissertação:

– À semelhança de seus congêneres de cidades como Rio de Janeiro, Santos e Recife; os portuários de Rio Grande enfrentavam os estigmas sociais comuns a todos os trabalhadores do lócus portuário, inclusive os marinheiros. Tais estigmas se estendiam aos bairros localizados nas proximidades do porto, onde residiam a grande maioria dos portuários, marítimos e marinheiros. Além das características sociais relacionadas à violência e ao pouco desenvolvimento intelectual, a exemplo dos marinheiros, “os trabalhadores portuários de Rio Grande também eram enquadrados como vagabundos e alcoólatras”.1 Deste modo, fica evidente que a proximidade existente entre esses dois segmentos de trabalhadores ultrapassava aspectos relacionados unicamente às suas características profissionais. Alcançando questões de cunho social que, no contexto dos anos iniciais da década de 1960, eram basilares para as mobilizações de diversos segmentos sociais que se espalhavam pelo Brasil. Neste contexto, os portuários de Rio Grande e os marinheiros experienciaram cada qual a sua cotidianidade, fundamentada na pobreza, nas restrições e estigmas sociais.

Assim, a pesquisa de Porto tem um mérito não só de discutir o funcionamento da AMFNB na cidade do Rio Grande – quando a maioria das pesquisas disponíveis se debruçam sobre a atuação da organização nos grandes centros urbanos (veja aqui um deles) – mas também de destacar a maneira como se dava a politização nas forças armadas. A historiadora Caroline Silveira Bauer, que fez parte da banca que aprovou o trabalho de Porto, conversou com o Café História e destaca, neste sentido, a contribuição do trabalho:

– Eu diria que a principal contribuição do Robert para o campo historiográfico é romper com uma ideia de que as Forças Armadas são isoladas da sociedade e das dinâmicas que encontramos fora da instituição. Ao recuperar as reivindicações dos marinheiros, categoria historicamente marginalizada dentro da Marinha, Robert fala sobre o caráter de classe da Armada, da exclusão social, da politização e das opressões.

Revolta, golpe, repressão

No dia 25 de março de 1964, ocorreu um evento importante para o destino de Goulart e da AMFNB, a chamada “Revolta dos Marinheiros”. Naquela data, a associação completaria dois anos de existência e suas lideranças marcaram um evento comemorativo no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, no bairro de São Cristóvão. O então Ministro da Marinha, Silvio Mota, proibiu a comemoração. De nada adiantou: milhares de marinheiros compareceram ao local. Reivindicavam o reconhecimento da associação e diversas mudanças, entre as quais cabe destacar aquelas atinentes às suas carreiras, condições de trabalho, e no regimento disciplinar; além de avanços em direitos e garantias sociais. O evento criou uma complexa cadeia de eventos que culminou na anistia dada por Goulart aos marinheiros revoltosos e, consequentemente, na insatisfação de diversos oficiais das Forças Armadas, que consideraram o episódio um claro exemplo de “quebra de disciplina”. A resposta à Revolta dos Marinheiros contribuiu para o cenário de divergências e fragilização de Jango, o que, em conjunto com muitos outros fatores e eventos, levou ao golpe que forçou sua saída do país e inaugurou a ditadura militar que duraria 21 anos.

Imediatamente após o golpe, as autoridades da Marinha empreenderam uma forte repressão na cidade de Rio Grande, vista como estratégica naqueles primeiros momentos de tomada do poder. Diversas lideranças políticas e trabalhistas associadas à esquerda foram presas no Canopus, um navio hidrográfico que tinha a incumbência de fazer o mapeamento da costa do Rio Grande do Sul e que, durante todo o mês de abril de 1964, permaneceu ancorado em Rio Grande.

Noiva do Mar
Vista da região portuária da cidade. Foto: Scheridon.

O “navio-prisão” aparece atualmente na memória social de Rio Grande como um dos grandes símbolos da repressão que se abateu sobre a cidade. No entanto, pouco se sabia até agora sobre o seu uso como cárcere ou sobre aqueles que foram encarcerados nele. Os documentos tratados por Porto permitiram descobrir os nomes, profissões, partidos e sindicatos de vários dos que foram presos na embarcação. Ele contabilizou 22 pessoas. Havia portuários, jornalistas, vereadores, militares, professores, pedreiros, ferroviários e até um promotor de justiça.

Porto sublinha que alguns relataram, anos depois, maus-tratos e sequelas psicológicas do tempo de encarceramento, afinal de contas, suas prisões tinham sido arbitrárias e abruptas. Dos três marinheiros da AMFNB atuantes em Rio Grande, um deles, Domingos Pereira Gomes, era delegado da entidade no Canopus, mas estava fora dele no momento em que foi dado o golpe. Mas tanto ele quanto os outros dois escutados por Porto sofreram com a repressão desencadeada pela Marinha no pós-golpe: foram expulsos e sofreram Inquéritos Policiais Militares (IPMs). Também foram alvo de investigação, prisão e desligamentos marinheiros suspeitos de ter relação com a associação ou com seus membros. Em muitos casos, aponta Porto, essa relação era bem frágil.

O historiador explica que tal expurgo ocorreu dentro de um contexto mais amplo conhecido como “Operação Limpeza”, levada à cabo nos primeiros momentos após o golpe, quando 1.509 praças da Marinha foram sumariamente “expulsos”, “desligados” ou “licenciados” da força naval, a maioria ainda no ano de 1964. Segundo explicou Porto, em conversa com o Café História, “este processo se deu através de atos administrativos da própria Marinha, sem prévio julgamento dos militares a fim de averiguar o envolvimento de cada um com o movimento da AMFNB e suas responsabilidades individuais na assembleia do dia 25 de março de 1964.

Entre as fontes utilizadas pelo pesquisador estão livros de memória, entrevistas, jornais, legislação histórica e documentos do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul e do Arquivo da Marinha. Porto também trabalhou com documentos inéditos do navio Canopus, como o “Livro do Navio” e os “Livros de Quarto”, além de documentações administrativas do Ministério da Marinha dos anos de 1964 e 1965.

– No “Livro do Navio” pude encontrar uma detalhada descrição das principais características, tanto físicas quanto operacionais, do navio e um histórico do mesmo desde a sua construção em Tóquio, no Japão, com batimento de quilha em 1956, até a sua utilização enquanto “navio-prisão” na cidade gaúcha de Rio Grande, durante o mês de abril de 1964. Apesar deste histórico contemplar somente os principais acontecimentos durante o período de atividade do navio, ele é bastante detalhado devido, principalmente, ao registro dos chamados “Termos de Viagem”, onde constam detalhes das missões do Canopus, tais como: locais, datas e horários de desatracação e atracação do navio, objetivos das viagens e ordens recebidas pelo Comandante. Já nos “Livros de Quarto” que analisei, dos últimos dias de fevereiro até o dia 30 de abril de 1964, foram registrados detalhadamente os pormenores da rotina diária da embarcação durante aquele período. Entre os quais destaco a movimentação do navio no sentido de bloquear a barra do porto de Rio Grande-RS a partir do dia 2 de abril de 1964; os nomes, datas de embarque e desembarque dos presos e por ordem de quem cada um estava sendo detido abordo do Canopus.

Para baixar gratuitamente a dissertação de Robert Wagner Porto, intitulada “Na esteira da memória: a questão social e a mobilização dos marinheiros, atuação e repressão na cidade de Rio Grande-RS (1962-1964)”, clique aqui. Porto é atualmente pesquisador vinculado ao Núcleo de Pesquisa em História Regional da Universidade Federal de Pelotas (NPHR / UFPel).

1 Essa ideia pode ser encontrada, de acordo com o autor, no seguinte trabalho: GANDRA, Edgar Ávila. O cais da resistência. A trajetória do Sindicato dos Trabalhadores nos Serviços Portuários de Rio Grande nos ano de 1959 a 1969. Cruz Alta: UNICRUZ, 1999, p.39.


Como citar essa notícia

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Golpe de 64: repressão da Marinha é destaque em pesquisa sobre atuação de associação de militares no sul do Brasil (Matéria). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/amfnb-no-rio-grande/ Publicado em: 29 set. 2017. Acesso: [informar data].

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

2 Comments

  1. Belo trabalho, mas ainda vou ler na integra. É preciso também verificar que apesar das lutas sociais destas Instituições a hierarquia militar estava sendo abusivamente desconstruída, mesmo com fortes sinalizações de futuras mudanças. Ao carregarem Aragão nos Braços e irem para a Porta do Clube Naval , demostravam que não estavam querendo negociar em tempos de Guerra Fria.(Ver 1964 e Ângela de Castro e jorge Ferreira )

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