Renata de Rezende Ribeiro
Renata de Rezende Ribeiro é professora da UFES. Foto: acervo pessoal da entrevistada.

A morte na “Idade Mídia”: estudos sobre a morte na internet

Renata Rezende Ribeiro, pesquisadora da Universidade Federal Fluminense, estuda práticas celebrativas da morte na internet, sobretudo nas redes sociais. Em entrevista ela explica: "Falar da morte é falar da vida".
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Doutoranda em Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora assistente da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), a pesquisadora Renata de Rezende Ribeiro tem estudado nos últimos anos a morte na internet.

Sua tese, provisoriamente intitulada “Fragmentos de um corpo: as novas tecnologias da comunicação e a construção da morte contemporânea” debruça-se sobretudo sobre comunidades virtuais em redes como o Orkut. No trabalho, a pesquisadora mostra como morte é um conceito em profunda transformação, da Idade Média à “Idade da Mídia”.

Renata de Rezende Ribeiro é jornalista, possui especialização em Comunicação, Tecnologia e Gestão da Informação e é mestre em Comunicação Social. Atualmente, termina o doutorado em Comunicação Social na Universidade Federal Fluminense (UFF, Niterói – RJ) e atua como professora assistente no Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Renata, muito obrigado por conceder esta entrevista ao Café História. Sinta-se em casa por aqui, ok? Bom, toda a sua trajetória acadêmica tem sido realizada na área de comunicação. Mas o seu trabalho está intimamente relacionado à história. Conte-nos sobre a sua tese de doutorado e de como a história está presente em suas pesquisas.

Como o campo da comunicação social é amplo e atravessado por ciências variadas, isso nos permite recorrer a diversos referenciais, como os da história. As pesquisas que desenvolvi nos últimos anos utilizam tais referenciais porque estão diretamente relacionados ao contexto do desenvolvimento histórico das sociedades ocidentais. Minha tese de doutorado, por exemplo, aborda, em linhas gerais, como as tecnologias da comunicação alteraram a história da morte no Ocidente, não apenas levando em conta como os homens fizeram uso dessas tecnologias, mas como elas ajudaram a modificar a representação da morte.

Que conceitos trazidos da história são importantes em seu trabalho? 

Eu trabalho com o que considero os “três pilares” para se compreender a morte: o tempo, o espaço e a memória. Esses conceitos são fundamentais porque, a partir deles, consigo estabelecer um cenário onde é possível dialogar com meu objeto de estudo, localizado no campo da Comunicação, que são as comunidades virtuais dos mortos.

Em trabalho apresentado no VII Encontro Nacional de História da Mídia, ocorrido no último mês de agosto, em Fortaleza, você traçou um paralelo entre Idade Média e Idade da Mídia. Você pode explicar para o leitor do Café História esta relação?

Ao estudar a Idade Média pude perceber que muitos aspectos podem ser relacionados com a contemporaneidade. No meu ponto de vista há uma série de aproximações, que vão desde o desenvolvimento de técnicas que contribuíram para o desenvolvimento de toda a sociedade ocidental, até questões sobre violência, por exemplo. É claro que são épocas e contextos distintos, mas o foco de abordagem neste trabalho específico, que você citou, é a questão do sagrado. Há, na minha hipótese, uma apropriação do conceito cristão de sagrado (e minha referência é Mircea Eliade) pela mídia, em que a intenção é doar valores a determinados espaços a fim de transformá-los em templos, ou seja, em lugares de contemplação. É o que pude verificar nas comunidades virtuais de mortos da rede social Orkut.

Como é ter a morte como objeto de estudo? É um tema que ainda provoca certo distanciamento ou a sociedade que acabou mistificando o assunto?

Falar da morte é falar da vida. O problema é que a morte é o desconhecido e, desta forma, só a compreendemos a partir do outro. A história também nos mostra que o processo civilizador contribuiu para o “afastamento” da morte do nosso cotidiano. Phillippe Ariès em sua “História da Morte no Ocidente” demonstra como os homens foram afastando a morte de seu dia a dia e isso, segundo o historiador, deveu-se a um conjunto de fatores relacionados a aspectos culturais, econômicos e sociais. Ele fala de uma morte domesticada, na Idade Média, onde havia uma familiaridade em lidar com esse acontecimento, em contraponto a uma morte romântica, que é a morte moderna, ou seja, a morte do outro. Há uma passagem, segundo o autor, da morte de si à morte do outro.

Em meu trabalho, eu utilizo as referências de Ariès, articulando-as ao contexto do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, na tentativa de demonstrar como as representações da morte foram alteradas, e ainda são, a partir de seus usos. Hoje há de certa forma o que o senso comum denomina como banalização da morte pela mídia em geral, principalmente na apropriação da temática relacionada à violência. No entanto, é complexo, porque quanto mais se fala da morte, mas é difícil lidar com ela. Na minha compreensão, essa incapacidade em lidar com a morte está relacionada à finitude, ou seja, o “homem do progresso”, formado no processo civilizador, desenvolveu tantas tecnologias, mas não conseguiu resolver o fato de que ele próprio tem um fim.

Você trabalha com uma comunidade do Orkut, o “PGM – Perfil de Gente Morta”. Quais são as dificuldades e facilidades de se trabalhar com esta rede social?

O grande problema em realizar uma pesquisa no suporte Internet é a sua fluidez, no caso de uma rede social, principalmente, porque a dinâmica é ainda mais veloz. As informações são atualizadas a cada segundo e a quantidade de material armazenado é imensa, sendo complicado, desta forma, aplicar uma metodologia fechada. Sem contar ainda o paradoxo que é você ter um objeto localizado em um espaço ilimitado, em princípio, mas onde existe a possibilidade de perda constante das informações, na medida em que essa característica é própria dessa tecnologia.

Tudo isso, no entanto, é um desafio, não apenas porque é um território novo, mas porque as características do meio estimulam o desenvolvimento de novos métodos e análises na aplicabilidade da pesquisa.

Em sua dissertação de mestrado, “Tecnologia, Cinema e a Invenção do Corpo Contemporâneo – Do corpo mecânico ao corpo digital”, você discute a trajetória do corpo humano em narrativas construídas do início do século XIX ao século XXI, nas sociedades ocidentais. Neste período, o que mudou na representação corporal e na relação do homem com o seu corpo?

A mudança na representação corporal está intimamente relacionada à transformação tecnológica. Em minha dissertação, eu fiz uma trajetória a partir de três grandes narrativas corporais: o “corpo máquina”, que é o corpo da modernidade, ligado às máquinas, o “bio corpo”, que é o corpo da medicina, dos avanços da genética, da leitura do DNA e da gestão da vida artificial, e o “bit corpo”, que é o corpo da sociedade da informação, das mídias digitais e dos bancos de dados, por exemplo.

Ao longo dessas narrativas, que marcaram o Ocidente, no período entre os séculos XIX e XXI, é possível notar que o homem alterou a representação corporal, na medida em que o desenvolvimento tecnológico permitiu novos usos de dispositivos, principalmente, imagéticos.

Ou seja, o desenvolvimento das tecnologias da imagem foi, aos poucos, alterando nossa representação corporal e, a partir daí, o homem começou a se tornar cada vez mais representação, cada vez mais imagem. É o que acontece, por exemplo, na contemporaneidade da narrativa do “bit corpo”, que é o corpo digital, que está na moda, nas capas das revistas ou na televisão, a partir dos usos de softwares cada vez mais avançados, mas também no resultado de cirurgias plásticas.

Ou seja, parece haver um desejo do homem de cada vez mais “aparecer” em detrimento de “ser”. Isso está relacionado ao desenvolvimento do sistema capitalista, ancorado no consumo, cujo princípio da concorrência é a sua base. Daí a importância cada vez maior do “rótulo”, ou seja, do “corpo”. O corpo transformou-se em pura informação, pura imagem.

A grande referência de sua dissertação foi o filme “S1m0ne: Nasce uma estrela!”. Por que você escolheu esse filme e qual foi o lugar dele dentro do seu estudo?

Não acho o S1m0ne um bom filme em seus aspectos cinematográficos. Ele, inclusive, é considerado filme “tipo B”. No entanto, a escolha foi pela proposta de seu diretor/roteirista em fazer uma espécie de metalinguagem do cinema, destacando os desafios do meio a partir do desenvolvimento de tecnologias de imagem cada vez mais fantásticas.

O filme narra a criação de uma atriz digital e os desafios de seu criador (no filme, um diretor de cinema) em controlar a imagem que ganhou vida própria e autonomia. Como fiz análise fílmica, achei o filme adequado para a pesquisa, na medida em que sua narrativa está relacionada aos usos desses novos dispositivos imagéticos na criação de representações afinadas à lógica da sociedade ocidental capitalista. O corpo digital de S1m0ne é uma síntese do corpo contemporâneo, que não pode adoecer ou morrer e tem que estar sempre belo, segundo os padrões “impostos” pela sociedade.

Renata, as novas mídias estão provocando, segundo alguns autores, uma grande transformação do conceito de memória. Na sua opinião, a tecnologia também tem sido uma forma de o homem driblar a morte e conseguir alguma espécie de eternização?

Há uma busca pela eternidade, mas é claro que isso não é de agora. O homem sempre lutou contra o fato de ser finito. O que eu penso é que hoje existem mais ferramentas que estendem a memória de forma cada vez mais sinestésica. No caso das comunidades virtuais dos mortos, por exemplo, as pessoas reúnem, naquele espaço, rastros diversos num mesmo suporte, como imagem, sons, textos, ou seja, há possibilidade de trazer à tona uma memória mais ativa e interativa.

É difícil fazer previsões, mas com o profundo avanço das novas tecnologias da informação e da comunicação, como você acha que será a relação do homem com o corpo e com a morte nas próximas décadas?

Eu penso que cada vez mais o homem tentará se multiplicar, até pra dar conta desse mundo da informação, cada vez mais veloz e instável. Essa multiplicação dos corpos, ainda que a partir de recursos imagéticos, é uma tentativa de se manter no mundo, de certa forma uma tentativa de se eternizar. Hoje, temos corpos e identidades na Internet, a partir de contas de e-mail, atuação em redes sociais, blogs, fotologs, etc. Talvez, no futuro, por exemplo, possamos utilizar o recurso do holograma para projetar corpos e, assim, doar cada vez mais “materialidade” ao que desejamos duplicar, como os mortos. É difícil fazer uma previsão.

Chegamos ao fim de nossa entrevista. Muito obrigado pela atenção. Mas antes de encerrar, o Café História gostaria de saber: em que etapa está a sua tese? Quando você pretende defendê-la e quais são as suas expectativas em termos de pesquisa?

É sempre difícil colocar um ponto final em um trabalho, principalmente quando se trata de um tema complexo, que atravessa várias áreas e com tantas possibilidades a seguir. De qualquer forma, de acordo com a minha proposta, estou na fase final da pesquisa e, se tudo der certo, pretendo finalizá-la até o início do próximo ano. Como deste trabalho surgiram muitas outras questões, pretendo dar seqüência à temática em um pós-doutorado ou mesmo em um projeto de pesquisa na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), onde leciono.

Como citar essa entrevista

RIBEIRO, Renata Rezende. A morte na “Idade Mídia”: estudos sobre a morte na internet (Entrevista). Entrevista concedida a Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-morte-na-idade-midia. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 28 dez. 2009. Acesso: [informar data].

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

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