Em 13 de maio de 1888, a escravidão no Brasil foi oficialmente abolida por meio da Lei Áurea. Nos últimos anos, a data vem sendo ressignificada a partir da perspectiva do protagonismo da população negra no processo abolicionista, dando visibilidade às lutas dos escravizados e ex-escravizados por liberdade e igualdade. Durante as primeiras décadas do século XX, o Dia da Abolição da Escravatura se tornou feriado nacional, sendo celebrado como tal até 1930, quando Getúlio Vargas retirou a data do calendário nacional, sob o pretexto de que seria necessário reduzir a quantidade de feriados para promover maior “vantagem do trabalho”. No mesmo decreto, Vargas criou o Dia do Trabalhador, a ser comemorado em 1º de maio.
Contudo, o fim do feriado nacional não encerrou as celebrações de 13 de maio e a data continuou a ser comemorada Brasil afora, como na cidade de Vitória da Conquista (BA), onde a festa era organizada por Maria Rogaciana, uma mulher negra, descendente de escravizados e trabalhadora doméstica. Esse é o tema da dissertação “O Baú de Maria Rogaciana na aula de História – Trajetória de uma mulher negra e representações da Festa do Treze de Maio em Vitória da Conquista/BA (1888-1956)”, defendida pela pesquisadora Giovana Alves Marques no programa de Mestrado Profissional em Ensino de História (ProfHistória), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em 2022. Você pode acessar a dissertação aqui.
Além de analisar a trajetória de Maria Rogaciana, a pesquisadora também aborda as representações das comemorações do 13 de maio e as relações étnico-raciais em Vitória da Conquista, explorando as potencialidades do tema para a aprendizagem histórica. “As festas do 13 de maio, organizadas por Maria Rogaciana, diferentemente de outras comemorações ocorridas na Bahia e no Brasil, ao longo das décadas imediatamente posteriores ao fim da escravidão, apresentavam características peculiares, constituindo-se, desde o início, como eventos cívicos, com a adesão e apoio das camadas proprietárias, consideradas não negras e detentoras do poder instituído na cidade”, destaca.
O trabalho foi dividido em seis capítulos. Nos cinco primeiros, Giovana faz uma revisão crítica dos estudos e debates recentes sobre as representações de Maria Rogaciana, dos festejos do 13 de maio e das relações étnico-raciais. Na parte final, ela discorre sobre o papel da escola e do Ensino de História e apresenta um produto pedagógico – uma caixa/baú composto por fontes e atividades didáticas relacionadas à história de Maria Rogaciana.
Maria Rogaciana e o 13 de maio
Nascida em 23 de março de 1882, em Jussiape, na Chapada Diamantina, Maria Rogaciana era a décima quinta filha de Felippe José dos Santos e de Agnastácia da Silva Gomes. Apesar de ter nascido após a Lei do Ventre Livre (1871), provavelmente, ela foi criada como escravizada com os pais e os irmãos mais velhos. “Segundo a lei, após a aprovação, os filhos das mulheres escravizadas seriam considerados livres. No entanto, deveriam ficar até os oito anos sob o poder dos senhores, aos quais suas mães pertenciam. Esses senhores tinham a opção de, em troca de uma indenização, entregar as crianças ao Estado ou manter a guarda sobre elas e explorar os seus serviços até os 21 anos. Isso implicava na utilização dessa mão de obra desde a infância”, explica Giovana.
Segundo a pesquisadora, Maria Rogaciana chegou ao Planalto da Conquista no final do século XIX, trazida por um padre para prestar serviços domésticos na sua residência. Após a morte do religioso, em 1905, Rogaciana passou a viver na casa de uma filha dele, a professora Cota, apelido de Maria Leal.
Não se sabe ao certo como e quando Maria Rogaciana assumiu o protagonismo da organização das festas na cidade. Contudo, jornais da época apontam que as festividades tiveram início por volta de 1928. Segundo memorialistas, Rogaciana teria investido as próprias economias para a realização da festa e pedido ajuda a pessoas de posses, como políticos, comerciantes e fazendeiros da região, após a tentativa frustrada de conseguir arrecadar fundos entre a população negra, formada principalmente por ex-escravizados.
As festas organizadas por Maria Rogaciana apresentavam aspectos cívicos-religiosos, tendo como característica marcante a homenagem a Ruy Barbosa e, principalmente, à princesa Isabel. A festa começava antes de o sol raiar com o estouro de foguetes e a apresentação de filarmônicas. Ainda de manhã, era realizada uma missa na Igreja matriz e uma sessão solene no Paço municipal ou no Salão Paroquial, que contava com a participação de escolas, autoridades locais e a elite conquistense. Em seguida, ocorria um cortejo cívico pelas ruas da cidade, composto por charolas com retratos da princesa Isabel, de Ruy Barbosa e outros abolicionistas. As comemorações só eram encerradas à noite com bailes em lugares fechados da prefeitura, bares elegantes e o Clube Social.
“Em uma análise preliminar dos discursos presentes nas fontes, as celebrações, lideradas por Maria Rogaciana, podem ser interpretadas, de forma simplista, como eventos que contribuíam para a persistência de relações étnico-raciais e sociais desiguais no contexto histórico abordado. Mas o estudo aprofundado dessas representações evidencia que a luta de Maria Rogaciana para promover as comemorações do Treze de Maio refletiam a preocupação em evitar o apagamento da memória da Abolição, bem como exemplificavam as estratégias de inserção social e o protagonismo das mulheres negras na sociedade racializada do pós-1888”, reflete Giovana.
O baú de Maria Rogaciana
Como proposta pedagógica, a pesquisadora elaborou a construção um baú composto por fontes, elementos lúdicos e simbólicos, e atividades pedagógicas relacionados à história das celebrações do 13 de maio. “Os memorialistas relatam que Rogaciana tinha uma arca em que guardava a foto da Princesa Isabel. Todo ano, após a festa colocaria ali a imagem, carregada de simbolismos. Daí surgiu a ideia de construir um produto pedagógico com esse formato”, conta Giovana.
Além de um caderno com treze propostas de atividades pedagógicas destinadas aos estudantes do Ensino Médio, o Baú de Maria Rogaciana ainda conta com duas maquetes, simulacros de estandartes e um teatro de bonecos. Os elementos que compõem o acervo foram produzidos artesanalmente por mulheres negras da comunidade quilombola Lagoa de Melquíades.
“Tal ideia incorre no risco de imaginar que esse seria um receptáculo com uma função armazenadora, associando-o a uma concepção de aprendizado histórico anacrônica, fundamentada no acúmulo de conhecimentos, fontes, atividades, destituindo o processo de um caráter vivo e baseado em pressupostos teóricos metodológicos atuais. Diferentemente dessa ideia, o que o Baú propõe é o estímulo ao desenvolvimento do pensamento histórico. Este não se destina a entesourar vestígios empoeirados do passado e sim ampliar, por meio da discussão da temática, as relações entre passado, presente e as perspectivas de futuro”, conclui Giovana.
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