Uma xícara de Chá que transformou o outro lado das Tordesilhas

Pelas mãos de mestres japoneses como Sen no Rikyū (1522-1591) o chá passou de uma simples bebida para se tornar uma cerimônia.
22 de novembro de 2022
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Detalhe de um Namban byobu. No canto superior esquerdo vemos um jesuíta em veste negra conversando com um catequista ou visita em veste azul, e o dōjuku de cabeça raspada carregando um chawan. Copywriters: Nanban Bunka-kan, Osaka.

Não está claro entre os especialistas se foram os indianos ou chineses os primeiros a ferver folhas de Camellia sinensis e beber como remédio. Mas é certo que utilizar o chá como celebração social foi uma invenção chinesa, como descrito no Clássicos do Chá (Chajing) de Lu Yu. Já no Japão, o chá foi introduzido por monges budistas a partir do século VIII, mas foi pelas mãos de mestres japoneses como Sen no Rikyū (1522-1591) que o chá passou de uma simples bebida para se tornar uma cerimônia complexa e parte da essência estética japonesa.

Neste artigo, você vai conhecer um pouco sobre a vida do mestre Rikyū, figura marcante na história do consumo de chá e cujo nascimento completa 500 anos em 2022. Veremos qual foi o papel estético e político da cerimônia do chá; seu impacto no Japão e nos jesuítas do século XVI. E como meio milênio depois ainda são utilizados os mesmos conceitos e arquétipos para definir a arte japonesa dentro deste constante choque cultural.

Afinal de contas, quem foi Rikyu?

Reconstruir a biografia de Sen no Rikyū é uma tarefa árdua já que ele mudou de nome diversas vezes. Ao nascer em 1522, oriundo de uma família de mercadores de Sakai, na atual Prefeitura de Osaka, recebeu o nome de Tanaka Yoshirō. Ainda adolescente, começou seu treinamento no chá com o mestre Kitamuki Dōchin, e a partir dos 19 anos continuou seus estudos com o mestre Takeno Jōō, praticante do estilo wabi-cha, criado por Murata Jukō.

De forma sucinta, o estilo wabi-cha buscava representar o caráter nostálgico frente a fugacidade da existência humana por meio da simplicidade das formas, aparência assimétrica e aspecto rústico dos objetos. Foi nesta época também que Rikyū começou a estudar budismo com o mestre Dairin Sōtō no templo Nanshūji e recebeu o nome de Sōeki, pelo qual foi conhecido até 1585, já no Período Azuchi-Momoyama (1573–1603), quando recebeu o título de Rikyū Koji pelo imperador.

A política do chá (chanoyu goseidō) e o fim trágico

Durante o período instável de guerras civis no Japão, o Sengoku (1467-1615), samurais como Oda Nobunaga viram na cerimônia do chá um modo de afirmação social e consolidação de alianças. Segundo o Nanbouroku, clássico que relata os ensinamentos de Rikyū, a cerimônia era idealizada para poucos convidados, sempre em um ambiente recluso. Rikyū também criou uma pequena entrada na casa de chá Taian que impunha aos convidados deixarem suas espadas (Katanas) do lado de fora para poder entrar.

Neste ambiente supostamente neutro e na presença do mestre do chá, alianças eram formadas mesmo em silêncio. Um caso envolvendo o Daimio Cristão Ōtomo Sōrin exemplifica isso. Em 1586, Sōrin foi visitar Hideyoshi para pedir apoio militar. Ele foi recepcionado com uma cerimônia de chá no qual nada foi dito sobre o assunto em questão. Contudo, pouco antes de retornar ao seu aposento lhe foi informado que o kampaku (título de Hideyoshi) estava ciente da petição.

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Sen no Rikyū. Copywriters: Sakai City Museum.

Sōrin ainda relata que as questões públicas seriam resolvidas pelo conselheiro Saishō, e questões privadas pelo mestre Rikyū. Desta forma, tratando-se de uma aliança militar da qual Hideyoshi ainda não havia decidido por um lado, isso seria resolvido discretamente por Rikyū. Ironicamente, foi o próprio Hideyoshi quem ordenou ao mestre Rikyū a cometer seppuku – tradicional suicídio japonês – aos setenta anos de idade em 1591.

A questão estética do Wabi-cha

O termo wabi vem do verbo waburu, que originalmente tinha o sentido melancólico de “declinar para um estado de tristeza e abandono”, como utilizado na primeira antologia poética japonesa chamada Man’yōshū, na peça de teatro Nō Matsukaze, criada pelo dramaturgo Kan’ami Kiyotsugu, e nos poemas em estilo waka de Fujiwara no Teika. No entanto, a partir do período Higashiyama, no final do século XV, o termo foi reinterpretado pelo poeta Kamo no Chōmei e o mestre do chá Murata Jukō como uma “simplicidade” e “nostalgia” almejada.

Em suma, a genialidade de Rikyū consistiu em sistematizar uma série de princípios filosóficos e estéticos preexistentes na cultura japonesa oriundos do ascetismo Zen budista acerca da fugacidade e evanescência da existência humana, expressadas pelo termo mujōkan. Uma verdadeira alegoria à simplicidade e à busca da beleza no aspecto rústico e assimétrico, como vemos na chawan (literalmente, “tigela de chá”) logo abaixo.

A suposta “imperfeição” do wabi diverge drasticamente do pensamento ocidental pós-renascentista, cujas peças distorcidas são lidas como falhas. Dentro do wabi-cha, ao contrário, a feição assimétrica e rústica é apreciada como símbolo de singularidade e manifestação da própria natureza por meio da peça. Por exemplo, olhe ao seu redor, folhas de uma mesma árvore não possuem o mesmo tom de verde, nem as plumas de um pássaro possuem o mesmo formato. Em suma, a assimetria é parte da natureza.

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Chawan em estilo Raku Negro chamada “Koto”. Produzida pelo mestre Chojiro 450 anos atrás. Copywriters: Kyoto City Museum

Este conceito pode ser interpretado não apenas sobre matéria, mas no próprio tempo. Particularmente, gosto muito de um ditado chinês que diz: “todos os anos o outono vem, as folhas caem, mas não são as mesmas folhas”. O caráter nostálgico aderido aos objetos vem justamente desta compreensão – consciente ou subconsciente – de que o tempo não volta. E isso fica muito claro na definição da cerimônia do chá como Ichigo-ichie, literalmente “uma vez, um encontro”.

Rikyū e os Jesuítas

O nome de Rikyū não aparece diretamente escrito nos relatos europeus. O mais próximo que temos são descrições que se assemelham a sua pessoa. Por exemplo, em João Rodrigues Tçuzu lemos que “(…) certo homem de Sakai versado em chanoyu construiu uma casa de chá de outra forma. Era menor e situada entre algumas pequenas árvores (…)”. De fato, a descrição é muito próxima à mencionada casa de chá Taian, construída por Rikyū com apenas dois tatames em 1582. Além do que João Rodrigues era confidente do Daimio Cristão Takayama Ukon, praticante do caminho do chá e um dos sete proeminentes discípulos de Rikyū, os Rikyū shichitetsu.

Para os europeus, a simplicidade encontrada nos objetos de barro e bambu gerou questionamentos estéticos . Todavia, isso não lhes impediu de compreender a importância política da cerimônia do chá. O próprio Valignano, no posto de Visitador Geral das Índias, instruiu que cada colégio e residência tivesse um espaço para servir chá. É claro que devemos questionar se as regras foram observadas em todas as residências, contudo é certo que o processo de aculturação foi uma marca da campanha lusitana às margens do Tratado de Zaragoza (1529). 

Cabe ressaltar que o chá – assim como café e chocolate – era desconhecido pelos europeus no século XVI. Os portugueses apenas descreveram a bebida, mas foram os Holandês e Ingleses que efetivamente iniciaram a importação do Chá por meio da Companhia das Índias Orientais no século XVII.

Meio milênio depois

Diferenças na percepção estética intrigaram os primeiros europeus e ainda permeiam a nossa imaginação sobre o oriente “exótico”. Contudo, o que a história nos prova é que Rikyū foi um verdadeiro mestre de seu tempo ao consolidar uma identidade estética e propiciar um ambiente reservado para os samurais durante um período turbulento de guerras e ascensão social. Os Mestres do chá, que também eram conselheiros, arquitetos e curadores, continuaram a busca pela simplicidade do wabi-cha durante o período Edo (1603-1867), tornando-o parte da alma estética japonesa. Hoje, sua influência ainda pode ser vista nos objetos do estilo wabi-sabi e no minimalismo japonês contemporâneo.

Ao fim, só nos resta dizer, mestre Sen no Rikyū, feliz aniversário! E para comemorar, nada melhor que uma xícara de chá, aqui, do outro lado das Tordesilhas.

Referências

BODART, B. M. (1977). Tea and Counsel. The Political Role of Sen Rikyu, Monumenta Nipponica, Vol. 32, No. 1, pp. 49-74.

CENTRO DE CHADO URASENKE DO BRASIL. (1995). Chanoyu: arte e filosofia. São Paulo: Aliança Cultural Brasil-Japão.

HIOKI, N. F. (2008). Tea ceremony as dialogical space: The Jesuits and the way of tea in early modern Japan. Tese de Doutorado, Boston College, Theology department.

JUNIPER, A. (2003). Wabi-sabi: the Japanese art of impermanence. Tōkyō: Tuttle Publishing.

OKAKURA, K. (2008). O livro do chá. São Paulo: Estação Liberdade

ROCHA, R. (2014). Os Jesuítas no Japão e a Arte do chá. Review of Culture, 46, pp. 80-93.

Outras obras

João Rodrigues Tçuzu, “História da Igreja no Japão”, coleção Jesuítas na Ásia 49-IV-53 (ff. 2 a 181). Cortesia da Biblioteca da Ajuda, Lisboa.

Como citar este artigo

ROCHA, Joanes. Uma xícara de Chá que transformou o outro lado das Tordesilhas (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/uma-xicara-de-cha-que-transformou-o-outro-lado-das-tordesilhas/. Publicado em: 22 nov. 2022. ISSN: 2674-5917.

Joanes Rocha

Historiador arquitetônico e orientalista. Doutorando em História da Arquitetura pela Universidade de Tokyo, Japão. Bacharel em ambos Arquitetura e História, mestre em Teoria e História da Arquitetura pela Universidade de Brasília. Professor universitário e pesquisador do Núcleo de Estudos Asiático (NEASIA-UnB), ICOMOS-Brasil e Academia Sinica, Taiwan.

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