O homossexual no cinema: o dilema da representação

Fábio Silveira, jornalista especializado em cinema e música, explica como a temática gay vem sendo sendo discutida e representada pela narrativa cinematográfica.
15 de agosto de 2011
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Ao contrário do que muitos possam pensar, a representação do personagem homossexual no cinema não aconteceu tardiamente em termos absolutos. Ela existe desde o início. Literalmente: em 1895, Thomas Edison já rodara um filme experimental, “The Gay Brothers”, em que 2 homens dançavam ao som de um violinista. O primeiro beijo entre dois homens foi registrado no filme “Wings”, de 1927, o primeiro vencedor na história de um Oscar de Melhor Filme. Antes disso, insinuações de situações de temática gay já podiam ser encontradas em filmes de Chaplin (Behind the Screen, 1916) ou em alguns curtas de O Gordo e o Magro. Após, até em musicais, como em “A Alegre Divorciada” (1934), estrelado por Fred Astaire e Ginger Rogers.

De uma forma geral, porém, o registro dominante era somente um: se um homem tivesse trejeitos femininos ou se ele ousasse vestir-se de mulher, o único efeito que se poderia esperar era o da comédia. O homossexual pressupunha e representava alívio dramático e nada além. Ainda assim, havia espaço para algumas notáveis exceções, como a famosa cena de “Marrocos” (1930) em que a cantora personagem de Marlene Dietrich aparece em um smoking, elegante e sem jamais perder o efeito de femme fatale, e num movimento inesperado beija suavemente uma das mulheres na plateia, num ato claramente provocante para homens e mulheres nas poltronas dos cinemas.

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Cena emblemática de “Juventude Trasnviada” (Rebeld without a cause), clássico de 1955. Foto: divulgação

A liberdade artística de que o cinema se aproveitou nas suas primeiras décadas de existência, porém, seria logo cerceada nos EUA, que nos anos 1940 já era a maior potência mundial na exportação de filmes. O Código de Hays, um documento que listava o que o bom costume e a família não deveriam assistir nas telas, não teve um início particularmente forte: foi adotado pela MPAA (Motion Picture Association of America) em 1930, mas somente a partir de 1934 foi aplicado severamente. Com a adesão da Igreja Católica, que também criara um código para os seus seguidores e, no final dos anos 1930, já ameaçava estimular boicotes a filmes, os produtores de Hollywood, prevendo terríveis prejuízos, passaram a adaptar seus filmes a essas regras, que foram, também, um dos alicerces de censura midiática do Macarthismo.

O Código de Hays condenava nos filmes situações que envolvessem beijos de língua, cenas de sexo, sedução, estupro, aborto, prostituição, escravidão (de brancos), nudez, aborto, obscenidade e profanação. O termo homossexual, ainda que não citado, provavelmente se encaixava nesta última proibição. E, como se pode notar, a violência não era censurada em suas diversas encarnações possíveis. O código foi seguido fielmente pela grande maioria dos filmes produzidos em Hollywood até 1968, quando a MPAA criou o seu novo termo de conduta e censura, com bases muito similares ao anterior, e usado até hoje. Filmes que envolvem situações sexuais ainda são mais censurados do que filmes ultraviolentos e aqueles que envolvem relacionamentos homossexuais certamente um tanto mais.

À época, as proibições instituídas pelo código tiveram efeito pior do que banir o personagem homossexual do cinema; elas mudaram a sua representação, instituindo apenas a possibilidade de 2 papéis: a de antagonista naturalmente perverso ou a de personagem trágico. A galeria de vilões de clara, porém jamais aberta, orientação homossexual é extensa. Em “Festim Diabólico” (1948), obra-prima de Alfred Hitchcock, a dupla de assassinos que desafia o personagem de James Stewart em um jogo psicológico é carregada de desejo homoerótico. Os vilões de muitos filmes do agente 007, como foi brilhantemente dissecado por Umberto Eco em seus ensaios, são em sua maior parte gays naturalmente malévolos ou dotados de uma incurável mania de grandeza.

Mais grave e danosa do que esta representação, porém, foi a ideia de que o destino do personagem gay deveria ser sempre trágico, fosse pela falência de suas ambições dentro do universo narrativo ou pelo proibido do seu desejo. Como não esquecer a emocionante cena final de “Juventude Transviada” (1955), de Nicholas Ray, em que o personagem de Sal Mineo, apaixonado pelo de James Dean, comete o sacrifício final para salvar o amigo? Ou a cena em que a governanta da personagem-título de “Rebecca, A Mulher Inesquecível”, também de Hitchcock, manifesta sutilmente ao abraçar um casaco o desejo que sentia por ela? Este último caso revela também o quanto Hollywood era severa com personagens homossexuais femininos, retratando-nas frequentemente como megeras sem coração.

Elizabeth Taylor, por sua vez, protagonizou 2 adaptações bem-sucedidas de peças de Tennessee Williams ao cinema que tratavam o tema homossexual de forma parecida: “Gata em Teto de Zinco Quente” (1958) mostrava Paul Newman como um ex-jogador (não abertamente) homossexual frustrado e alcoólatra, e “De Repente, No Último Verão” (1959) em que a personagem de Taylor sofreu o terrível trauma de assistir o seu primo, homossexual, ser linchado enquanto passavam férias num vilarejo espanhol. A cena que descrevia esse linchamento foi filmada de forma idêntica à observada em “Noiva de Frankenstein” (1934) e a mensagem era uma só: se viveram como monstros, deveriam morrer como monstros.

Qualquer cena ou argumento que tratasse o personagem gay de forma aberta estava destinada a alguma censura, fosse da MPAA ou dos próprios produtores/cineastas. Dessa forma, um romance sobre um escritor alcoólatra e sexualmente confuso (“Farrapo Humano”, 1945) virou um filme sobre um escritor alcoólatra com bloqueio. Outro romance, sobre ataques a homossexuais e assassinato se tornou um filme sobre antissemitismo e assassinato (“Rancor”, 1947). Uma cena de “Spartacus” (1960), em que há uma relação de erotismo entre 2 homens, tão comum e popularmente conhecida como típica da Roma e Grécia Antigas, e um diálogo sugestivo foi cortada da versão final. O mesmo, por outro lado, não acontecera um ano antes com a antológica cena final de “Quanto Mais Quente Melhor” (1959): ou seja, se o romance gay fosse sugerido como real não era tolerado, se fosse para efeito cômico, aí continuava não havendo problema.

Os primeiros sinais de mudança vieram do outro lado do oceano, principalmente do cinema inglês, que na década de 1960 começou a tratar da temática homossexual de forma aberta. Em 1961, “Meu Passado Me Condena” trazia Dirk Bogarde no papel de um advogado homossexual que decide processar um chantagista que ameaça expor a vida secreta de alguns homens ao mundo. Foi uma das primeiras vezes em que o termo homossexual era usado em um filme. O cinema autoral europeu, em muito motivado pela conjuntura histórica da década de 1960, retomaria a temática gay em inúmeros clássicos. “Satyricon” (1969), de Fellini, abordava abertamente o erotismo homossexual. Antes dele, a obra-prima “Persona” (1966), de Ingmar Bergman, explorou a tensão homossexual entre 2 mulheres de maneira dificilmente igualada posteriormente e que seria retratada novamente na década seguinte com “Gritos e Sussurros” (1972). Durante a década de 1960, Pier Paolo Pasolini fez o brilhantemente iconoclasta “Teorema” (1968), em que usava a homossexualidade como uma das armas para libertação de uma família burguesa.

Mas do lado de cá do oceano, o destino trágico continuava sendo a regra para o personagem homossexual. Em “Crimes Sem Perdão” (1968), Frank Sinatra interpretava um detetive que investigava mortes de homossexuais. Em 1980, William Friedkin faria “Parceiros da Noite”, em que o personagem de Al Pacino era um detetive infiltrado no “submundo gay”. Poucos filmes foram tão eficazes em reforçar estereótipos negativos. E nesta mesma década, Hollywood teria uma tragédia real para aplicar aos seus personagens gays: surgiram aqueles cujo destino estava selado por terem contraído AIDS. O representante máximo desse modelo talvez tenha sido o personagem de Tom Hanks em “Filadélfia” (1993), que lhe garantiu um Oscar (e um exemplo de papel a ser premiado num filme para tantos outros atores e atrizes que o repetiram).

Gata em Teto de Zinco Quente
Cena de “Gata em Teto de Zinco Quente”, de 1958. Foto: reprodução da internet.

Mas se a primeira metade da década de 90 ainda não tinha observado mudanças sensíveis no tratamento do personagem homossexual, ela ao menos permitiu intensificar o volume desses personagens, principalmente o feminino, observado com destaque em “Thelma e Louise” (1991), de Riddley Scott, e em “Tomates Verdes Fritos” (1991), de Jon Avnet, ambos com finais trágicos. Havia, porém, uma geração de cineastas que cresceu com acesso à produção independente da década de 70 e ao cinema europeu, livres de estereótipos. Com isso, provavelmente assistiram às produções de John Waters com o travesti Divine, notadamente os brilhantes “Pink Flamingos” (1972) e “Female Trouble” (1974), além de filmes de muitos outros diretores do underground da época, como o ícone “The Rocky Horror Picture Show” (1975).

O cinema nos últimos anos

O resultado é facilmente observado em uma pesquisa no IMDB (www.imdb.com), maior banco de dados de cinema do mundo, sobre filmes que contenham alguma temática gay. Dos mais de 4.200 filmes listados, apenas 1.000 foram produzidos anteriormente a 1996. Todos os restantes datam deste ano até 2011. Foi na década de 90 que o premiado diretor Gus Van Sant ganhou reconhecimento com “Garotos de Programa” (1991) em que abordava o relacionamento entre 2 deles. Ou que o fenômeno australiano “Priscila – A Rainha do Deserto” (1994), mesmo com todos os seus estereótipos, conseguiu apresentar travestis a uma audiência ampla pela primeira vez na história do cinema.

Essas primeiras conquistas ecoaram pelos anos 2000, que observou um verdadeiro boom na produção de filmes de temática gay. Pela primeira vez, em mais de 100 anos de cinema, o personagem homossexual foi representado em todas as suas complexidades. E deixou de ser o personagem para se tornar os personagens. Um garoto que descobre a sua própria sexualidade pode, por exemplo, encontrar ecos e questões relevantes no belo filme inglês “Delicada Atração” (1996), no divertido alemão “Tempestade de Verão” (2004) ou no emocionante filme tailandês “The Love of Siam” (2007). Por outro lado, aqueles que procuram o lado sócio-político do tema encontram diversos ângulos: o político do grande “Milk” (2008), de Gus Van Sant, o religioso no brilhante e corajoso documentário “For The Bible Tells Me So” (2007), sobre como famílias católicas ou protestantes lidam com filhos e filhas homossexuais, ou o comportamental de “Kinsey” (2004) que expôs a uma grande audiência as descobertas do doutor Alfred Kinsey sobre a complexidade da sexualidade humana.

Se os critérios forem severos, podemos afirmar que o mundo tem apenas uma década e meia de produção de filmes a respeito dos mais diversos aspectos que envolvem a homossexualidade. O espaço de tempo é curto e certamente ainda há muito o que desenvolver no que diz respeito aos filmes de gênero e às complexidades de personagens gays. Se a nossa relação com o cinema pressupõe um diálogo que contribui na nossa formação, essa produção frequente torna-se ainda mais necessária. Não se pode esquecer que, em 2006, “O Segredo de Brokeback Mountain”, o filme mais sério a respeito da temática a conquistar um grande público, inexplicavelmente perdeu o Oscar de Melhor Filme, após ter levado as 2 estatuetas que definem uma grande produção (a de Melhor Roteiro Adaptado e Melhor Direção), para o inócuo “Crash”. Uma década e meia de conquistas não apaga do inconsciente coletivo 100 anos de repressão. A mudança apenas começou.

Como citar esse artigo

SILVEIRA, Fabio. O homossexual no cinema: o dilema da representação (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-homossexual-no-cinema-o-dilema-da-representacao/. Publicado em: 15 ago. 2011. Acesso: [informar data].

Fábio Silveira

Formado em Comunicação Social - Jornalismo pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalha com cinema e música. Foi Analista de Projetos Especiais no Instituto Gênesis (PUC-Rio) e International and New Media Manager na Deckdisc. Atualmente, é Label Manager Brazil da Altafonre Music Network. 

16 Comments

  1. Fábio, é sempre um prazer ler seus textos sobre cinema! Acho impressionante como os últimos 100 anos foram capazes de fazer todo o comportamento humano ser moldado a um modelo bem quadradinho. Esses modelos no cinema (e depois televisão e internet) reforçam estereótipos que a gente acaba aceitando como verdade…não conheço e confesso que não percebi as sutileza em muitos dos filmes. Parabéns pela coluna! Bjs

  2. Belo texto. É importante dissecar esse assunto na História do cinema e mostrar que como vc disse, a mudança está apenas no começo. Só vou discordar do que vc disse em relaçao a Persona. Tudo bem que podemos ter mais de uma interpretaçao em relaçao ao enredo, mas não são duas mulheres ali 😉

  3. Caramba! “Acabei de chegar” ao Café história e já me deparo com um texto maravilhoso… Fábio, um prazer foi ter lido seu texto, cheio de informações (relevantes) e referências. Parabéns!

  4. Olá Fábio, excelente texto. Faço porém uma sugestão de correção: Priscila Rainha do Deserto não tem nenhuma travesti em seu roteiro. Tratam-se de três drags, sendo quem uma delas é transexual, porém não me lembro da personagem em questão se identificar como travesti, ou nem mesmo de dizer de sua redesignação ou não, tema comum às travestis. Sobre Brokeback Mountain, estava feliz pela ausência dele, porém, apesar de ele aparecer no final, gostei que tenha sido citado de modo a referenciar possível caso de preconceito da academia e não avanço na representação das personagens gays, haja vista que o fim trágico tradicional marca presença novamente.

  5. Artigo interessante e preciso. Indico dois equívocos: o primeiro é dizer que Divine é uma travesti. Ela era uma drag queen e atuou dessa forma em várias produções do Waters. Judith Butler, inclusive, destaca esta questão performática da construção artística do feminino de Divine em “Gender Trouble”. Outro equívoco é falar que “Pricila a Rainha do deserto” é sobre travestis… um comentário aqui já esclarece isso. E lembre-se: travesti é sempre no feminino. Transexuais sim tem a variância de gênero (a/o).

  6. Texto muito bem erscrito, porém com faltas injustificáveis. Os filmes israelenses “Do Outro Lado da Fronteira” e “Yossi e Jager” foram um salto importante na abordagem do homossexual no cinema asiático, retratando no primeiro caso o amor entre um palestino e um israelense, e no segundo o de dois soldados israelenses no front setentrional da invasão israelense do Líbano. O assassinato frio de Mustafá no primeiro aponta para a homofobia maior do lado árabe. A temática sob o ponto de vista religioso ortodoxo retornaria em “O Pecado da Carne”. No Extremo Oriente, “Adeus Minha Concubina” aborda o problema da paixão entre um homossexual passivo por um hétero. No entanto o filme mais antigo no tema é o alemão Verschiedene Als Anders, com participação do primeiro a defender os direitos dos homossexuais, Magnus Hirschfeld (de cujo sobronome, segundo algumas fontes, provém a palavra “veado!” para designar homossexual, posto que em alemão e iídiche, Hirsch/Hirzs significa veado.

  7. Muito bom o texto. Hoje a temática homossexual pra muitos é modinha. Sou de uma época em que tudo era pecado, então, já viu. Me impressiona o cinema israelense com um país totalmente religioso, mas com bolsões de liberdade sexual. Cito o filme A bolha.

  8. Excelente texto.
    Apenas senti falta da citação do francês “A Gaiola das Loucas” (1978), que, pelo aparato cômico, conseguiu grande penetração (perdoe-me qualquer trocadilho) em todo o mundo trazendo uma realidade homossexual em considerável profundidade, sendo inclusive refilmado em Hollywood em 1996.

  9. Uma das cenas mais fortes de homoerotismo pré-afirmação gay é exibida em um filme dos EUA, mas que tem uma pegada europeia: ‘Something for Everyone’, de 1970 (direção de Harold Prince). No Brasil o filme ganhou o nome de ‘Diabólicos Sedutores’, no final dos anos 1970 passava nas madrugadas da TV brasileira.

    Na Alemanha de 1970, Michael York (então com 28 anos, mas aparência angelical de 21) torna-se criado em um castelo que é o lar de uma condessa viúva e falida (a maravilhosa Angela Lansbury, perfeita no papel) e seu casal de jovens filhos.

    Pouco a pouco York passa a seduzir a todos (como em Teorema). Logo ele percebe que o sensível primogênito da condessa – rapaz de seus 25 anos, se tanto (Anthony Higgins) – não está muito empolgado com a perspectiva de fazer um casamento salvador com alguma filha de milionário. Começa então uma amizade entre os dois rapazes, patrão e criado. Um dia, depois de nadarem no lago do castelo, ambos vão para o quarto do condinho usando apenas maiôs minúsculos. Lá “rola um clima”, como diríamos hoje, um olho no olho, a tensão sexual vai a mil e tudo deságua em um beijo muito explícito.

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