“Shirley para Presidente”: uma mulher que lutou para fazer História

Num mar de branquitude, lá estava ela: Shirley Chisholm (Regina King), a primeira mulher negra a ser eleita para o Congresso Norte-Americano, em 1968. Confira o que traz a nova produção Netflix.
23 de maio de 2024
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Filme é produçãoão original da Netflix.

Um ano eleitoral sempre nos oferece uma boa chance para olhar para o passado e aprender alguma coisa. Além das eleições municipais, em 2024, ocorrerão as eleições presidenciais nos EUA, que garantem para nós uma oportunidade de aprendizado. Podemos olhar para o passado com um filme que estreou na Netflix, sobre uma figura inspiradora que nunca deixou de lutar pelo que acreditava.

Num mar de branquitude, lá estava ela: Shirley Chisholm (Regina King), a primeira mulher negra a ser eleita para o Congresso Norte-Americano, em 1968. Ela não pararia por aí. Quatro anos mais tarde, ela se tornaria a primeira mulher negra a disputar as eleições primárias de um grande partido para ser candidata à presidência dos Estados Unidos.

Shirley foi eleita representando o Brooklyn, mas o Presidente da Câmara lhe oferece uma posição no Comitê de Agricultura. É o primeiro ano de seu primeiro mandato, e mesmo assim ela confronta o Presidente e consegue que ele a indique para outro comitê, mais urbano – onde, algo que não é mostrado no filme, ela lutaria contra a fome. Ela não é apenas persuasiva, é uma lutadora.

A notícia de que Shirley disputaria a indicação é festejada por muitos. A autora Betty Friedan – de um livro seminal para a Segunda Onda do Feminismo, “A Mística Feminina” – declara numa entrevista que ver Shirley concorrer à presidência é um sinal de que os tempos estavam mudando. Seus apoiadores estão exultantes, mas a sua família não está: a irmã Muriel (Reina King, irmã de Regina King também na vida real) condena a decisão, dizendo que ela é um reflexo da criação de Shirley: o pai delas tratava a menina de um jeito diferente e agora ela pensa que é alguém especial capaz de se tornar presidente. Muriel também se recusa a ser entrevistada pelo The New York Times, jornal que está preparando um perfil de Shirley que pode mudar o jogo. Muriel está cansada dos insultos que ela e o resto da família estão ouvindo diariamente e não quer ter nada a ver com a campanha de Shirley.

Para um congressista reacionário, Shirley diz que está preparando o terreno para que mais pessoas como ela possam ocupar aquele espaço. Ela está lá para “representar os negros, as mulheres, os imigrantes, a juventude, a classe trabalhadora”. Para uma jovem chamada Barbara (Christina Jackson), Shirley fala sobre política e diz que votar é o primeiro passo para a mudança, isto logo depois que a jovem diz que não vota devido ao elemento burguês do processo eleitoral, um processo que não é justo para os negros. Mais uma vez, Shirley tinha razão: é votando que temos nossas vozes ouvidas, é votando que fazemos a diferença.

As três maiores emissoras de televisão da época (ABC, CBS e NBC) não convidam Shirley para os debates, mas convidam candidatos que tiveram menos votos nas eleições primárias. Shirley então pede que o gerente de campanha jovem e futuro advogado Robert (Lucas Hedges) processe as emissoras, o que acaba dando resultado: ela participa dos debates e até ganha meia hora de uma entrevista exclusiva em uma das emissoras. Partes desta entrevista são mostradas no filme.

Um dos adversários de Shirley, George Wallace, governador do Alabama e notório segregacionista, sofre uma tentativa de assassinato e Shirley vai visitá-lo no hospital, onde diz que ela também estava lidando com ameaças de morte na época. Wallace foi governador do Alabama por quatro vezes e tentou também quatro vezes ser candidato à presidência dos EUA, três vezes como Democrata e uma vez de maneira independente. Ele defendeu, desde o início da carreira, ideias segregacionistas e é mais lembrado por elas.

Shirley se encontra com Huey Newton, então presidente dos Panteras Negras, na casa da atriz Diahann Carroll. Diahann foi uma atriz famosa que chocou o país quando estrelou a série de televisão “Julia”, na qual interpretava uma enfermeira que não precisava de um homem em sua vida para ser realizada. Diahann fez história em 1962, quando se tornou a primeira mulher negra a ganhar o Tony de Melhor Atriz num Musical, e novamente em 1968, quando “Julia” estreou, por interpretar uma protagonista negra não-estereotipada numa série de TV.

Os Estados Unidos tiveram seu primeiro presidente negro, um presidente que foi incapaz de acabar com uma guerra sangrenta no Oriente Médio, recentemente. Teriam tido sua primeira mulher presidente, se não fosse o mecanismo confuso e complexo do Colégio Eleitoral, que garante a vitória, mas não a quem tem mais votos, e sim a quem garante mais delegados segundo o desempenho em cada estado. Este mecanismo foi criado pelos “Founding Fathers”, constituintes de 1776, para evitar que um demagogo fosse eleito, mas até hoje ele só evitou que dois ganhadores do voto popular assumissem a presidência, em 2000 e 2016.

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A Congressista no momento de anunciar sua candidatura à presidência em 1972. Foto: Biblioteca do Congresso.

Não é spoiler dizer que Shirley não conseguiu a indicação do partido Democrata. O indicado, George McGovern, perdeu a eleição para Richard Nixon, numa vitória esmagadora, e Nixon renunciou em 1974 após o escândalo do Watergate. Poderia ter sido diferente com Shirley no poder.

É quase impossível não comparar “Shirley para Presidente” com “Rustin”, outra cinebiografia de uma figura importante na história dos negros nos Estados Unidos. Ambos os filmes estrearam na Netflix e escolheram contar apenas uma porção das vidas dos biografados. São ambos bem escritos e com boas performances pelos atores, mas há algo que falta neles. Parecem ser inofensivos, mas seus conteúdos inspiradores podem ser catalisadores de mudanças.

O roteirista e diretor John Ridley, que ganhou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado em 2013 pelo filme “12 Anos de Escravidão”, também escreveu sete romances. Ele é produtor de cinema desde 1997 e se envolveu numa polêmica há alguns anos quando escreveu um artigo para o Los Angeles Times pedindo à HBO que retirasse o clássico “E o Vento Levou…” (1939) de sua plataforma de streaming porque o filme glorificava a escravidão e o modo de vida racista do Sul. Quando ela pergunta ao coordenador de campanha Arthur se ela é louca, Shirley ouve que “talvez esse seja o segredo” para realizar mudanças. Pessoas loucas e seus sonhos loucos fazem o mundo ir para frente e sempre podemos ser inspirados por suas histórias através de cinebiografias como “Shirley para Presidente” que, apesar de formulaica, é uma ótima maneira de passar o tempo.

Letícia Magalhães

Historiadora e crítica de cinema. Contribuiu com sites como Filmes e Games e Leia Literatura. Mantém desde 2010 o blog Crítica Retrô, sobre filmes clássicos e antigos, e contribui para os sites Revista Eletrônica Ambrosia e Cine Suffragette, no qual é também editora. Foi vencedora do prêmio do Collegium do Festival de Cinema Mudo de Pordenone em 2021, escrevendo sobre o que mais gosta: cinema e história.

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