Força feminina contra o nazismo: a enfermeira brasileira Virgínia Portocarrero na Segunda Guerra Mundial 1
Fotografia de Virgínia Portocarrero no hospital de Pistoia, Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). BR-RJ-COC-VP-03-06-V02-224.

Força feminina contra o nazismo: a enfermeira brasileira Virgínia Portocarrero na Segunda Guerra Mundial

Enfermagem brasileira esteve bem representada na Segunda Guerra Mundial. Vírgínia Portocarrero foi uma das enfermeiras que participaram da campanha italiana. Arquivo da “jovem febiana” está na Fiocruz.
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Eram quatro da manhã. Com o pai apreensivo e a mãe aos prantos, ela aguardava na porta de casa, no Rio de Janeiro, o jipe que a levaria para o front na Europa. Virgínia Maria de Niemeyer Portocarrero (1917-) tinha 27 anos e havia se voluntariado para compor o contingente de 67 jovens enfermeiras que ingressaram na Força Expedicionária Brasileira (FEB), na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Filha e sobrinha de generais, Virgínia cresceu em ambiente militar, entre familiares que participaram da Guerra do Paraguai. Sua trajetória como integrante do Exército na FEB é parte de um processo de mobilização política do Estado Novo de Getúlio Vargas. Esse processo pensava a enfermagem brasileira como ação de saúde pública impulsionada pelo Estado e tinha como modelo os padrões praticados na Inglaterra e Estados Unidos.

A enfermagem era uma profissão “plausível” para as mulheres daquela geração, assim como o magistério no ensino primário. O voluntariado, para as jovens, era uma oportunidade única de servir ao país em momento de apelo patriótico, após o torpedeamento dos navios mercantes brasileiros por submarinos alemães, em 1942, causando a morte de centenas de pessoas. O ato bélico de Hitler havia inflamado a população, que exigia uma dura resposta do Brasil à agressão nazista. O chamamento para a FEB representava também a oportunidade de ocupar outro lugar simbólico em uma sociedade ainda extremamente machista.

“Em 1943 foi criada a 1ª Divisão de Infantaria Expedicionária, parte do corpo da Força Expedicionária Brasileira, composta por unidades de artilharia, engenharia e saúde. Além dessa organização militar, houve também as iniciativas de mobilização civil para a guerra, entre as quais estava a convocação para o serviço de enfermagem voluntária. Essas iniciativas foram embasadas por um apelo patriótico utilizado por Getúlio Vargas”, explica Larissa Velasquez de Souza em artigo sobre a inserção de Virgínia na carreira militar.

Enfermeiras brasileiras na guerra 

As enfermeiras (67 jovens) que se juntaram às tropas brasileiras da FEB e à Força Aérea Brasileira (seis do Grupo de Caça Aéreo da FAB) rumo à Itália serviram em quatro diferentes hospitais de campanha do exército norte-americano montados em Nápoles, Valdibura, Pisa, Pistoia e Livorno. Somavam 73 jovens, formadas nas escolas de enfermagem do Rio (Anna Nery, Alfredo Pinto (UniRio), Cruz Vermelha Brasileira) e de São Paulo (Escola de Enfermagem da USP). Tornaram-se as primeiras mulheres a ingressar no serviço ativo na história das Forças Armadas no país.

Os requisitos não eram simples. Para inscrever-se, a jovem devia ser brasileira nata, solteira ou viúva, sem filhos, e ter entre 20 e 40 anos. Era preciso apresentar diploma de enfermeira ou certificado de curso de samaritana, voluntária socorrista ou declaração de um estabelecimento de saúde atestando o exercício da função de enfermeira.

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Fotografia das enfermeiras da Força Expedicionária Brasileira Virgínia (meio), Sylvinha (esquerda) e Doris (direita), durante a Segunda Guerra Mundial, na Itália. Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). BR-RJ-COC-VP-03-06-V02-223

“Algum tempo depois passaram a ser aceitas mulheres desquitadas, solteiras e viúvas. As casadas só eram admitidas se tivessem permissão do marido”, explica o historiador Roney Cytrynowicz no artigo “A serviço da pátria: a mobilização das enfermeiras no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial”.

Jovem ‘febiana’

Virgínia Portocarrero, uma dessas 67 enfermeiras da FEB, nasceu em 23 de outubro de 1917, no Rio. Formada em ciências e letras no Colégio Pedro II, cursou Aperfeiçoamento e Arte Decorativa na Escola Politécnica Nacional de Engenharia. Com pai militar e em constante mudança, iniciou o Curso de Enfermagem Samaritana na Cruz Vermelha de Belém do Pará, concluindo-o depois no Rio.

Em depoimento concedido às pesquisadoras da Casa de Oswaldo Cruz Anna Beatriz Almeida, Laurinda Maciel e Margarida Bernardes, em 2008, Virgínia conta que se voluntariou a partir de uma notícia publicada no jornal O Globo, em junho de 1943. Sem avisar aos pais, viu que preenchia os requisitos exigidos e fez a inscrição.

“Sonhava em ser militar. Pois é. Eu queria ser militar, eu queria ser homem, ser militar, porque o fulano disse que era homem militar, os meninos, e não havia Colégio Militar para menina. O Colégio Militar era só para homem, então eu fui para o Pedro II, não é? Mas a minha vontade era ser homem e militar…”.

Selecionada, acabou recebendo o consentimento dos pais e se matriculou no Curso de Emergência de Enfermeiras da Reserva do Exército (CEERE). Em junho de 1944, concluído o curso, ficou à disposição do Primeiro Escalão da FEB. No mês seguinte seguiu para Nápoles, Itália, como integrante do 2º Grupo, subordinado ao coronel Emmanuel Marques Porto, médico e diretor do Serviço Médico de Saúde da FEB. 

“Quando chegou no dia às 4 horas estávamos lá, eu, papai, mamãe, na porta do edifício. Fui para o quartel general e fiquei lá até três horas da tarde. Aí eu voltei, mamãe ficou alegre, eu fiquei alegre. Mamãe disse: “Vocês não vão mais, não vão mais”! Passados dois dias, a mesma coisa. Beijinho, beijinho, até mais tarde. E não voltei mais, dessa vez foi verdade. Embarquei para a Base Aérea de Parnamirim, em Natal, sem saber para onde iria depois”.

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Fotografia de ambulância alemã capturada, em Corvella, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz. BR RJCOC VP-03-06.v.02-187
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Tendas dos hospitais de campanha da Itália, onde atuou a Força Expedicionária Brasileira, durante a Segunda Guerra Mundial. Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). BR-RJ-COC-VP-03-06-V02-153B.

Após quase um ano de trabalho voluntário na guerra, Virgínia regressou ao Brasil em 7 de julho de 1945, retornando ao cargo de desenhista no Instituto Nacional do Mate, ligado ao então Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Em seguida, trabalhou como laboratorista e escriturária no Departamento de Saúde Escolar do Distrito Federal.

Em 1957, as enfermeiras “febianas” foram incorporadas ao Exército Brasileiro. Virgínia então voltou ao serviço ativo como 2º tenente e passou a atuar como enfermeira na Policlínica Central do Exército. Passou para a reserva em 25 de setembro de 1962 como 1º tenente e foi promovida a capitão em 1963.

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Cerimônia no Clube Militar pelo regresso dos militares e enfermeiras da Força Expedicionária Brasileira ao Brasil. Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). BR-RJ-COC-VP-03-06-V02-040

A experiência de Virgínia Portocarrero na Segunda Guerra Mundial foi registrada por ela mesma em seu diário de guerra – relatos escritos à mão em folhas de papel que enviava ao pai, o general Tito Portocarrero, por intermédio de soldados da FEB que retornavam ao Brasil. O arquivo ainda reúne cartas, centenas de fotografias, recortes de jornal, entre outros materiais. Tais documentos, como também a extensa entrevista que concedeu a pesquisadoras da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) em 2008, foram doados por ela ao Departamento de Arquivo e Documentação da COC. Consultas aos documentos do arquivo histórico podem ser solicitadas em https://www.gov.br/pt-br/servicos/consultar-arquivos-historicos-da-fiocruz

Referências

BERNARDES, Margarida Maria Rocha; LOPES, Gertrudes Teixeira. As enfermeiras da força expedicionária brasileira no front italiano. Rev. esc. enferm. USP,  São Paulo,  v. 41, n. 3, p. 447-453,  Sept.  2007 . 

CYTRYNOWICZ, Roney. A serviço da pátria: a mobilização das enfermeiras no Brasil durante a Segunda Guerra Mundial. Hist. cienc. saude-Manguinhos,  Rio de Janeiro,  v. 7, n. 1, p. 73-91,  June  2000 .  

PORTOCARRERO, Virgínia Maria Niemeyer. FIOCRUZ. Rio de Janeiro. 14 de maio. 2008. Entrevista concedia à Anna Beatriz de Sá Almeida, Laurinda Rosa Maciel e Margarida Maria Rocha Bernardes. Acervo da Casa de Oswaldo Cruz. Fundo: Virginia Portocarrero.

Como citar este artigo

D’AVILA, Cristiane. Força feminina contra o nazismo: a enfermeira brasileira Virgínia Portocarrero na Segunda Guerra Mundial (Artigo). In: Café História. Publicado em 1 mar de 2021. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/enfermeiras-na-segunda-guerra-virginia-portocarrero/. ISSN: 2674-59.

Cristiane d’Avila

Jornalista, doutora em Letras pela PUC-Rio, Tecnologista em Saúde Pública da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), onde atua no Departamento de Arquivo e Documentação. Mestre em Comunicação Social e Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-Rio. É organizadora do livro “Cartas de João do Rio a João de Barros e Carlos Malheiro Dias”, publicado pela Funarte em 2013, e autora do livro “João do Rio a caminho da Atlântida”, publicado em 2015 com apoio da Faperj. Colabora mensalmente com o Café História com textos sobre História das Ciências e da Saúde.

30 Comments

  1. Os brasileiros falam tão mal dos gringos americanos que segundo o povo daqui querem tomar conta da Amazônia e não sei de que. Mas entravam na guerra juntos com os mesmos americanos depois o Getúlio Vargas ficou pressionado pelos americanos. Segundo estas histórias dos heróis brasileiros na guerra é brincadeira. Com estes 1.000 brasileiros. Faleceram na guerra milhões de vários povos.

  2. 454 brasileiros perderam na vida eu pesquisei. Apenas na batalha de Kursk (uma de milhares batalhas na segunda guerra mundial) 180.000 russos perderam a vida.

  3. Excelente matéria, que poderia ser mais aprofundada. É muito interessante saber das lutas das mulheres pelo seu lugar dentro da sociedade. A frase “eu queria ser homem e militar” dia forte dentro desse contexto.

  4. Esse e um pais sem historia! Essas mulheres nunca foram lembradas ou homenageadas. Eu tenho 60 anos, fui militar e nunca tinha ouvido falar dessa passagem!!! Uma pena!!!

  5. esse conteúdo relevante e consistente mereceria um roteirista na abordagem de um
    belo filme, ampliando os limites da realidade daquela época e da nossa imaginação.

    • Épocas de um passado , onde todos , os jovens tinham seu valor , verdadeiros heróis … Hoje ,temos uma geração covarde que nada fazem em prol da nação ! GERAÇÃO PEREBA !!

  6. Essas 73 mulheres são heroinas nacionais. Trabalharam na segunda guerra mundial com muita coragem e dignidade. Um orgulho para o Brasil..

  7. Conheci a Virgínia Portocarrero e fui ao seu apto pois a sua empregada era amiga da minha mãe. E lá conversei com D. Virgínia que me aconselhava muito. Eu tinha 13, 14, 18 anos e ele me deu valiosos conselhos e um deles que mudou minha visa foi de não ir para a Escola de Aprendizes de Marinheiros, pois tinha um futuro melhor na vida civil, com os estudos que tinha. Saude e muitas felicidades para D. Virgínia.

  8. Q/ legal . Virgínia Maria de Niemeyer Portocarrero visitou Belém, acredito que em 1980 por aí. Eu a entrevistei para o Estado do Pará(hoje, Diário). Estive com ela no Forte do Castelo. Quando me contou sobre o tempo em que esteve na Itália, em 1944, há 76 anos, chorou bastante, ao lembrar das cenas que presenciou. Feliz em saber que a capitã está viva. Ela tem 103 anos.

  9. maravilhoso texto. Uma parte da nossa história que precisa ser revisitada e dada a conhecer aos brasileiros com acesso as fotografias e documentos originais!

  10. Fiz uma leitura mais prática do texto… ela ingressou, como enfermeira, aos 27 anos. Ficou pouco mais de um ano na ativa .Aos 40 foi reincorporada e aos 45 já estava aposentada. Vejo que isto era coisa para uma elite da época. Foi uma bela premiação,apesar claro ,do empenho.

    • Febianos valorosos demais. Mas o Brasil lutou do lado em que os comunistas estavam.
      Graças a essa aliança vencemos os nazistas e fascistas. Valeu, Gerson!

  11. Muito boa a matéria, service de exemplo para todas as Mulheres, não que todas devam ir a Guerra, mas pelo simples fato que são imprevisíveis em qualquer momento. Parabéns Enfermeiras Febianas, Parabéns a todas as Mulheres.????????

  12. Meu nome Virgínia foi escolhido pelo meu pai, Grinaldo Teixeira de Medeiros, em homenagem e agradecimento a uma das suas enfermeiras que ele teve, quando foi ferido na Itália, Monte Castelo. Cresci ouvindo essa história imaginando como seria essa pessoa, até o dia que nos conhecemos em Salvador-Ba, cidade onde moro e ela esteve em uma excursão com outros militares.
    Conto a história do meu nome com muito orgulho.

  13. A Virgínia a vitória e a glória da bravura e poder retornar para sua família. Mas, temos uma história comovente e triste de uma outra enfermeira que, ficou em um hospital e com aqueles feridos que não poderiam serem removidos. Ela como os mais feridos aguardaram o socorro que retornaria para buscá-los, e o hospital foi bombardeado. Ao ler a história dela eu fiquei muito comovida e vi o quanto de bravura tiveram os nossos heróis , principalmente ela que deu a vida por opção duas vezes de estar ali . A primeira de ir para o campo de batalha e a segunda de ficar com os mais feridos e aguardar o retorno do socorro que na realidade não teria tempo . Parabéns meus guerreiros do Brasil . A está enfermeira tombada em campo de batalha todas as estrelas do céu pelo seu brilho de bravura e coragem

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