A Baleia: uma jornada de luto, culpa e arrependimento

Em seu novo filme, "A Baleia", o diretor Darren Aronofsky traz para as telas uma adaptação da peça do dramaturgo Samuel D. Hunter (1981-) sobre um homem em rota de autodestruição após a morte de seu grande amor.
4 de março de 2023
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Samuel D. Hunter escreveu “A Baleia” tendo sua própria vida e trajetória como inspiração. Nascido em Moscow, Idaho, ele foi compelido a se assumir gay já na adolescência, sofreu com a homofobia provinciana e suas mazelas emocionais refletiram em um ganho rápido de peso durante os anos de universidade.

No filme, Samuel cria um “e se…” caso ele tivesse continuado o caminho que estava posto diante de si. Darren Aronofsky assistiu à peça em uma de suas muitas apresentações e rapidamente vislumbrou no roteiro material rico para um longa-metragem.

Para os que estão familiarizados com a obra cinematográfica de Aronofsky não é segredo algum que o diretor, roteirista e produtor se expressa, não raramente, usando os extremos dos comportamentos humanos. Ora aborda o vício em drogas em obras como “A Vida Não É Um Sonho” (2000), ora as profundezas da alma humana como em “Cisne Negro” (2010). Também não é raro em seu oeuvre uma jornada de modificação corporal baseada na busca de aceitação e fama que acaba por deteriorar lentamente seus personagens, como em “O Lutador” (2008). O ponto convergente de sua obra é uma visão desiludida do humano, o que, não raramente, nos arrasta a lugares incômodos e quase insuportáveis dentro de nossas cabeças.

Em “A Baleia” (original The Whale – USA/2022) Aronofsky e Hunter trabalharam juntos para transpor dos palcos para o cinema toda a gama de sentimentos de Charlie, interpretado brilhantemente por Brendan Fraser, um homem solitário que vem seguindo um caminho sem volta de deterioração física, emocional e psicológica desde a perda de seu grande amor e companheiro de vida. Charlie é um excelente professor universitário de ensaios literários, ministra suas aulas via EAD, mas nunca permitiu a seus alunos que o vissem pela câmera. Há muito tempo Charlie não sai de casa, não cuida da saúde, não vê muitas pessoas. Uma de suas grandes dores foi o seu afastamento compulsório da filha, na época com 8 anos, por ele assumir uma relação homoafetiva com um de seus estudantes. Tudo em Charlie é machucado, e apesar do foco em sua aparência como alegoria para sua ruína, a parte mais evidente da tremenda dor que carrega é revelada pelos seus olhos e pela sua voz. Ao seu lado ele tem a fiel amiga Liz (Hong Chau), uma enfermeira que o acompanha e tenta fazer os seus dias o mais confortável possível sem criticar com clichês e sem esmiuçar os motivos de Charlie. Liz os conhece bem, mesmo que no fundo, ela não queira aceitar o caminho escolhido por ele.

O filme, mesmo antes de ser lançado, gerou uma onda de críticas em relação à patologização da obesidade e do uso das chamadas fat suits (trajes de gordura) vestidos por atores para representar pessoas gordas e que muitas vezes já contribuiu para o estigma do grupo com representações de gosto duvidoso em filmes de comédias como “O Professor Aloprado” (1996), com Eddie Murphy, interpretando diversos personagens usando fat suits como uma característica depreciativa, ou em comédias românticas como “O Amor É Cego” (2001), com Gwyneth Paltrow, onde, bem, o título em português é autoexplicativo.

Não foram raras as alegações de crueldade e de voyeurismo da obesidade. Aronofsky não é famoso pela sobriedade de suas representações. Ele busca sempre o limite, o que, às vezes, pode beirar uma caricatura de mau gosto. Tanto que “A Baleia” foi classificada como uma espécie de fat horror por uma ala da crítica.

Sabendo isso de antemão, apelei para um artifício ao assistir “A Baleia” – reduzi a luminosidade da minha tela, diminuindo assim a importância e o impacto da apelação visual e concentrando apenas nas vozes, e, algumas vezes, nos olhares. E só pude chegar a uma única conclusão – Brendan Fraser é espetacular.

Desconectando a caracterização, o que nos resta é uma alma partida de alguém que perdeu completamente o interesse de continuar vivendo. O que sentimos é um ser humano em rota de colisão irremediável e desesperançada. E nesse caminho pouco importa o figurino, a maquiagem ou o método escolhido para se alcançar o objetivo, quer seja ele por meio de drogas, comida, a ausência de comida, sexo ou qualquer outra forma de se obter o resultado desejado – a não existência.

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Filme está em cartaz nos cinemas brasileiros. Foto: reprodução.

A dor de Charlie é profunda demais para ser remediada. O luto diário que mantêm pelo seu amor perdido violentamente é insuperável, a ausência da filha e a culpa que o ronda de forma repetitiva o oprimem. Charlie tanto ruminou suas dores que se entregou a elas. O ponto de retorno já foi há muito abandonado. A depressão retirou a luz quase que completamente de sua rotina. E é exatamente no final de sua jornada que ele faz um último esforço desesperado para reatar o contato com sua filha Ellie (Sadie Sink), uma adolescente, que segundo as palavras da própria mãe (Samantha Morton numa aparição relâmpago) é simplesmente uma menina má. Charlie se nega a acreditar nisso, mesmo em toda a escuridão em que vive, ele ainda nutre a esperança na luz de Ellie. Da mesma forma, ele acolhe Thomas (Ty Simpkins), um jovem que escolheu pregar a palavra de deus como sendo a forma irrefutável da salvação humana.

“A Baleia”, em parte por ser uma dramaturgia adaptada do teatro, é encenada com poucos personagens, tendo como única locação a casa de Charlie, e, na maioria das cenas, apenas sua sala de estar. A fotografia é escura em quase sua totalidade, em parte para cooperar com os esforços de tornar a caracterização física mais verídica, mas também como uma alegoria da profunda depressão do protagonista. A música segue o mesmo caminho, assim como a edição. Tudo nos conduz para a melancolia e para a desesperança. Aronofsky sendo Aronofsky, portanto.

“A Baleia” é uma tragédia humana real sendo arrastada para o macabro, uma câmara de vácuo e ausência de luminosidade, um palco trágico, uma jornada de redenção e purificação por meio do sofrimento e do sacrifício. Poderia não ser assim, como aponta Samuel ao falar de seu roteiro, mas foi. Brendan Fraser é um forte candidato para o Oscar de melhor ator, preenchendo todos os requisitos que Hollywood busca em personagens – um protagonista que retorna das cinzas após ser massacrado e abandonado pela indústria cinematográfica, um roteiro tenso, teatral e dramático e um personagem que requer modificações físicas complexas da parte do ator para ser interpretado.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

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