Um Napoleão que não faz política? Sobre o filme de Ridley Scott 1
Napoleão em "Napoleão": um general sem paciência para escutar sobre política. Foto: reprodução.

Um Napoleão que não faz política? Sobre o filme de Ridley Scott

O Napoleão de Ridley Scott é um homem contemplativo que, afeito ao campo militar e perturbado pelas relações amorosas, enxerga a política como um falatório de homens presunçosos que, não obstante, são úteis enquanto lhe fornecerão meios de ascensão social.
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As representações cinematográficas sobre Napoleão Bonaparte são tão antigas quanto o próprio cinema. Em 1897, dois anos após a invenção do cinematógrafo, os irmãos Lumière, em Lyon, exibiram uma série de filmes históricos, o que incluía uma produção sobre o encontro entre Napoleão e o Papa. A projeção durou 49 segundos e foi realizada por Georges Hatot e Gaston Breteau. A cena fundamenta-se no relato de Alfred de Vigny, Servitude et grandeur Militaires, de 1835, e reaparecerá nos filmes clássicos de Abel Gance (1926) e Sacha Guitry (1955). 

De início a fim, o Napoleão de 1897 é um indivíduo radicalmente político: sua entrada em cena invoca sua autoridade e liderança nas negociações com o papado; sua fúria é despertada pela falta de atenção do papa em relação às manobras napoleônicas; sua saída é motivada pela recusa insistente do papa em atender sua solicitação. Enraivecido, o Imperador Corso descarta o papel que desejava que ele assinasse e sai de cena. As duas figuras contrastam o poder político e o poder religioso de forma tão bela que nos remetem a uma célebre passagem de Victor Hugo em Hernani (1830), na qual o papa e o imperador são descritos como “as duas metades de Deus.” 

Na outra ponta, contra os 49 segundos dos irmãos Lumière, o filme de Ridley Socott, Napoleão, conta com 2 horas e 38 minutos – quase a mesma duração da coroação de Bonaparte em Notre-Dame, 1804, que se estendeu por três horas. A diferença entre os dois filmes, contudo, não se limita a duração ou ao ano de lançamento.

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Napoleão de Georges Hatot e Gaston Breteau, em 1897. Foto: La Cinémathèque française

Apesar do filme de Hollywood ter sido lançado há poucos dias, a compulsividade própria de nossa época já nos presenteou com uma enchente resenhas e opiniões sobre a produção hollywoodiana (algumas delas, não surpreendentemente, foram produzidas antes mesmo do filme ser lançado). Até o momento, a maioria das críticas tem como tema duas infidelidades. Em primeiro lugar, as “infidelidades históricas” do filme, um conjunto de mentiras sobre os quais não devemos estar de acordo, como a quase cômica cena das pirâmides bombardeadas, os erros nas construções das batalhas (a Batalha de Austerlitz, por exemplo, é reduzida a uma mera emboscada) ou a velha reprodução do mito de que Napoleão teria retirado de improviso a coroa das mãos do papa. Os eventos históricos são apresentados de forma apressada, por meio de saltos: do casamento com Josephine, passa-se imediatamente para o Egito; da derrota na Rússia, salta-se rapidamente para o exílio em Elba, e assim por diante.

Em segundo lugar, seria um filme infiel ao seu próprio motivo, de modo que as oscilações entre a história do amor entre Napoleão e Josephine e as grandes batalhas tornaram o filme um tanto indeciso, não sendo satisfatório nem como história de uma intimidade (pois não mostra o que efetivamente há de profundo entre os dois), nem como um épico (pois sumariza as supostas “batalhas mais importantes” de forma quase que wikipédica). Isso sem falar nos clichês sobre o “Reino do Terror” (conceito atualmente rejeitado pela maioria dos historiadores, como tem mostrado o historiador Jean-Clement Martin), com a imagem fantasiosa milhares de pessoas saindo esfomeadas das prisões. Dessa forma, as infidelidades apresentadas no filme seriam suficientes para fazer com que as traições de Napoleão e Josephine parecessem pouca coisa.

Não acredito que os filmes devam ser fiéis à história; a fidelidade, conceito que pode ser útil em outros campos da vida, não me parece uma ideia interessante para a discussão sobre as relações entre ciências e artes. Em minha prática como historiador, afinal, não tenho qualquer relação de fidelidade com os meus livros e artigos: sou capaz de contradizê-los diante de qualquer evidência ou crítica que demonstre um erro. Além disso, o historiador David Bell, em A Primeira Guerra Total, indica que foram publicados sobre Napoleão cerca de 220 mil livros e artigos entre 1815 e 1980, número que deve dobrar se considerarmos os quarenta anos seguintes; desse modo, mesmo que evitemos as distorções mais grotescas, não seríamos capazes de estabelecermos uma narrativa única a respeito da qual deveríamos ser “fiéis” – ainda mais se tratando de um personagem que carrega tantos significados em suas costas.

No entanto, parece haver um aspecto do filme mais digno de nota do que as supostas infidelidades, o qual diz menos sobre a Era Napoleônica do que sobre a nossa época. Trata-se, precisamente, da escolha deliberada pela despolitização de Napoleão. Ao contrário do Napoleão dos Irmãos Lumière, o Napoleão de Ridley Scott é um Napoleão que não faz política e, por isso, não se enfurece com os acontecimentos cruciais da França: a morte da Maria Antonieta (que o Napoleão “histórico” não presenciou, pois ele estava no sul da França), os discursos de Robespierre (que, no filme, estão deslocados no tempo) e a vitória em Toulon são todas encaradas por um general sempre em tom apático, desinteressado e quase blasé. No filme, após a vitória de Toulon, Napoleão faz questão de mostrar-se quase que indiferente aos acontecimentos que presencia.

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Cenas de batalha são indiscutivelmente bem-feitas, valorizando mais o trabalho da direção de arte e elenco do que CGI. Foto: Apple/Sony.

O Napoleão de Scott é um homem contemplativo que, afeito ao campo militar e perturbado pelas relações amorosas, enxerga a política como um falatório de homens presunçosos que, não obstante, são úteis enquanto lhe fornecerão meios de ascensão social. Bastante significativo é fato de que, se o Napoleão dos Irmãos Lumière se enfurece com um fracasso político, o Napoleão de Ridley Scott tem seu momento de maior expressividade quando é chamado de… “Gordo.” Não é fortuito observar que a imagem de um Napoleão embriagado combina perfeitamente com as horrendas caricaturas anti-napoleônicas do britânico James Gillray, que retratam o Imperador como um “ogro” (e sobre isso vale ler o Anti-Napoleon, de Jean Tulard) e pouco se assemelha ao carisma transbordante e a pele de porcelana das telas de David, Gros ou Ingres. Também não é fortuito que o filme reproduza o termo utilizado pelo contrarrevolucionário irlandês Edmund Burke, ao acusar os franceses de não terem “modos” (manners).Em um dos momentos mais emblemáticos do filme, Scott parece brincar com isso quando Napoleão pergunta a sua segunda esposa, Marie-Louise: “me pareço com meu próprio retrato?”

Com efeito, o retrato apresentado pelo filme é o de um Napoleão que reduz a política à carreira e a “ambição”, palavra que é repetida muitas vezes na obra. As primeiras cenas na tela, por exemplo, o descrevem como um homem que, tal como um empresário oportunista que lucra em momentos de crise, conseguiu “ascensão” em meio aos distúrbios revolucionários. Não obstante, no filme, essa ascensão se explica menos pela política que por uma espécie de jenessequá que em determinado momento é descrito também como um “destino.” No filme, a campanha do Egito e a fuga da ilha de Elba, por exemplo, são explicadas pelas infidelidades de Josephine. A despolitização, a propósito, atinge outros personagens da trama, como Talleyrand, um dos personagens mais interessantes da Era das Revoluções, aqui apresentado como uma espécie de Gríma Língua de Cobra sem brilho.

Todavia, ao contrário do que é apresentado no filme, é preciso dizer Napoleão Bonaparte foi um homem profundamente político e nada linear. Originalmente corso, sua formação militar na França foi proporcionada pela aliança que seu pai, Carlo Buonaparte, membro da pequena nobreza, realizou com o conde de Marbeuf, governante francês da ilha da Córsega. Como mostrou o historiador Bernard Simiot em seu famoso Do que vivia Bonaparte, a relação entre família e política sempre foi determinante em sua vida, haja vista o papel crucial de seus irmãos, Joseph e Luciano Bonaparte, que aparecem de relance no filme

No contexto revolucionário, embora fosse reticente em relação às ações populares, integrou o clube jacobino de Ajácio e, em Toulon, Napoleão estreitou as relações com Paul Barras e Augustin Robespierre, irmão mais novo do célebre advogado de Arras, o qual Bonaparte sempre admirou. Após a morte dos irmãos Robespierre, Napoleão chegou a enfrentar a prisão (talvez, domiciliar) por alguns dias, esteve ameaçado de morte e cogitou lutar pelo sultão da Turquia. Foi precisamente sua aliança com Barras que permitiu seu retorno à cena política e seu casamento com Josephine (a qual, até então, era amante do próprio Barras). Só então, a partir de sua campanha na Itália (1797), ele começou a assinar seu nome em francês, Napoleón, e não da forma italiana original, Napoleone.

Profundamente carismático, Napoleão distribuía presentes aos soldados, permitia que eles o chamassem de “você” (tu) e não via limites no que dizia respeito a autopromoção. Napoleão fundou jornais como “O Correio do Exército da Itália”, que o comparavam a um “cometa”; até o final de 1798, 37 retratos diferentes de Bonaparte surgiram no mercado, alguns encomendados, outros espontâneos.

Por outro lado, a chamada do filme – que apresenta Napoleão como alguém que “surgiu do nada e conquistou tudo” – corrobora essa ideia de um Bonaparte self-made man e oculta tanto suas origens na pequena nobreza quanto o fato de que as áreas da Europa que Napoleão invadiu estavam bem longe de serem “tudo”. Com efeito, suas ambições não eram maiores do que as de seus contemporâneos, como Alexandre I, da Rússia, Wellington, da Inglaterra ou Metternich, da Áustria.

Meio século antes de Napoleão chegar ao poder, os ingleses conquistaram o Canadá, partes significativas das Índias e uma coleção de outras colônias; a Prússia aumentou de tamanho em dois terços; a Rússia empurrou sua fronteira seiscentos quilômetros para dentro da Europa; contudo, Jorge III, Frederico Guilherme II e Catarina II não são nem acusados de monstros megalomaníacos, nem venerados como líderes excepcionais.

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Ridley Scott no set de “Êxodo: Deuses e Reis””. Diretor de 85 anos tem vários clássicos bem-sucedidos na carreira. Foto: Apple/Sony

Napoleão foi responsável, na Rússia, por um dos maiores desastres da história militar, abandonou seu posto antes da derrota no Egito e contribuiu para que a França perdesse a colônia mais rica do mundo, São Domingos (Haiti), onde Napoleão, sem sucesso, tentou restaurar a escravidão a partir de um decreto de 1802. Não se pode dizer o mesmo de outras colônias francesas, como Guadalupe, Guiana e Martinica (de onde vinha Josephine), nas quais a escravidão permaneceu até a chamada ” 2.ª Abolição”, em 1848. Napoleão recusou inovações militares como o emprego de foguetes no campo de batalha e não acreditou nas embarcações a vapor do americano Fulton, no telégrafo de Jean Alexandre e no uso de balões. Durante todas as suas campanhas, Napoleão utilizou armas herdadas do Antigo Regime, como o fuzil modelo 1777 (um pouco modificado em 1803) e os canhões de Gribeauval. 

No entanto, o historiador e filósofo Hyppolyte Taine reconhecia, ainda no século XIX, que as maiores marcas da Era Napoleônica não estavam no campo militar, mas sim no campo político. Seria o caso da organização administrativa uniforme e hierarquizada da França (prefeitos, subprefeitos e administradores municipais), da criação dos liceus, do estabelecimento do franco germinal e, principalmente, do Código Civil Napoleônico. Não se trata de minimizar sua importância como personagem histórico, mas de esclarecer como a suposta excepcionalidade dessa figura, cheia de contradições, é profundamente dependente de suas circunstâncias políticas extremadas, como a Revolução Francesa.

O eclipse da política em Napoleão, assim, parece sintoma de uma época em que a profunda espetacularização da política nos faz buscar nas lideranças do passado exemplos de “homens de ambição” que conquistaram a ascensão por seus próprios méritos, deixando de lado os terrenos pantanosos da política. Na procura desesperada por ídolos a serem seguidos, não convém, por conseguinte, ter clareza sobre as complexidades e as heranças conflituosas que envolvem esse personagem histórico. Ao contrário daquele dos Irmãos Lumière, esse não é um Napoleão que incomoda Deus.

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Daniel Gomes de Carvalho

Professor de História Moderna no Departamento de História da Universidade de Sao Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social pela Universidade de São
Paulo (USP). Podcaster no História Pirata. Autor de "Revolução Francesa" (Contexto, 2022).

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