Dois historiadores na Campus Party 2017

Décima edição do maior evento de tecnologia e inovação do Brasil aconteceu entre os dias 31 de janeiro e 4 de fevereiro de 2017 no Pavilhão de Exposições do Anhembi, em São Paulo. O Café História esteve lá todos os dias. Confira o balanço que os seus editores fizeram desta experiência.
6 de fevereiro de 2017
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A tecnologia sempre exerceu enorme influência na maneira como produzimos, ensinamos e divulgamos história. Nos últimos anos, essa influência tem sido maior do que nunca. É o caso, por exemplo, dos novos scanners, responsáveis por digitalizar milhões de documentos históricos. Ou ainda, de plataformas educacionais de código aberto, caso do Moodle, presente, hoje, em diversos cursos de educação a distância. E o que dizer das mídias sociais online, que estão permitindo reconectar o meio acadêmico com o grande público? Por essas e outras, estivemos presente na 10a Campus Party Brasil, evento focado em tecnologia e inovação que aconteceu em São Paulo e que todo início de ano mobiliza milhares de pessoas pelo país. Talvez ainda há quem estranhe a presença de dois historiadores em um evento como este. Mas depois de cinco dias de evento, temos certeza absoluta de que muito do que vimos no Pavilhão de Exposições do Anhembi tem a ver também com história e educação.

De olho na educação

Em sua décima edição, a Campus Party contou com uma estrutura robusta. O evento ocupou uma área de 77.700m2 do Pavilhão de Exposições do Anhembi. As atividades (workshops, palestras e competição de programação) – que totalizam mais de 750 horas – foram distribuídas em vários palcos. Além do “Palco Principal”, onde estiveram personalidades como Mitch Mowe, cocriador do Netflix, foram montados outros cinco palcos: “Empreendedorismo”, “Design”, “Mídias Sociais”, “Ciência” e “Inovação”, além de diversos outros pequenos espaços. 160 startups participaram desta edição da Campus Party Brasil, além de 8 mil campuseiros distribuídos em 6500 barracas – sim, parte do público dorme no próprio Anhembi durante o período. Os organizadores estimam que mais de 80.000 pessoas passaram pelo evento. No meio de tantas atrações, fomos atrás de atividades que envolviam educação ou educadores.

CAMPING
Camping dentro do Pavilhão de Exposição do Anhembi. Foto: Bruno Leal

Nesta busca, conhecemos muita gente interessante e dedicada ao uso da tecnologia para mudar a educação. Jason Magno, Doutor em Educação pela PUC-SP, realizou uma palestra no palco “Ciências” sobre tecnologia móvel na sala de aula. Ele utiliza em seus pesquisas o conceito de webcurrículo, criado a partir de referenciais construídos pela professora doutora Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida, da PUC-SP, para se referir à integração das tecnologias ao currículo escolar. Magno destaca:

– Enriquecer salas com tecnologias apenas, mesmo que sejam as melhores e as mais modernas, não garante êxito do ponto de vista da inovação curricular. Isso vai depender da participação dos sujeitos – o professor e o aluno – que são os que estão na sala de aula desenvolvendo o currículo. É pensar que o sujeito que aprende é quem precisa ter vez e voz para que esse currículo seja desenvolvido. É preciso recursos e uma infraestrutura, mas o que se busca é a consciência de que um dispositivo móvel é ter o mundo ao alcance das mãos.

Ao conversar com o público presente nas palestras, também encontramos professores da rede pública de Ensino Básico que trabalham diretamente com tecnologia. Em uma apresentação sobre projetos de robótica, conhecemos Luemy Ávila, gerente de projetos e inovação das prefeituras de Rio das Ostras e de Macaé. Ela é professora de artes, mas se especializou no uso de tecnologias para educação, sendo a principal líder do projeto transdisciplinar “Inovar e Aprender”, que tem ajudado a difundir a robótica educacional. O projeto tem crescido bastante e atinge várias escolas do estado.

– Nós temos estúdios em 28 escolas nas duas cidades e no Rio de Janeiro. Temos também parceria com a graduação em Ciência da Computação da UFF. São espaços dentro da escola com kits de materiais para desenvolvimento de atividades usando tecnologia – que podem ser usados por professores de qualquer disciplina, mas , em geral, temos um que tem horas destinadas ao programa. Contamos com uma equipe extensa, são cerca de 60 pessoas envolvidas, quase todos voluntários e alguns estagiários. Não existe uma programação fixa, não temos uma orientação objetiva do que o professor ou o estudante devem fazer nesses espaços. E isso deixa alguns professores perdidos ou meio receosos. Mas para nós, tecnologia traz isso, a autoria e a autonomia. Temos encontros periódicos de formação dos professores e atividades com apoio dos monitores (graduandos da UFF ou das próprias escolas). Participamos de diversas competições – de robótica, programação etc. Descobrimos que isso é motivador e que assim conseguimos acompanhar o andamento e os resultados do programa.

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Equipe de robótica de Rio das Ostras e Macaé. Na esquerda para direita: Luemy Ávila, Dangelo Moreira de Oliveira, Pedro Henrique e Túlio Sanchez.

Ávila e alguns de seus alunos tiveram o projeto “Robótica: Educação e Social” selecionado para participar da “Campus Future”, área da Campus Party aberta a todo o publico e que exibe projetos acadêmicos desenvolvidos nas salas de aula por alunos de graduação, recém-formadas e em centros de pesquisas de todo o Brasil. Alguns alunos do projeto participaram ainda da “Hackathon”, como é conhecida a maratona de competição de programação com objetivo de desenvolver propostas para solucionar problemas das cidades elencados pelo PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que fechou para este ano uma parceria com a Campus Party Brasil.

Uma participação a ser ampliada

Apesar de todos esses casos, vale dizer que o espaço dedicado à Educação na Campus Party ainda não é o mesmo dedicado a outros temas tradicionais do evento, como empreendedorismo, ciência ou mídias sociais. Neste ponto, ainda há um caminho a ser trilhado. Nesta décima edição, por exemplo, não houve um “Palco Educação”. E mesmo os eventos de Educação que ocorreram nos diversos palcos, nem sempre contaram com educadores entre os palestrantes ou proporcionaram debates mais aprofundados sobre temas educacionais – em um palco, por exemplo, participantes com conquistas relevante ainda muito jovens, falam de revolucionar a educação em pontos muito relevantes, mas sem conseguir aprofundar a discussão sobre a função social da educação. Aliás, de um maneira geral, a Campus Party ainda está muito calcada no mercado de trabalho, mais especificamente, na questão da empregabilidade. Para perceber isso, basta observar o público que circula pelo Anhembi. Apesar de vermos alunos e professores apresentando projetos que combinam educação e tecnologia de maneira interessantíssima, não vimos, como numa Bienal do Livro, por exemplo, caravanas de escolas – embora os organizadores tenham nos informado que a Prefeitura estaria levando ônibus com alunos da rede pública (talvez por ser uma época ainda de férias escolares ou de retorno de férias escolares, essa presença tenha sido mais discreta).

Nós acreditamos que é possível, além de necessário, ampliar o espaço dedicado à educação na Campus Party, levar mais escolas, mais alunos, mais educadores e mais projetos em educação ao evento. Depois de cinco dias percorrendo o Pavilhão de Exposições, chegamos à conclusão de que as ciências humanas podem dar uma grande contribuição a Campus Party – e de que o evento pode ajudar a diminuir o abismo que por vezes identificamos entre especialistas de diferentes áreas de conhecimento.

Os filósofos, por exemplo, podem promover debates sobre Inteligência Artificial ou sobre Realidade Virtual, discutir temas como existência e lógica. A comunicação social também pode estar mais presente, discutindo produção de conteúdo e ética para aqueles que escrevem para internet. Para nós historiadores, são várias as possibilidades: desde debates sobre história pública e digital até discussões sobre memória, passando pela história da computação, metodologias de pesquisa em internet, digitalização de documentos, museologia e arquivologia, áreas renovadas pela tecnologia. Leonardo Vichi, doutorando no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, participou do evento fazendo cobertura de imprensa para a Revista Outsider. Em conversa com o Café História, ele conta que buscou a Campus Party para saber mais sobre os softwares livres e ressaltou a importância de os historiadores estarem atentos à evolução tecnológica e sua influência delas na nossa experiência no mundo.

– A ampliação do acesso à tecnologia muda os paradigmas da nossa sociedade. Se a gente analisa a participação popular nas manifestações de 2013, que surge nas redes sociais, assim como a gente viu na Primavera Árabe um pouco antes, a gente passa a entender o quanto a tecnologia funciona de maneira muito eficaz como um agente social, como agente modificador de um panorama social e, obviamente, impacta principalmente no historiador que trabalha com História do Tempo Presente.

Tecnologia e História

Além dos debates envolvendo educação, nós também fomos a Campus Party com um outro objetivo: ampliar nosso conhecimento sobre as novas tecnologias para, então, levar o que aprendemos para dentro de nossos projetos na internet. O Café História está há quase dez anos na web. Ao longo desses anos, tivemos que nos abrir completamente para um conhecimento interdisciplinar. Elaborar um projeto de história digital ou pública, afinal de contas, requer conhecimento de design, programação, marketing, comunicação, produção audiovisual, gestão de mídias sociais, entre outros. Sem dúvida, trata-se de um empreendimento difícil. Mas, por outro lado, é algo extremamente excitante, algo que nos coloca em sintonia com o nosso tempo e com as tendências de nossa área. Por isso, nessa Campus Party, assistimos várias palestras sobre YouTube, buscando melhorar nosso canal nesta plataforma. Produzimos, inclusive, um artigo para historiadores que desejam realizar incursos na produção audiovisual. Também marcamos presença em palestras sobre produção de texto para internet, conversamos com profissionais de webdesign e notamos o quanto o Telegram – rival do WhatsApp – esteve bastante presente na Campus Party, o que nos animou ainda mais para investir em nosso canal na ferramenta, lançado em dezembro de 2016.

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Bruno Leal e Ana Paula Tavares, do Café História, fazem balanço da Campus Party 2017. Foto: Bruno Leal.

Mais do que isso, conversamos bastante com pessoas de diferentes idades e profissões que nos ajudaram a ampliar nossas perspectivas sobre tecnologia. Notamos tendências que podem, em alguma medida, impactar no campo do ensino de História, caso dos jogos eletrônicos e da realidade virtual. Um fato curioso: ao saber que somos historiadores, muitos dos campuseiros, como se chamam os participantes do evento, nos perguntavam o que achávamos do rigor histórico de armas, contextualização, cenário e referências de jogos virtuais. Se a imersão, experiência muito discutida no evento, traz a questão da historicidade para um lugar de afeto, seria possível promover também determinada reflexão? Talvez, a aproximação dos historiadores com essas áreas de criação possa gerar produtos ainda não existentes e, portanto, difíceis de se prever. Mas, mesmo desconsiderando este entrelaçamento mais profundo, o contexto que cada vez mais envolve nossos jovens não pode ser ignorado por nossos docentes. No caso dos jogos, está mais do que na hora de nos aprofundarmos em sua conexão com os alunos. Desde 2015, a indústria dos games fatura mais do que a de cinema e de música, somadas. No Brasil, o crescimento é num ritmo superior a 10% ao ano, em contraste com uma cenário de grave crise econômica no mercado de entretenimento. Os historiadores podem e devem estar atentos a este poderoso nicho.

Hoje, o formando em História que permanece no campo, costuma atuar na docência  no Ensino Básico ou no meio acadêmico. Mas essas não são e nem podem ser as duas únicas possibilidades. Para nós, a Campus Party mostrou que existem muitas possibilidades a serem exploradas para quem se interessar em carreiras transdisciplinares, bem como nos inspirou a imaginar a tecnologia como motivador para a convergência de diversas áreas de conhecimento – especialmente porque a área de computação é muita nova e aberta à criatividade de quem vem “de fora”. Seria possível para historiadores, portanto, atuar na elaboração de roteiros para jogos, com programação de aplicativos, construção de sites, projetos de digitalização, curadoria de mídias sociais, entre outros tantos campos que nascem ou renascem com as novas tecnologias? Para nós do Café História, parece que sim.

Bruno Leal e Ana Paula Tavares

Ana Paual é Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC/FGV). Possui graduação em Comunicação Social – habilitação jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2006). É formada em teatro pela Casa de Artes de Laranjeiras -CAL (2010). Estuda gênero e atuação profissional através da trajetória da jornalista judia Yvonne Jean, que imigrou para o Brasil no final dos anos 1930 fugindo da perseguição nazista na Europa. No Brasil, Jean tornou-se um importante nome da imprensa brasileira.

Bruno Leal é fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social (UFRJ, 2015). Mestre em Memória Social (UNIRIO, 2009), Especialista em História Contemporânea (PUCRS, 2010), Graduado em História (UERJ, 2006) e Comunicação Social (UFRJ, 2006). Foi professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra, com especial ênfase no destino dos criminosos nazistas. Foi cocoordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes da UFRJ, o NIEJ entre 2011 e 2018. É membro da Rede Brasileira de História Pública e da Associação das Humanidades Digitais.

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