“Todos nós desconhecidos”: trabalhando os traumas e encontrando o amor verdadeiro

Ao desenvolver um novo roteiro, o escritor Adam entra em uma viagem no tempo em busca de elaborar seus traumas da infância.
23 de fevereiro de 2024
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"Todos Nós Desconhecidos" (All of Us Strangers), ainda não tem data de estreia no Brasil. Foto: Divulgação/20th Century Studios Brasil.

Adam, interpretado por Andrew Scott, é um roteirista perto dos seus 50 anos que mora quase praticamente sozinho em um prédio nos subúrbios de Londres. Adam luta contra um bloqueio criativo, pois seu mais novo roteiro rata de um tema bastante delicado para ele – seus pais. Após o alarme de incêndio ser acionado, o que forçou Adam a sair do prédio, ele percebe que em todo seu enorme edifício de apartamentos apenas suas luzes e as de um apartamento no sexto andar estão acesas. A ausência de pessoas pode ser interpretada de diversas formas, mas a mais racional seria a proximidade dos feriados de final de ano, onde inúmeras pessoas saem das grandes cidades para passar as festas em família. Adam reconhece um homem na janela, eles se olham, e Adam volta a seu apartamento. Momentos após isso, o desconhecido bate em sua porta. E assim conhecemos Harry, interpretado por Paul Mescal. Harry está claramente bêbado, e vai direto ao ponto, passa uma cantada em Adam, e pergunta se não podem beber algo juntos no apartamento. Adam, assustado, recusa a oferta e bate a porta na cara de Harry.

No outro dia o autor senta-se em seu computador e começa o novo roteiro com a indicação do set da primeira cena – “Ext. Casa Suburbana 1987”. E aqui começa a viagem de Adam ao seu sofrido passado. Ele volta a Sussex, cidade onde morou com os pais e visita sua antiga casa. Porém, de uma forma muito inusitada, adam reencontra seus progenitores. Isso seria algo bastante corriqueiro em um drama de família, não fosse o fato deles terem morrido em um acidente de carro quando Adam tinha 12 anos.

Começa aqui uma série de conversas intensamente emocionantes e sentimentais entre Adam e a Mãe, incorporada pela magnífica Claire Foy, e seu Pai, o excelente ator Jamie Bell. E aqui os espectadores começam a se perguntar – Adam vê fantasmas? Seriam esses diálogos e encontros com os pais fruto da imaginação de um autor extremamente talentoso? Ou Adam sofre de algum transtorno mental que o faz ter alucinações? Ao voltar a seu prédio, Adam se arrepende de ter dispensado Harry e ambos acabam se envolvendo romanticamente.

O diretor e roteirista britânico Andrew Haigh (Lean On Pete – 2017) afirma ter usado como base de sua inspiração o livro Strangers, do autor japonês Taichi Yamada, de 1987. Ambas as obras possuem paralelos, mas em All Of Us Strangers Andrew retrabalha algumas de suas experiências como um garoto/homem gay/queer na Inglaterra dos anos 80. E consegue fazer isso com uma quantidade limitada de recursos. A obra conta com apenas quatro personagens relevantes, se passa quase que inteiramente nos interiores do prédio de Adam e da casa de seus pais. A cenografia é espartana e conta com um jogo de claro/escuro para ressaltar dramaticidade, o figurino também é simples, apesar de bem colocado em cena.

Segundo Haigh, sua intenção com All Of Us Strangers é despertar sensações, sentimentos, identificações e diversas interpretações, e ele é exitoso em tudo isso. Paul Mescal é a mistura perfeita de envolvente, carente, amoroso e sensível, apesar de sua aparência física porte de durão. Aqui, como Harry, ele repete um pouco o que já vimos em outros de seus papéis, como na série Normal People (2020) ou no filme Aftersun (2022). Garanto que não vai ter olho que não lacrimeje com a sua entrega na tela. Andrew está fabuloso como Adam, ele consegue nos envolver em toda a sua confusão, tristeza, medos e traumas. A sua química com seus pais cenográficos Foy e Bell é incrível, para quem assiste, Andrew tem mesmo 12 anos de novo. Ele e Foy entregam a essência do filme em uma simples troca, quando Adam pergunta a Mãe: “Isso é real?”, ela devolve imediatamente a pergunta: “Você sente que é real?”

Em seu filme independente, é exatamente isso que Haigh procura, e é, também, o que estamos vendo cada vez mais frequentemente em produções audiovisuais – o sentimento, a ambientação, as sensações são os protagonistas. O cinema como obra sensorial. Uma das grandes provas desse empenho em acessar os sentimentos dos expectadores está na trilha sonora, que Haigh fez questão de colocar em destaque em vários momentos cruciais das interações entre os atores.

Sem dar spoilers (algo difícil nessa obra cheia de surpresas) é possível afirmar que All Of Us Strangers é aquele tipo de filme que fica com a gente. Nos segue até em casa após a sessão do cinema, que surge nos sonhos e nos acompanha por dias, senão semanas. Que nos causa reflexão e comoção, às vezes sem que entendamos exatamente o porquê. Quer seja nas suas abordagens sobre o tema homossexualidade e as dificuldades que a população LGBTQIA+ ainda enfrente na segunda década desse milênio, quer seja na resolução de ‘nós’ que temos com nossos pais ou simplesmente a lembrança daquele amor transformador que apareceu em nossas vidas.

Indicado para mais de 100 premiações internacionais, o filme anda arrematando muitos troféus do circuito independente como o de melhor filme do British Independent Film Awards, enquanto recebeu pouca atenção do mainstream como o Oscar e o BAFTA. É o drama mais bonito e interessante a entrar em cartaz nos cinemas brasileiros nesse começo de 2024. A data da estreia nacional é 29 de fevereiro. Não esqueçam de levar lenços para enxugar as lágrimas e já preparem a playlist com Pet Shop Boys, Erasure e Frankie Goes To Hollywood para escutar depois.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

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