“Tudo em todo lugar ao mesmo tempo”: uma experiência psicodélica e frenética

Obra escrita e dirigida por Dan Kwan e Daniel Scheinert é uma viagem quase inexplicável e incompreensível de imagens, referências e estilos que mais lembra um quebra-cabeça onde parece faltar muitas peças, mas por fim acaba elevando o gênero sci-fi comedy a um novo nível de criatividade.
10 de fevereiro de 2023
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"Tudo em todo lugar ao mesmo tempo", filme que foge das narrativas tradicionais. Foto: reprodução.

Infelizmente eu perdi de assistir a essa maravilha na grande tela do cinema quando estreou em junho de 2022 no Brasil. Depois demorei até encontrar o filme para assistir em algum canal de streaming, e quase por acaso, e quando já tinha até esquecido, acabei topando com ele no app do canal Showtime de um amigo norte-americano. E, sem ter planejado, fui sugada para dentro nessa experiência deveras psicodélica e frenética.

“Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” (Everything Everywhere All At Once – EUA/2022) tem o enredo mais simples e igualmente mais complexo que existe – relações familiares. A vida cotidiana dos imigrantes chineses Evelyn (Michelle Yeoh) e Waymond (Ke Huy Quan) – um casal dono de uma lavanderia e com encrencas com o imposto de renda – e da filha deles Joy (Stephanie Hsu) – uma garota lidando com sua identidade sexual e objetivos na vida – acaba virando uma bagunça quando Evelyn começa a ser confrontada com diversas realidades paralelas em diferentes universos que, materialmente, representam as inúmeras formas como poderia ter sido sua vida caso tomasse diferentes decisões e atitudes em dados momentos.

Do nada um Waymond, como que estranhamente carregado por um comando no corpo de seu marido, aparece de outra dessas realidades, a aborda e fala, entre outras coisas, que ela está sendo (ou provavelmente será) perseguida por uma entidade chamada Jobu Tupaki. A partir daí, e com instruções no mínimo bizarras dadas pelo seu marido “alternativo”, Evelyn começa a viver em uma espécie de sonho lúcido com flashes de todas as suas personalidades e vidas possíveis num metaverso interminável e constantemente em movimento que muito se assemelha a um jogo de videogame. E nele é possível desbloquear poderes especiais ao resolver tarefas estapafúrdias e irracionais como cortar os próprios dedos com papel ou engolir objetos inanimados.

A obra escrita e dirigida pela dupla Dan Kwan e Daniel Scheinert é uma viagem quase inexplicável e incompreensível de imagens, referências e estilos de representação visual, casando elementos bizarros, assustadores, comoventes e hilários em um quebra-cabeça onde parece faltar muitas peças. Ambos Daniel(s) elevam o gênero sci-fi comedy a um novo nível de criatividade. Somos bombardeados com mais imagens do que nosso cérebro consegue assimilar (mais um motivo para rever o filme várias vezes) em uma carambolage de eventos e vidas paralelas dos personagens que, a princípio, não faz o menor sentido, mas que com o passar do tempo adquire um sentido profundamente filosófico sobre o significado da vida, sobre o que é importante e  sobre a nossa insignificância diante do todo em que estamos inseridos como pequenos personagens de um teatro com milhares de possibilidade de finais distintos.

Michelle e Stephanie fazem um trabalho fenomenal ao destrincharem suas diferenças em esferas muito superiores à realidade material. E mesmo assim, no final da jornada, elas são uma mãe e uma filha, e no centro de tudo, convergindo a um ponto comum, está o amor que elas nutrem uma pela outra. Amor esse que por vezes machuca, gera desconforto, raiva, ressentimento, mas que também é calcado em uma inabalável força que as atrai, uma em direção à outra, com um imenso ímã existencial.

Para completar o deleite no elenco ainda temos Jamie Lee Curtis no papel da Deirdre, a vilã/funcionária pública/parceira de Evelyn. Os constantes encontros entre as duas são deliciosos e hilários, Michelle e Jamie mostram toda a sua versatilidade.

A beleza estética e o apuro técnico de “Tudo em todo lugar ao mesmo tempo” são absurdos. Dan e Daniel dominam, de uma forma espetacular, a transposição das suas visões em imagens. Um trabalho minucioso, rebuscado e quase obcecado que chega aos mínimos detalhes. A obra, produzida pelo estúdio A24, famoso pelos seus filmes Art House, combina cenas de stopmotion e animação digital com atuações viscerais dos atores. No turbilhão das cenas pensei em milhares de coisas, pensei em séries psicodélicas como Legion e The Umbrella Academy da mesma forma que senti o romantismo desiludido de um filme de Wong Kar-Wai.

Mas entre todas as reflexões que essa obra me causou teve uma, a mais forte e que talvez não seja tão clara à primeira vista, que me fez pensar no conceito de que podemos (e vivemos) diversas vidas onde os mesmos personagens estão presentes e atuantes em papéis diferentes, em diferentes universos, ou, para os mais iluminados, épocas. Um tom de espiritualidade transcendental, digital ou de alteração da consciência, como uma cereja nesse bolo deliciosamente multicolorido.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

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