History Workshop: a história próxima das massas

Movimento britânico surgido na década de 1960 queria tornar a História mais democrática. Suas propostas ecoam ainda hoje na historiografia.
31 de dezembro de 2018

Em fins da década de 1960, um movimento na historiografia britânica se notabilizou graças a uma proposta provocativa: a História produzida nas universidades deveria se reaproximar do grande público, sobretudo dos grupos sociais marginalizados, abandonando a tendência de isolamento que caracterizava a produção naquele momento. Esse movimento se chamou History Workshop e foi liderado por um jovem historiador, Raphael Samuel (1934-1996). Neste artigo, veremos como se formou esse movimento, o que defendia e que legado deixou.

Um movimento alinhado com o seu tempo

Poucas décadas da era contemporânea foram tão conturbadas quanto a década de 1960. Por todo o mundo eclodiam revoluções, golpes de Estado, movimentos de guerrilha, guerras, atos de espionagem e outros acontecimentos políticos, sociais, econômicos e culturais que mudariam tanto a realidade a nossa volta como o entendimento que temos dela.

Nos Estados Unidos, milhões de pessoas, de donas de casa à membros de comunidades hippies, foram às ruas demonstrar sua insatisfação quanto à participação na Guerra do Vietnã. Na Europa, organizações não governamentais, partidos políticos de esquerda e grupos organizados da sociedade civil exigiam das autoridades o fim do colonialismo na África e na Ásia. Esses foram também os anos da explosão do rock, das lutas pelos direitos civis e da liberação sexual. “É proibido proibir”, cantava Caetano Veloso nos festivais de música no Brasil. Por todos os lados, era como se as pessoas tivessem redescoberto o seu poder e o seu lugar como sujeito na história.

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Raphael Samuel, lider do History Workshop, e a pesquisadora Jean McCrindle, Trafalgar Square, Londres, 1956.Foto: Raphael Samuel Archive, Bishopsgate Institute, London, courtesy of Alison Light and the Raphael Samuel Estate.

É nesse contexto que surge o History Workshop Movement. O movimento surgiu na Grã-Bretanha, na segunda metade daquela década, comandado por um jovem historiador chamado Raphael Samuel. Em 1967, com apenas 33 anos, Samuel era professor do Ruskin College, em Oxford, uma instituição independente especializada na educação de adultos com pouca ou nenhuma qualificação. Boa parte dos alunos do Ruskin College eram da classe trabalhadora.

Influenciado por uma geração mais velha de historiadores socialistas ingleses, entre os quais Edward P. Thompson, Samuel contou com a ajuda de seus alunos para realizar uma série de seminários chamados workshops. Nesses encontros, estudantes-trabalhadores, historiadores profissionais e amadores discutiam sobre a história do movimento operário, a história das mulheres e outros temas e grupos que, em geral, eram marginalizados pela escrita da história na Grã-Bretanha.1

Barbara Taylor lembra que o primeiro workshop do Movimento ocorreu em 1967. A Day with the Chartists foi um encontro modesto: reuniu apenas 50 pessoas no Ruskin College. Mas dali em diante, ele só cresceu. Cinco anos depois cerca de 700 pessoas participaram do workshop Worker’s Control. Segundo Taylor, “os workshops se tornaram grandes festivais da história, atraindo até mil participantes. Embora os temas variassem muito, os eventos eram uma vitrine da história vista de uma perspectiva não-elitista, a “história das pessoas” como era rotulada”.2

O History Workshop se alinhava com a corrente (ou abordagem) historiográfica chamada “história vista debaixo”, capitaneada por historiadores como E. P. Thompson, Christopher Hill e Natalie Zemon Davis, alguns anos mais velhos que Samuel. Essa geração revolucionou a história social inglesa e a história marxista ao privilegiar em suas análises as classes populares e a sua cultura, utilizando para isso fontes e sujeitos que até então eram silenciados nas pesquisas historiográficas. Como explica o próprio Thompson no prefácio da obra que se tornaria o paradigma dessa proposta de escrita da história, “estou procurando resgatar o pobre descalço, o agricultor ultrapassado, o tecelão do tear manual ‘obsoleto’, o artesão ‘utopista’ e até os seguidores enganados de Joanna Southcott, da enorme condescendência da posteridade. Suas habilidades e tradições podem ter-se tornado moribundas. Sua hostilidade ao novo industrialismo pode ter-se tornado retrógrada. Seus ideais podem ter-se tornado fantasias. Suas conspirações insurrecionais podem ter-se tornado imprudentes. Mas eles viveram nesses períodos de extrema perturbação social, e nós, não.”3

Em poucos anos, o movimento de Samuel irradiou-se por toda a Grã-Bretanha, influenciando variados círculos intelectuais e educacionais. No início dos anos 1970, o History Workshop Movement já era conhecido em vários países da Europa, das Américas e na África do Sul.4 Sua internacionalização tomou forma ainda mais consistente a partir de 1976, quando Samuel fundou uma revista acadêmica em torno da qual historiadores que compartilhavam daquela perspectiva da História passariam a publicar artigos, documentos e ensaios. Trata-se de uma “virada” no movimento.

Sobre o público, com o público e para o público

O History Workshop Journal mostrou que, mais do que trazer para dentro da História acadêmica os grupos socialmente marginalizados, havia a intenção de trazer esses grupos para dentro da universidade, contar com eles na escrita da história, estreitar os laços com aqueles sobre os quais eles falavam, tornando a História, como costumavam dizer, mais acessível e democratizada. Isso pressupunha compreender esses grupos como leitores. O editorial do primeiro número da revista deixa isso bem claro:

“Boa parte da escrita historiográfica jamais é lida fora do meio acadêmico, e a maioria desses textos é escrita somente para os especialistas que dele fazem parte. O ensino e a pesquisa estão cada vez mais distantes um do outro e ambos se distanciam de questões sociais maiores e mais explícitas. Nesta revista, tentaremos restaurar o contexto mais amplo do estudo da história, tanto como um contraponto à fragmentação escolar do sujeito, quanto com o objetivo de torná-lo relevante para as pessoas comuns. Esta revista visa tornar história mais democrática e alvo de uma preocupação mais urgente. Acreditamos que a história é uma fonte de inspiração e compreensão, fornecendo não apenas os meios necessários para interpretar o passado, mas também o melhor ponto de vista crítico a partir do qual se pode ver o presente. Assim, acreditamos que a história deve se tornar propriedade comum, capaz de moldar a compreensão das pessoas sobre si mesmas e sobre a sociedade em que vivem. Reconhecemos que uma erudição aberta e democrática requer mais trabalho do historiador, não menos: uma compreensão mais complexa do processo histórico, mais cautela ao lidar com as fontes, mais ousadia em ampliar as fronteiras da investigação, maior empenho para falar com mais clareza.”5

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Os trabalhadores estiveram no centro das preocupações do History Workshop em seu primeiro momento. Em um segundo momento, a história das mulheres ocupou esse lugar. Tela: “A greve”, von Robert Koehler (1886).

De acordo com Peter Burke, com seus artigos e seminários, Raphael Samuel inspirou muitas pessoas a escrever história “a partir de baixo”.6 Tal sucesso deve ser atribuído não só à escolha das temáticas, mas também às estratégias de comunicação utilizadas tanto pelo periódico como pelo movimento de uma forma geral. O History Workshop Movement apostava bastante na comunicação visual. Em seus encontros, os participantes recebiam panfletos e folhetos coloridos e repletos de informações. Muitos eram elaborados pelos próprios estudantes do Ruskin College – daí Samuel definir o movimento como uma “coalisão de trabalhadores-estudantes e outros historiadores socialistas”.7

Legados do History Workshop

O History Workshop manteve-se forte e influente até os anos 1980, quando começou a enfrentar um expressivo declínio. Barbara Taylor diz que as razões não são simples. “É impossível responder a esta questão brevemente, mas alguns fatores foram obviamente importantes. A ascensão do thatcherismo; o declínio do trabalho organizado; o colapso de uma esquerda popular; os desafios intelectuais colocados pelo marxismo europeu: na década de 1980, tudo isso estava minando o populismo de esquerda que havia sido o coração da Oficina de História”.8

Se o History Workshop não existe mais como movimento, suas ideias, no entanto, continuam vivas. O History Workshop Journal ainda é publicado. É um periódico bem avaliado e bem articulado no meio acadêmico. Seu site é dinâmico, repleto de dados, exposições e documentos que contam a história do movimento. Além disso, o movimento tem sido compreendido por muitos historiadores como uma espécie de precursor da chamada História Pública, movimento historiográfico surgido nos Estados Unidos, em meados dos anos 1970, que passou a pensar a atuação do historiador fora dos meios acadêmicos e da história feita para e com amplas audiências. Esses são os maiores legados desse movimento que sempre buscou se aproximar das massas.

Notas

1 SCOTT-BROWN, Sophie. The art of the organizer: Raphael Samuel and the origins of the History Workshop. History of Education, v. 45, n. 3, p. 372-390, 2016.

2 TAYLOR, Barbara. History of History Workshop. In: History Workshop. Disponível em http://www.historyworkshop.org.uk/the-history-of-history-workshop. Publicado em 22 de novembro de 2012. Acesso em 29 de dezembro de 2018.

3 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999. p. 12.

4 BONNER, Philip. New Nation, New History: The History Workshop in South Africa, 1977-1994. The Journal of American History, 81(3), 977. Doi:10.2307/2081437.

5 COELLECTIVE. History Workshop Journal. History Workshop Journal, 1976. 1(1), 1–3. Doi:10.1093/hwj/1.1.

6 BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

7 Ibidem.

8 TAYLOR, op.cit. (Tradução minha).

Referências

BONNER, Philip. New Nation, New History: The History Workshop in South Africa, 1977-1994. The Journal of American History, 81(3), 977. Doi:10.2307/2081437.

BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

COELLECTIVE. History Workshop Journal. History Workshop Journal, 1976. 1(1), 1–3.

DAVIN, Anna. The Only Problem was Time. In: History Workshop Journal. Oxford University Press, 2000. p. 239-245.

GENTRY, Kynan. Ruskin, Radicalism and Raphael Samuel: Politics, Pedagogy and the Origins of the History Workshop. In: History Workshop Journal. Oxford University Press, 2013. p. 187-211.

SAMUEL, Raphael. People’s History and Socialist Theory. Routledge, 2016.

SCOTT-BROWN, Sophie. The art of the organizer: Raphael Samuel and the origins of the History Workshop. History of Education, v. 45, n. 3, p. 372-390, 2016.

TAYLOR, Barbara. History of History Workshop. In: History Workshop. Disponível em http://www.historyworkshop.org.uk/the-history-of-history-workshop. Publicado em 22 de novembro de 2012. Acesso em 29 de dezembro de 2018.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. RJ: Paz e Terra. 1999.

Como citar este artigo

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de Carvalho. History Workshop: a história próxima das massas (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/history-workshop/. Publicado em: 31 dez. 2018. Acesso: [informar data].

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

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