O país está vivo, mas não muito bem: a difícil vida da democracia em Mianmar 1
Vigília em apoio ao governo de Mianmar, em oposição ao golpe militar. Foto: Agência Fotográfica de Macau, Unplash.

O país está vivo, mas não muito bem: a difícil vida da democracia em Mianmar

O que o recente golpe militar nos diz sobre este pequeno país asiático? O cientista político Stefano Ruzza argumenta que, embora a semidemocracia do país não esteja morta, é improvável que o Mianmar jamais escape de intervenções autoritárias ocasionais.
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Em 1º de fevereiro de 2021, os militares das Forças Armadas de Mianmar, conhecidas como Tatmadaw, tomaram o controle do governo das mãos de Aung San Suu Kyi, líder da Liga Nacional para a Democracia (NLD) e Conselheira de Estado. O golpe interrompeu dez anos de governo civil no país.

Enquanto figuras políticas proeminentes eram presas sob uma variedade de pretextos, o comandante-chefe do Tatmadaw, Min Aung Hlaing, tornou-se a autoridade máxima do país. Mianmar está agora sob o governo direto de um general, como aconteceu entre 1962 e 2011.

Para entender a razão por trás da tomada do poder e as perspectivas do regime, devemos lembrar as origens da semidemocracia de Mianmar. A democratização parcial do país foi planejada pelo próprio Tatmadaw. O objetivo era libertar Mianmar da estagnação econômica e estreitar os laços com outros países da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). No cenário mais amplo, o Tatmadaw tinha como objetivo tirar o país da zona de influência da China.

As reformas lideradas pelos militares estabeleceram o regime semidemocrático por meio da ratificação da Constituição de 2008. A Carta garantiu eleições multipartidárias competitivas, ao mesmo tempo que formalizou o controle do Tatmadaw sobre as principais áreas políticas. A Constituição deu ao Tatmadaw três ministérios: interior, defesa e fronteiras, e negou o controle civil sobre os militares.

Os militares garantiram ainda o controle formal e informal sobre a economia do país. E mantiveram as revoltas étnicas sob controle por meio de um sistema que combinava “recompensas econômicas” com “punições militares”.

A tomada militar do país em 1º de fevereiro é tecnicamente legal de acordo com as disposições da Constituição de 2008. Como tal, ele não é estritamente um golpe, mas sugere que os militares podem não ter abandonado inteiramente a democracia limitada que eles projetaram e co-governaram por dez anos. Talvez o que está acontecendo seja apenas um interlúdio durante o qual os militares reajustam a música de acordo com suas preferências.

O que está incomodando os militares? O sistema eleitoral

O que o Tatmadaw deseja mudar? Os militares alegaram fraude eleitoral para justificar a tomada do poder. Mas isso pode ser descartado. Para entender os acontecimentos no país, vale a pena perguntar se os resultados eleitorais de 2020 representam uma ameaça aos interesses do Tatmadaw.

Nestas eleições, a Liga Nacional para a Democracia (NLD), da agora deposta Aung San Suu Kyi, venceu por uma avassaladora margem, enquanto que o Partido União de Solidariedade e Desenvolvimento (USDP), apoiado pelos militares, se saiu mal. Mas esses resultados são muito próximos aos da eleição de 2015. Comparando 2020 com 2015, o NLD ganhou 6 assentos (de 390 para 396), ao passo que o USDP perdeu 9 (de 42 para 33). De qualquer forma, o Tatmadaw controla, pela Constituição, 166 (25%) das 664 cadeiras. Esta é uma parcela grande o suficiente para vetar qualquer tentativa de reforma constitucional, não importa o que aconteça na votação.

Então, por que a reação diferente do Tatmadaw aos resultados de 2020? Uma resposta possível é a percepção inicial de que o sistema eleitoral que ele adotou em 2010, o sistema de maioria unaminitária, não é idealmente adequado para preservar sua base de poder, não importa se fazendo um jogo limpo ou manipulando os resultados.

No início, isso não era evidente, haja vista que o NLD boicotou as eleições de 2010. Mas as movimentações do NLD nas eleições de 2015 eclipsaram a votação no USDP. Isso se repetiu em 2020. E a Comissão Eleitoral da União, que supervisiona as eleições, até então sob o controle indireto do Tatmadaw, foi tirada dele pelo NLD após 2015.

O caminho do Tatmadaw: insurgentes derrubados e China fora

Em uma declaração de 1º de fevereiro de um alto General, o Tatmadaw também se referiu ao processo de paz para justificar a tomada de poder. Ao longo de sua história, a principal preocupação do Tatmadaw tem sido proteger a soberania e a unidade de Mianmar, controlando a interferência estrangeira no país e as insurgências étnicas dentro das fronteiras.

Em 2010, após as eleições que foram boicotadas pelo NLD, o ex-general Thein Sein foi empossado como presidente civil de Mianmar. Ele havia lançado um processo de paz, alcançando em 2015 um Acordo de Cessar-Fogo Nacional, o primeiro cessar-fogo multilateral na história do país. Mas esse cessar-fogo foi assinado por apenas oito das mais de vinte Organizações Armadas Étnicas (EAOs) no país, o que representou apenas cerca de 20% dos combatentes. Portanto, era “nacional” apenas no nome.

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“Não aceitamos golpe militar”, manifestantes em frente a Casa Branca, Pennsylvania Avenue Northwest, Washington, DC, EUA. Foto: Gayatri Malhotra.
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“Povo Livre de Mianmar”, , manifestantes em frente a Casa Branca, Pennsylvania Avenue Northwest, Washington, DC, EUA. Foto: Gayatri Malhotra.

Durante o governo do NLD, o processo de paz acabou encalhando. Apenas mais duas organizações minúsculas para o chamado o acordo legal. O processo acabou ganhando “duas cabeças”: as autoridades políticas e militares deixaram de convergir. Este é apenas um dos muitos fatores que impulsionaram progressivamente os EAOs não signatários a lançar um processo alternativo convocando a participação da China.

O Tatmadaw vê a interferência da China nos assuntos internos de Mianmar com grande preocupação. A tomada militar pode, portanto, ter como objetivo restaurar o ímpeto do processo de paz (e contra insurgência), enquanto mantém a China afastada. Em novembro de 2020, o Tatmadaw criou uma nova equipe militar de negociação. Poderia ter sido o primeiro passo em uma tentativa mais geral de revitalizar a gestão dos EAOs e o processo de paz.

De volta ao futuro: a semidemocracia de Mianmar

O Tatmadaw vai deixar o poder em algum momento? Dado que os objetivos originais da democratização parcial de Mianmar – relançar a economia, distanciar-se da China e reforçar os laços com outros países da ASEAN – ainda não foram alcançados, parece isso só vai acontecer depois de se consertar tudo o que os militares sentem que precisa ser consertado, o que atualmente não está claro.

Mesmo assim, é improvável que os militares “voltem ao quartel” para sempre. Assim como fizeram depois de 2008, o Tatmadaw manterá suas mãos nas alavancas do poder nos bastidores. Caso surjam novas ameaças à sua ideia de governança, os militares do Tatmadaw estarão prontos para intervir novamente.

Este artigo é uma tradução devidamente autorizada do artigo original em inglês “Alive but not well: it’s a hard life for Myanmar’s democracy”, publicado no blog The Loop, especializado em ciência política internacional.

Como citar este artigo

RUZZA, Stefano. O país está vivo, mas não muito bem: a difícil vida da democracia em Mianmar. In: Café História. Tradução de Bruno Leal Pastor de Carvalho. Original em: The Loop. Publicado em 12 abr. de 2021. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-dificil-vida-da-democracia-em-mianmar/. ISSN: 2674-59.

Stefano Ruzza

Professor Associado de Ciência Política na Universidade de Torino e Chefe de Pesquisa do T.wai - Torino World Affairs Institute. Stefano ensina Ciência Política e Estudos sobre Paz e Conflitos na Universidade de Torino.
Ele também é um Associado de Ideias da LSE e membro da Missão Etnológica Italiana na África Equatorial. Os interesses de pesquisa de Stefano são os processos de transição e paz de Mianmar, transformação de conflitos (com foco em Mianmar e Uganda) e empresas privadas militares e de segurança.

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