“É o Brasil de hoje que torna Marighella ainda mais atual, goste-se ou não dele”

15 de abril de 2019

Entrevista com o jornalista Mário Magalhães, biógrafo de Carlos Marighella. Magalhães fala sobre a reação que o nome “Marighella” provoca hoje no Brasil, da pesquisa monumental que realizou para o livro e esclarece a relação de sua obra com o filme de Wagner Moura. 

Bruno Leal entrevista Mário Magalhães

Lançada em 2012, a biografia “Marighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo”, escrita pelo jornalista Mário Magalhães, incendiou o debate público no Brasil. Elogiada pelo público e pela crítica, a obra se debruça sobre a incrível trajetória de um brasileiro que viveu diversas personas: Marighella foi escritor, militante do Partido Comunista Brasileiro, deputado federal e fundador da Ação Libertadora Nacional, o maior grupo armado de oposição à ditadura militar do Brasil.

Sete anos depois de lançada, a biografia de Magalhães volta ao radar daqueles que se interessam por História. A obra serviu de inspiração para o filme “Marighella”. Dirigido por Wagner Moura, a cinebiografia foi selecionada pelo último Festival de Berlim para o circuito fora de competição e deve estrear no Brasil em breve. Não sem reações de grupos conservadores contrários às ideias de Marighella.

Carlos Marighella
Jornalista Mário Magalhães. Foto: Ana Carolina Fernandes / Divulgação Companhia dasLetras

A fim de entender melhor as reações que o nome do guerrilheiro desperta hoje no Brasil, o Café História entrevistou o jornalista Mário Magalhães. Nesta conversa exclusiva, Magalhães fala sobre a atual tensão política em torno de Marighella, o filme que vem por aí e sobre seus dois próximos biografados: o político Carlos Lacerda (1914-1977) e 2018. Isso mesmo: o ano de 2018. 

A biografia que você escreveu foi a inspiração do filme dirigido por Wagner Moura e produzido pela O2 filmes. Em que medida você se envolveu no projeto?

Minha participação, no fundamental, foi com a biografia “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo”. Isto é, com o livro que inspirou o filme. Tive uma longa e prazerosa conversa com o elenco, troquei impressões e ideias com o Wagner, acompanhei filmagens, mas não interferi no trabalho do diretor e dos roteiristas (o roteiro é da dupla Felipe Braga e Wagner Moura).

Ainda não assisti ao filme. Quer dizer, vi cinco ou seis sequências, somando uns 15 minutos. Adorei. É preciso esclarecer que Wagner dirigiu um filme de ficção, inspirado em fatos reais, concentrados na terceira e última parte do meu livro (1964-1969). Já eu escrevi uma biografia de não ficção, em que nem um espirro carece de lastro factual. Muitíssimos acontecimentos reais reconstituídos no livro estão no filme, adaptados para a narrativa cinematográfica de ficção. 

Livro e filme (embora este ainda nem tenha estreado no Brasil) têm provocado a ira de setores conservadores, especialmente nos últimos anos, quando tais setores começaram a investir pesadamente em narrativas “revisionistas” da história do Brasil. Como você tem observado esse fenômeno? Por que Marighella provoca essa reação?

Minha impressão é que o personagem histórico Carlos Marighella (1911-1969) é hoje objeto de amor e ódio mais intensos do que no período em que ganhou projeção mundial e foi declarado oficialmente, pela ditadura, “inimigo público número 1” (1968). Isso se deve em parte às ideias que ele cultivou e às ações que empreendeu. Mas suponho que o motivo principal seja o Brasil de 2019 e o ideário do governo que assumiu em janeiro.

Marighella - Cinebiografia
Wagner Moura dirige Seu-Jorge na cinebiografia Marighella. Foto: divulgação.

O presidente da República é um saudosista da ditadura parida em 1964, a mesma em que Marighella, desarmado, foi alvejado em um cinema (1964) e assassinado numa rua escura (1969). Jair Bolsonaro já defendeu publicamente a tortura; Marighella, ao contrário, opunha-se a tal infâmia e foi torturado durante 21 dias, em 1936, no governo Getúlio Vargas. O vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, considera o 13º salário uma “jabuticaba”, uma aberração; Marighella lutou na Constituinte de 1946 pela introdução do que então se denominava Abono de Natal (o 13º só seria conquistado em 1962). É o Brasil de hoje que torna Marighella ainda mais atual, goste-se ou não dele.

Como foi o processo de produção do livro? Conta para nós quanto tempo você levou para escrever, que documentos utilizou, que abordagem você empregou etc.

Trabalhei durante nove anos (2003-2012) na apuração e na escrita da biografia. Desse período, cinco anos e nove meses foram de dedicação exclusiva. Tive acesso a documentos de 32 arquivos públicos e privados, distribuídos por cinco países. A bibliografia atingiu 600 títulos. O livro tem 48 páginas com fotografias, mais de 100 imagens. O mais importante: entrevistei e consultei 256 pessoas.

Marighella no PCB
Marighella era membro do Partido Comunista do Brasil. Foto: Wikipedia.

O principal obstáculo para contar a vida de Marighella foi uma combinação de fatores: uma certa historiografia tentou eliminar as pegadas dele da memória nacional; e ele buscou apagar seus rastros, para evitar prisão, tortura e morte.

De tudo, o mais difícil foi escrever. Apurações monumentais costumam ser uma armadilha para o narrador. Talvez eu não tenha usado nem 5% do que apurei. O bom, para o leitor, é que só publiquei informações relevantes e interessantes (nem tudo que é relevante é interessante, e vice-versa). A narrativa se alimenta de ferramentas literárias para contar a história da maneira mais sedutora possível. A diferença do meu livro para um romance é que 100% do que eu publiquei é não ficção. Nada foi inventado.

Muitos personagens históricos são reduzidos a categorias que apagam a sua complexidade. Você acha que isso aconteceu ou acontece ainda com Marighella?

Contradições, grandezas e misérias são próprias da condição humana. Eu não me interessaria em contar a vida de alguém 100% mocinho ou 100% bandido. Como jornalista, não me proponho a ser juiz, advogado ou acusador de personagem. Meu desafio foi descobrir o que Marighella fez, disse e, na medida do possível, pensou e sentiu. Cabe aos leitores julgá-lo. Para formar juízo, é imprescindível informação escrupulosa.

O tratamento dado a Marighella é o mesmo que oferecerei a Carlos Lacerda (1914-1977), cuja história contarei em dois volumes. Lacerda não cabe nas camisas de força em que a história tenta aprisioná-lo. O primeiro volume sairá em 2020. O segundo, em 2021.

Daqui a poucas semanas, em maio de 2019, lançarei uma espécie de biografia de 2018. Foi difícil viver o ano passado, e mais difícil ainda narrá-lo.

Tem sido comum jornalistas escrevendo sobre temas históricos ou personagens históricos. Para você, o que diferencia a escrita do jornalista e a do historiador?

As diferenças vão além da escrita, da estética. A biografia jornalística se propõe essencialmente a contar, embora lhe seja imprescindível contextualizar tempo e personagens. A biografia de autoria de historiador tem propósito sobretudo interpretativo e analítico. Elas se completam. Soa anacrônica a oposição entre uma e outra. Os historiadores influenciam os jornalistas, cujos relatos ganham densidade. Assim como muitíssimas obras de historiadores têm prosa agradável e compreensível, e não elucubrações cifradas destinadas a públicos restritos.

Marighella-Biografia
Capa da biografia de Marighella, de Mário Magalhães, lançada em 2012.

O livro que melhor conta o poder da imprensa no Brasil é de um jornalista, Fernando Morais (“Chatô: O rei do Brasil”). A obra-prima “Rebelião escrava no Brasil”, do historiador João José Reis, é leitura de enorme prazer. Quem é capaz de investigar a história da Bossa Nova desprezando “Chega de saudade”, clássico do jornalista Ruy Castro? Acadêmicas como a socióloga Angela Alonso e a historiadora Isabel Lustosa são escribas de vasto talento, donas de texto encantador.

As biografias no Brasil ganham com o fim de muros artificiais entre jornalistas e acadêmicos. A biografia “Marighella”, trabalho de jornalista, tem algumas características típicas da academia, como a publicação de notas sobre fontes. São 2.580 notas. Acho que é direito do leitor conhecer, por exemplo, a origem da frase segundo a qual Marighella, ao ser alvejado no cinema, sentiu gosto adocicado no sangue que lhe corria pela boca. Do contrário, o leitor pode supor que eu cascateei. Mas há uma diferença com o método acadêmico: não aplico ao leitor o suplício daqueles numerozinhos remetendo às notas sobre fontes. Elas estão no fim do volume, esclarecendo de onde vem cada informação.

Mário Magalhães nasceu no Rio de Janeiro, em abril de 1964. Formou-se em jornalismo na Escola de Comunicação da UFRJ. Trabalhou nos jornais Tribuna da Imprensa, O Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo, no qual foi repórter especial, colunista e ombudsman. Recebeu cerca de vinte prêmios e menções honrosas no Brasil e no exterior, entre os quais o Every Human Has Rights Media Awards, o Prêmio Vladimir Herzog, o Prêmio Dom Hélder Câmara e o Prêmio Esso de Jornalismo.

Bruno Leal é fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social (UFRJ, 2015). Mestre em Memória Social (UNIRIO, 2009), Especialista em História Contemporânea (PUCRS, 2010), Graduado em História (UERJ, 2006) e Comunicação Social (UFRJ, 2006). Foi professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra, com especial ênfase no destino dos criminosos nazistas. Foi cocoordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes da UFRJ, o NIEJ entre 2011 e 2018. É membro da Rede Brasileira de História Pública e da Associação das Humanidades Digitais.

Como citar esta entrevista

MAGALHÃES, Mário. “É o Brasil de hoje que torna Marighella ainda mais atual, goste-se ou não dele” (Entrevista). Entrevista concedida a Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História – História feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/entrevista-mario-magalhaes-marighella/. Publicado em: 15 abr. 2019. Acesso: [informar data].

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

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