Por mais análises que adotem a perspectiva de gênero

15 de fevereiro de 2017
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Muitas pesquisas acadêmicas realizadas no Brasil vêm utilizando, nos últimos anos, a perspectiva de gênero. Tal incorporação, contudo, pode ser  maior.

Por Isabelle Pires

As questões de gênero permeiam nossas relações sociais e fazem parte de nossa vida desde a infância. Quando presenteamos uma menina com panelinhas, bonecas e maquiagem, enquanto para os meninos damos carrinhos, foguetes e jogos de montar, estamos contribuindo para perpetuar as desigualdades de gênero e para estabelecer uma discrepância de possibilidades imaginativas, de sonhos e de exemplos. Assim, procuramos encaixar as crianças, desde seus primeiros anos de vida, em seus devidos papeis de gênero por determinarmos quais cores devem gostar, com quais brinquedos podem brincar, que tipos de esportes e atividades podem desempenhar na escola, etc. Ao longo de nosso desenvolvimento, os padrões de masculinidade e feminilidade vão se definindo por meio de imagens, discursos e experiências, até que certos comportamentos, temperamentos e gostos sejam naturalizados como propícios para cada gênero.

Perspectiva-de-genero
Historiografia tem tudo para continuar incorporado a perspectiva de gênero em seus estudos. Foto: Café História.

Contudo, apesar das questões de gênero nos acompanharem em nossa trajetória e em nossa construção como seres pensantes, além de tais questões estarem se fazendo mais presentes nas discussões entre os jovens e adolescentes, a categoria de gênero ainda precisa ser mais empregada nos estudos científicos (em nosso caso, historiográficos), apesar da difusão das pesquisas que utilizam a perspectiva de gênero no Brasil nas últimas décadas [1].

Nesse sentido, esta argumentação apresenta-se como um incentivo para que mais pesquisadores/as incorporem a perspectiva de gênero em suas análises. Assim como as noções de classe e raça, gênero orienta nossa atenção para sujeitos e questões que foram, por tanto tempo, excluídos da história.

Estudos de história das mulheres e de gênero

A emergência dos estudos de história das mulheres e de gênero está diretamente ligada às lutas dos movimentos feministas a partir dos anos 1960. Segundo Linda Nicholson, na década de 1960, o termo “gênero” era entendido principalmente em referência à distinção entre fenômenos codificados em noções femininas e masculinas. Nesse período, o termo não era usado, em geral, para substituir “sexo”, mas como forma de limitar as pretensões de abrangência do termo “sexo” [2]. No final de 1960 e início de 1970, a maioria das feministas advogava a existência de características biológicas que determinavam diferenças entre mulheres e homens, que geravam uma distinção entre masculino e feminino. Assim, o conceito de gênero era empregado como suplementação ao de sexo, não como substituto. Neste período, as feministas radicais procuraram enfatizar a existência de aspectos comuns entre as mulheres em contraposição aos homens. No entanto, Nicholson destaca que as próprias feministas derivaram da desassociação entre os aspectos biológicos e os sociais (ou de “caráter”, termo utilizado pela autora), visto que eram mulheres que devido à habilidade política ou por ocuparem espaços e instituições dominadas por homens passaram por uma certa “socialização masculina” [3]. De acordo com Sandra Azerêdo, o trabalho de Rubin [4] (1975) é considerado um marco na produção teórica feminista por usar pela primeira vez o termo sex/gender system (sistema de sexo/gênero), ou seja, por pensar gênero em distinção ao sexo. Contudo, foi a partir dos anos 1980 que ganhou força o entendimento do termo gênero como distinções fundamentalmente sociais baseados no sexo [5]. Tal compreensão rejeitava o determinismo biológico implícito no termo sexo. Ainda, o termo gênero apontava para o “aspecto relacional das definições normativas das feminilidades” [6]. Em 1990, Judith Butler cunha a “performatividade do gênero” e defende o termo gênero como construção cultural e não como resultado do sexo [7].

No campo historiográfico, a categoria “mulher” foi incorporada às pesquisas nos anos 1970, pensada como a identificação da unidade; “mulheres”, na década de 1980, para demarcar as especificidades e diferenças; e “relações de gênero”, nos anos 1990, como resultado da virada linguística [8].

Os estudos feministas e os de gênero foram fundamentais também para se pensar novas abordagens acerca de masculinidades. As abordagens de gênero, entendidas como relacionais, reconhecem a importância de também historicizar o masculino e as masculinidades, podendo torná-los tema de reflexão e objeto de pesquisa [9].

Os estudos sobre as mulheres apontaram a dimensão do poder, seja por meio das análises de gênero, seja pelo conceito de patriarcado [10]. Os estudos sobre os homens também enfatizaram as dimensões de poder, mas ressaltaram a existência de outros aspectos do poder [11]. Assim, ao focalizarmos as relações de gênero em nossas análises, torna-se possível perceber as “relações de poder, relações de força entre homens e mulheres, entre masculino e feminino, entre padrões e comportamentos masculinos, entre gêneros, entre homens e homens” [12].

Segundo Márcio Ferreira de Souza, os estudos de masculinidade, inicialmente, se restringiam à sexualidade e reprodução, aos poucos, foram emergindo as análises sobre trabalho, paternidade, violência, comportamentos, entre outros temas. Tais temáticas se tornaram possíveis à medida que as pesquisas sobre masculinidade passaram a ser pensadas pela perspectiva relacional [13].

Noções de masculinidade e feminilidade na classe trabalhadora

Por concentrar minhas pesquisas nos mundos do trabalho utilizando a categoria de gênero, gostaria de exemplificar tais questões pensando as noções de masculinidade e feminilidade na classe trabalhadora. O ideal da família burguesa no século XIX favoreceu a construção do homem como agente provedor, chefe de família centrado no trabalho remunerado efetuado no espaço público. No entanto, as pesquisas apontam que a figura do homem provedor não se estabeleceu tão firmemente entre os setores mais populares, onde, devido às baixas remunerações atribuídas aos homens, as mulheres e as crianças deveriam contribuir no orçamento familiar.

Da mesma forma, as mulheres da classe trabalhadora também não se enquadravam nas noções estabelecidas para a “mulher”. Entendia-se como “funções naturais” da mulher ser esposa e mãe. Nesse sentido, elas deveriam se dedicar exclusivamente ao espaço privado, cuidando da família e da casa. No entanto, em virtude da necessidade de exercer atividades remuneradas no espaço público, essas mulheres não se limitavam ao espaço doméstico, andavam pelas ruas desacompanhadas, muitas vezes, à noite, no caso das trabalhadoras de fábrica, trabalhavam em um ambiente fechado, lidavam com a presença de homens ao longo do dia de serviço, iniciavam relações amorosas no espaço de trabalho e eram alvos de abusos sexuais de mestres e contramestres. Assim, as mulheres trabalhadoras ampliaram suas noções do que era estabelecido como feminino, bem como, exerceram atividades, ocuparam espaços, tiveram comportamentos tidos como masculinos.

Contudo, por ser o homem o “responsável” pelo trabalho, a mulher trabalhadora recebia remuneração inferior atribuída aos homens por seu trabalho ser considerado complementar. De acordo com Barbara Weinstein, a categoria “mulher trabalhadora” a partir da perspectiva masculina fora construída entre duas imagens antagônicas: “a imagem marginalizada da mulher que trabalha por dinheiro e a idealização da dona de casa” [14].

Para Bell Hooks [15], em virtude do trabalho ter sido historicamente atribuído aos homens na sociedade patriarcal, foi retirado das mulheres pobres (e negras) forçadas a trabalhara feminilidade estabelecida [16].

Por fim, espero que esta breve argumentação, assim como as referências bibliográficas indicadas abaixo, ajudem a orientar os/as leitores/as que não estão tão familiarizados/as com as discussões de gênero e despertem o interesse de pesquisadores/as para pensar seus objetos utilizando a categoria analítica de gênero.


Notas

[1] Ver TEIXEIRA, Ana Paula T. ; PIRES, Isabelle. Apresentação do dossiê Gênero e Sexualidade. Mosaico, Rio de Janeiro, 2016. pp. 1-2

[2] NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Estudos Feministas. vol. 8, no 2, 2000. pp. 2-3.

[3] NICHOLSON, Linda, op cit, p. 23.

[4] “The Traffic in Women: notes on the ‘political economy’ of sex é o titulo do artigo de Rubln, publicado

na coletânea de artigos antropológicos editada por RaynaRappReiter, TowardanAnthropologyof

Women (Nova Iorque: Monthly Review, 1975).” In: AZEREDO, Sandra. Teorizando sobre gênero e relações raciais. Estudos Feministas, 203, 1994. p. 210.

[5] SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação e Realidade, vol. 16, no 2, Porto Alegre, jul./dez. 1990. p. 3.

[6] SCOTT, Joan, op cit, p. 3.

[7] PEDRO, Joana. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea. Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011, p. 275.

[8]TEIXEIRA, Ana Paula T. ; PIRES, Isabelle. Apresentação do dossiê Gênero e Sexualidade. Mosaico, Rio de Janeiro, 2016. p. 1.

[9] LOPES, Fábio Henrique. Masculinidade(s): reflexões em torno de seus aspectos históricos, sociais e culturais. Contemporâneos, Revista de Artes e Humanidades, nº 8, maio – out., 2001. p. 8.

[10] SOUZA, Márcio Ferreira de. As análises de gênero e a formação do campo de estudos sobre a(s) masculinidade(s). Mediações, Londrina, v. 14, n.2, p. 123-144, Jul/Dez. 2009. p. 130.

[11]BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2003.

[12] LOPES, Fábio Henrique, opcit, p. 9.

[13] SOUZA, Márcio Ferreira de, opcit, p. 138.

[14] WEINSTEIN, Barbara. As mulheres trabalhadoras em São Paulo: de operárias não-qualificadas a esposas profissionais. Cadernos Pagu (4), 143-171, 1995. p. 144.

[15]O nome bell hooks é escrito com letras minúsculas porque é dessa forma que se apresenta a ativista estadunidense Gloria Jean Watkins.

[16]HOOKS, Bell,1982 apud FERNANDES, Danubia de Andrade. O gênero negro: apontamentos sobre gênero, feminismo e negritude.Estudos Feministas, 24 (3), set-dez/2016. p. 697.


Referências Bibliográficas

AZEREDO, Sandra. Teorizando sobre gênero e relações raciais. Estudos Feministas, 203, 1994.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2003.

FERNANDES, Danubia de Andrade. O gênero negro: apontamentos sobre gênero, feminismo e negritude. Estudos Feministas, 24 (3), set-dez/2016.

FILHO, Amílcar Torrão. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos Pagu (24), janeiro-junho de 2005, pp.127-152.

LAMAS, Marília. De menina e de menino: gênero e infância. In: Não me Kahlo, 26/01/2017. Disponível em: http://www.naomekahlo.com/single-post/2017/01/26/De-menina-e-de-menino-g%C3%AAnero-e-inf%C3%A2ncia. Acesso em: 26/01/17.

LOPES, Fábio Henrique. Masculinidade(s): reflexões em torno de seus aspectos históricos, sociais e culturais. Contemporâneos, Revista de Artes e Humanidades, n.8, Maio./out. 2011.

NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Estudos Feministas. vol. 8, no 2, 2000.

PEDRO, Joana. Relações de gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea. Topoi, v. 12, n. 22, jan.-jun. 2011.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação e Realidade, vol. 16, no 2, Porto Alegre, jul./dez. 1990.

SOUZA, Márcio Ferreira de. As análises de gênero e a formação do campo de estudos sobre a(s) masculinidade(s). Mediações, Londrina, v. 14, n.2, p. 123-144, Jul/Dez. 2009.

TEIXEIRA, Ana Paula T. ; PIRES, Isabelle. Apresentação do dossiê Gênero e Sexualidade. Mosaico, Rio de Janeiro, 2016.


Isabelle Cristina da Silva Pires é Mestranda do Programa de Pós-Graduação do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas – CPDOC/FGV. Possui graduação em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2015), com um período de mobilidade acadêmica nacional na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF – 2013). Participou como bolsista do Programa de Educação Tutorial – PET História da UFRRJ. Atualmente integra o Laboratório de Estudos dos Mundos do Trabalho e Movimentos Sociais (LEMT) e é membro do Conselho Editorial da Revista Mosaico (FGV). Atua nas seguintes áreas: Brasil Primeira República, fábricas de tecidos, trabalhadoras/es têxteis, gênero, greves dos/as operários/as têxteis. Sua dissertação, orientada pelo professor doutor Paulo Fontes, tem o título provisório de: “Relações de gênero no movimento operário têxtil carioca”.

Isabelle Pires

Mestra em História pela Programa de Pós-Graduação do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas - CPDOC/FGV. Possui graduação em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2015), com um período de mobilidade acadêmica nacional na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF - 2013). Participou como bolsista do Programa de Educação Tutorial - PET História da UFRRJ. Atualmente integra o Laboratório de Estudos dos Mundos do Trabalho e Movimentos Sociais (LEMT) e é membro do Conselho Editorial da Revista Mosaico (FGV). Atua nas seguintes áreas: Brasil Primeira República, fábricas de tecidos, trabalhadoras/es têxteis, gênero, greves dos/as operários/as têxteis. Sua dissertação, orientada pelo professor doutor Paulo Fontes, tem o título provisório de: “Relações de gênero no movimento operário têxtil carioca”.

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