“A Sociedade da Neve”: os sobreviventes do inferno gelado

Filme reconta o drama único dos sobreviventes da queda de um avião uruguaio a caminho do Chile em meio a Cordilheira dos Andes no início dos anos 70.
26 de janeiro de 2024
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"A Sociedade da Neve": os sobreviventes do inferno gelado 1
Cena de "A Sociedade da Neve". Divulgação/Netflix

A jornada hercúlea dos uruguaios sobreviventes desse desastre aéreo foi uma das primeiras histórias a receber simultaneamente atenção global por ocorrer, coincidentemente, na época em que foi lançado na atmosfera um dos primeiros satélites de transmissão mundial. Isso e a peculiaridade dos fatos envolvidos – dos 45 passageiros, 29 sobreviveram à queda, mas apenas 16 foram resgatados vivos – fez a saga dos passageiros do voo fretado Air Force Fairchild 571 do Uruguay para Santiago no Chile em outubro de 1972, se tornar uma parte do folclore de quedas espetaculares na aviação e de sobrevivência em ambientes inóspitos.

A primeira dramatização da inacreditável história dos jogadores amadores de Rugby do time do Old Christians Club foi contada ao nível hollywoodiano em Alive, dirigido por Frank Marshall e lançado em 1993, tendo Ethan Hawk no papel de Nando Parrado e baseada no livro homônimo do jornalista inglês Piers Paul Read de 1974. Alive tinha o foco quase que inteiramente nos fatos chocantes e violentos do acidente, e tento livro como filme foram muito criticados por sobreviventes e familiares por se aterem apenas aos fatos externos da tragédia. No geral, os envolvidos, direta ou indiretamente, nunca ficaram satisfeitos com obras que se concentraram apenas nos fatos externos e tétricos do acidente, ignorando os depoimentos das vítimas e suas histórias pessoais.

Já no caso de A Sociedade da Neve foi aberto um espaço para os pensamentos das vítimas da queda do avião, instigando, como nenhuma outra obra até então, discussões sobre questões morais e filosóficas que dão ao filme um drama e uma profundidade emocional muito maior. Baseado no livro homônimo de 2009 do jornalista uruguaio Pablo Vierci, quem, por coincidência ou não, estudou com alguns dos passageiros do fatídico voo na infância e adolescência, A Sociedade da Neve se concentrou exatamente nisso: nas vivências dos rapazes que sobreviveram a queda do avião – mas não necessariamente às agruras das montanhas geladas -, alguns dos quais deixaram depoimentos em cartas antes de morrerem nos 72 dias que se seguiram enquanto permaneceram perdidos em meio aos Andes.

A história adaptada pelo diretor espanhol Juan Antonio Bayona é conhecida tanto como o milagre e a tragédia da cordilheira dos Andes. No caso, dependendo se familiares estivessem do lado dos mortos ou dos que sobreviveram. Bayona já nutria há tempos uma fascinação pela história e admite a ter utilizado como inspiração para seu filme The Impossible de 2012, onde contava sobre uma família que sobreviveu ao Tsunami de 2004 no sudoeste asiático. Apesar da direção espanhola, o elenco é quase que completamente formado por atores uruguaios e argentinos e a narração é feita de forma fictícia por Numa Turcatti, interpretado pelo ator uruguaio Enzo Vogrincic, um sobrevivente da queda do avião, mas que pereceu apenas poucos dias antes que Nando Parrado (Agustín Pardella) e Roberto Canessa (Matías Recalt) retornassem ao local das ferragens do avião com um time de resgate para buscar o restante das vítimas. Nando e Roberto assumiram uma busca kamikaze e solitária como método desesperado para encontrar ajuda. Eles saíram do acampamento no dia 61 após o acidente, e apenas com uma barraca precária e mantimentos escassos, percorreram 60km pelas montanhas vertiginosas até chegarem a um vale e uma planície onde conseguiram ajuda de trabalhadores rurais da região. Era o dia 71 após o desastre, mas todos estariam a salvo somente ao final do dia 72 depois de uma complicada operação de resgate por helicóptero.

Bayona teve a difícil tarefa de tratar com respeito e cuidado temas espinhosos como a forma de alimentação dos sobreviventes. Fato esse que mais surtiu efeito nas mídias sensacionalista da época, e fui usado muitas vezes para desumanizar os sobreviventes.  Logo após o salvamento em dezembro de 1972, foi pedido aos sobreviventes que não revelassem o fato de terem se alimentado dos cadáveres dos mortos, por medo da reação que isso causaria nas pessoas, principalmente na Igreja Católica (da qual os jogadores de Rugby eram fervorosos membros). Sem uma alternativa para se alimentarem diante de montanhas de pura neve, gelo e pedras, foi essencial um mecanismo de compartimentalização para que as vítimas conseguissem lidar com o fato de comer os mortos. Apenas pequenos grupos tinham a tarefa de cortar a carne e a procedência (qual corpo se tratava) foi mantida em segredo até hoje. Assim como a oferta dos moribundos de suas carnes para alimentar os que sobreviviam mais tempo. Uma amostra incrível de um pacto de solidariedade, união e amizade. Assim, sendo impossível esconder o fato dada as circunstâncias e localização do acidente, a forma de se alimentar dos sobreviventes foi considerada como extrema, mas inevitável, e eles receberam o “perdão“ da igreja e da população em geral.

Bayona evita a polêmica, assim como evita um prólogo estendido sobre os passageiros do voo. A sua obra se concentra de forma intimista nos sentimentos, pensamentos e ações dos personagens durante os 72 dias de calvário pelo qual passaram, e, em pequena parte, no tratamento imediato das vítimas após o resgate. É uma homenagem e um acerto de contas, dá voz aos que não sobreviveram, e permite um leque grande de divagações dos que sobreviveram.

As percepções dos sobreviventes de toda a experiência são muitas e mostradas de formas variadas. Alguns se apegaram à religião, outros à nobreza de atos desesperados e ao espírito de partilha, mas também temos os que como Pedro Algorta (Luciano Chatton) e Nando Parrado, que optaram pelo ceticismo, contando suas vivências de forma bem menos romantizada. Esse ponto de vista nos aproxima mais do reino animal ao qual pertencemos e que, muitas vezes, movidos pelo superego, insistimos em ignorar. No filme vemos, mesmo que de forma mais sutil, nuances dessa visão mais concreta e menos espiritualizada, como no monólogo de Arturo Nogueira (Fernando Contingiani) sobre não acreditar em uma força suprema, mas sim na força real e palpável dos que estavam ali naquele momento. Pedro, diferente de muitos dos outros companheiros, passou a maioria do tempo após o resgate em silêncio, sem dar palestras ou entrevistas, porém abriu uma exceção para o livro de Vierci, e deu a sua perspectiva do homem que anula o intelecto e assume o instinto de sobrevivência.

A participação das famílias das vítimas do acidente foi parte essencial para a realização do filme. E isso incluiu entrevistas que auxiliaram no roteiro, e vários “cameos” de sobreviventes como Nando Parrado, Roberto Canessa e Carlitos Paez. Para quem já conhecia a tragédia em seus detalhes – como o fato de Carlitos Paez ser filho do artista uruguaio Carlos Páez Vilaró – o filme é um emocionante deleite. Para quem não conhecia essa espetacular história, o filme é uma perfeita introdução para ser seguida pela leitura de A Sociedade da Neve (2009) de Pablo Vierci.

A Sociedade da Neve é o representante oficial da Espanha para concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro e acaba de ser indicado para o prêmio, e confesso, tem a minha torcida. Está disponível para streaming no Netflix.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

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