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Imagem do Codex Manesse, um livro de poesia feito em Zurique por volta de 1304-5. Cada imagem, incluindo esta, retrata os poetas deste livro. Em destaquem, Konrad von Altstetten abraçando sua amante. (Codex Manesse, UB Heidelberg, Cod. Pal. germ. 848, fol. 249v).

A corte amorosa no medievo ocidental

Abordar o amor cortês é imaginar um tempo medieval múltiplo, capaz de oferecer aos estudantes e às pessoas em geral, um mundo onde existem múltiplas possibilidades e modos de vida.
22 de dezembro de 2022

Será que faz sentido falar em amor na Idade Média, quando imaginamos, por muito tempo, que o medievo foi uma época habitada apenas por guerras, pestes e violência? Como podemos pensar na emergência do amor romântico em uma sociedade de homens, que enaltecia os feitos dos cavaleiros e que deixava para as mulheres apenas a farsa de um casamento arranjado?

Certamente, nenhum medievalista iria discordar de que ocorreram sim guerras e pestes entre os séculos V e XV, na Europa Ocidental; como também, dificilmente discordariam de que aquela sociedade era predominantemente masculina. Pesquisas nem tão recentes e também novas concepções teóricas sobre o próprio fazer historiográfico, mostram que o medievo era uma época constituída por muitos tempos, muitas subjetividades e muitos modos de vida. Ainda que se possa determinar elementos que predominam, nos aspectos econômicos, culturais ou sociais, não se pode desconhecer as inúmeras experiências de vida que cruzaram os espaços e os tempos medievais. Essas experiências são cada vez mais visibilizadas e problematizadas pela medievalística, já há um bom tempo.

Nesse sentido, abordar o amor cortês é necessário para escapar do modelo de narrativa histórica construído sobre o medievo e também sobre outros povos e épocas; é ainda importante para imaginar um tempo medieval múltiplo, capaz de oferecer aos estudantes e às pessoas em geral, um mundo onde existem múltiplas possibilidades e modos de vida. Isso significa que a História se caracteriza por mostrar que a realidade é plural e não está limitada às narrativas predominantes que estamos acostumados a escutar, a ler em manuais didáticos ou a assistir em filmes e séries. Estudar as formas amorosas no medievo é um modo de criar possibilidades para pensar outros mundos no passado, mas também de imaginar novos mundos no futuro.

Mas o que é esse “amor cortês”?

O amor cortês, também denominado fin’amor ou amor delicado, nos é conhecido, principalmente, através da poesia e das cansos dos trovadores medievais, que criavam versos para serem cantados nas festas das cortes nobres. O trovadorismo medieval constitui-se em um conjunto de versos escritos em língua vulgar, ou seja, nas línguas faladas nas regiões onde foram escritos, e não mais em latim, que recobre uma vasta documentação com inúmeros poetas e diversas poesias. Vale destacar que o primeiro grande trovador, que foi também grande senhor, foi Guilherme IX, duque da Aquitânia e Conde de Poitiers, de quem temos 10 cansos escritas em língua d’oc e traduzidas para o português.

O movimento trovadoresco nasce no sul da França, na região do Languedoc, no século XII, e daí se espalha pela Europa Ocidental. Mas, do que nos falam os versos criados pelos trovadores? O tema central do amor cortesão é o trio eternal, que consistia em uma relação amorosa adúltera entre um cavaleiro e uma grande Dama, esposa de um grande senhor; o amor à uma Dama inatingível, uma mulher idealizada, jamais tocada pelo trovador; e a ideia de um sofrimento alegre, uma espécie de alegria por esperar e por ter apenas a promessa de um amor que nunca se realiza.  

Canso X de Guilherme IX: Com tempo doce e renovado

Com tempo doce e renovado
brotam os bosques e em todo o lado
aves cantam em seu latim,
segundo as leis do novo canto;
bom é que cada qual, enfim,
encontre o que queria tanto.

Lá de onde está o meu agrado
não vejo vir nenhum recado.
Dormir não posso ou rir, assim,
nem ouso adiantar-me enquanto
não saiba se o que vem no fim
é o que peço, o meu encanto.

O nosso amor parece afim
do espinheiro na ruim
noite em que treme com o quebranto
da chuva e do vento gelado
mas de manhã vemos com espanto
esbelto e verde ao sol dourado.

Lembro a manhã em que o clarim
da paz me trouxe um novo sim
e o dom que tenho por mais santo:
o seu anel, ou o noivado.
Que Deus me deixe viver quanto
baste para ter seu corpo amado.

Não separa qualquer latim
o meu Bom Vizinho de mim,
pois sei entendê-lo entretanto
por este célebre ditado:
de amor se gabam tantos tanto,
e é nosso o seu melhor bocado.

O fin’amor, cultuado e cantado nas cortes da nobreza medieval, é uma relação, em geral, adúltera e constituída por um trio amoroso. Esse trio consiste, como já afirmei, em um grande senhor (um suserano), sua grande Dama (esposa) e um cavaleiro (geralmente despossuído de terras), vassalo do grande senhor. Daí a ideia de uma vassalagem amorosa. Essa relação de vassalagem foi muito utilizada como metáfora para as relações amorosas descritas nos versos dos trovadores, como uma transposição do conceito que serviu para dar sentido às relações entre homens nobres, na época feudal, na Europa Ocidental, para as relações amorosas descritas pelos trovadores, entre um cavaleiro e uma Dama de alta linhagem.

Tal como na relação vassálica entre os homens, o cavaleiro – o amante – está a serviço da Dama – a amada -, devendo-lhe fidelidade e lealdade, mas também com submissão e devoção a ela, a pessoa amada. Trata-se de uma relação na qual um amante é despojado de todos os seus limites identitários para servir à sua Dama. A vassalagem amorosa, implicaria, então, em uma absoluta abertura do amante à sua amada. Essa abertura é como uma cesura temporal, na qual a hesitação do amante em relação a si mesmo, disposto a um padecimento (paixão), é o que lhe permite oferecer os seus serviços à Dama, sem que ela lhe retribua, senão com a promessa do seu amor.

Nesse sentido, amar consiste em sofrer. Ou seja, sofrer de amor é uma espécie de alegria ou um sofrimento alegre, já que é o combustível para a produção literária, para a lírica trovadoresca. A promessa do amor é mais importante que a consumação da relação carnal. O articular central da vassalagem amorosa é, portanto, a promessa do amor. Ela é a potência que mantém o amante capaz de se transformar constantemente para se fazer merecedor do amor da Dama, se tornando cada vez mais virtuoso.

A corte amorosa no medievo ocidental 2
Miniatura marginal de um casal se abraçando. 
(British Library Stowe 17 f. 143). Medievalists.net.

O amor cortês, entretanto, revela um forte elemento de sensualidade e erotização, que são controlados através de uma educação dos sentidos e de uma idealização do próprio amor.

Essa relação amorosa descrita nos versos do trovadorismo, pode também ser encontrada em uma vasta literatura do ciclo arturiano ou na literatura de cavalaria, onde personagens como, por exemplo, Guinevere, Arthur e Lancelot constituem um trio amoroso, talvez dos mais conhecidos das pessoas em geral.

Importante destacar que o amor cortês pode ser visto como um movimento que se opõe ao casamento, definido como um elemento político central das relações feudais e, ao mesmo tempo, consiste em uma forma amorosa distanciada da religião e dos limites impostos pela moral católica.

Usos do passado medieval

A nossa sociedade, desde o século XIX, criou uma série de usos do passado medieval, e certamente o tema da cavalaria e do amor foram elementos muito comuns, sobretudo, no cinema e, atualmente, também em jogos e séries de streaming. Poderíamos citar muitos filmes em que o amor cortês fora tematizado, tendo como base romances de cavalaria, mas citamos dois exemplos: Tristão e Isolda, de 2006, dirigido por Kevin Reynolds, aborda a relação amorosa entre dos dois amantes, foi tema de 3 romances, um deles, do século XII, de Béroul; Em nome de Deus,  de 1988, trata do amor entre o filósofo Pedro Abelardo e Heloísa de Argenteuil e se vale de um compilado de cartas, que recebem o título de Historia Calamitatum ou a História de Minhas Calamidades, uma autobiografia de Pedro Abelardo.

Precisamos considerar, entretanto, que o amor cortês consiste em um movimento que vemos na literatura e, além disso, um privilégio das classes nobres, excluindo camponeses e camponesas. André Capelão, que escreveu um tratado sobre o amor, no início do século XIII, afirmava que as mulheres camponesas não eram dignas de serem amadas, uma vez que suas tarefas de trabalho na terra as tornavam não apenas necessárias nessas funções, como rústicas e incapazes de fazer parte da corte amorosa.

Mas, amar ou a existência de formas de amar não é o mesmo que ausência de violência, brutalidade, guerra ou coisa parecida. Digamos que o amor romântico nasceu sim na Idade Média, mas isso não faz daquele período, particularmente no Ocidente cristão, uma época de paz e concórdia.

É sempre importante destacar que não somente os homens escreviam versos e realizavam a corte amorosa. Houve, no medievo, mulheres trovadoras, conhecidas como Trobairitz, que inverteram a corte amorosa, sendo, então, a mulher aquela que realiza a corte e que se torna a protagonista de uma prática que era, aparentemente, apenas masculina. 

Bels amics, avinenz e bos,                                     Belo amigo, cortês, charmoso,
Quora´us tnerai em mon poder                            Quando em meu poder vos terei
Et que jagués ab vos um ser,                                 E junto a vós me deitarei
Et qu´us dês um bais amoròs?                              Para dar-vos beijo amoroso?
Sapchatz, gran talan n´auria                                  Em meus braços, como almejo
Que´us tengués en luòc del marit                         Ter-vos em lugar do marido!
Ab çò que m´aguessetz plevit                               Que vós cumprais o prometido:
De far tot co qu´eu volria“                                       Será tudo ao meu desejo!
                                                                                    
Beatriz de Dia/Condessa de Dia

As Trobairitz mostram que há muito mais no medievo do que apenas guerras, violência e pestes, há muitas formas de vida, muitas temporalidades e muitas relações que podem oferecer ao nosso presente problematizações sobre o que somos e sobre o que nos tornamos, na perspectiva de imaginar novos futuros.

Referências

BLOCH, Howard R. Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.

CAPELÃO, André. (c. 1186). Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CHRÉTIEN DE TROYES. Lancelot ou O Cavaleiro da Charrete. In: Romances da Távola Redonda. Trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

DEPLAGNE, Eleonara de Freitas Calado. Gênero em desafio: das trobairitz provençais às repentistas nordestinas. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 35, p. 193-205, jan.-jun. 2010. In: BEC, Pierre. Chants d’amour des femmes-troubadours. Paris: Stock,1995, p.105.

GUILLERME IX DE AQUITÂNIA. Poesia. Tradução e introdução de Arnaldo Saraiva. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009

PEREIRA, Nilton Mullet. Amor e interioridade no Ocidente Medieval: as cansos de Guilherme IX. Ler História, v. 57, 2009. Consultado no dia 23 novembro 2022. Disponível em https://journals.openedition.org/lerhistoria/1818.

RODRIGUES, A. G.; PEREIRA, N. M. As Trobairitz irrompem no banquete de Sócrates: ensino de história, Idade Média e imaginação na aprendizagem em história. Ponta de Lança: Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura, v. 16, n. 30, p. 14 – 33, 25 jul. 2022. Disponível em https://seer.ufs.br/index.php/pontadelanca/article/view/17521.

TROCH, Lieve. Mística feminina na Idade Média. Historiografia feminista e descolonização das paisagens medievais. Revista Graphos. V. 15 n. 1. João Pessoa, PB, 2013.

Como citar este artigo

MULLET, Nilton. A corte amorosa no medievo ocidental (Artigo) In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-corte-amorosa-no-medievo-ocidental/. Publicado em: 22 dez. 2022. ISSN: 2674-5917.

Nilton Mullet

Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1992), Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1998) e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2004). Pós-doutorado em História Medieval, na UFRGS. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da área de Ensino de História. Professor do Mestrado Profissional em ensino de História – UFRGS. Pesquisa as relações entre a imaginação e aprendizagem histórica.

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