Mulheres úmidas e homens secos: representações de gênero no mundo grego antigo 1
Dois bustos de terracota, Século 4 aC. Bustos identificados como Perséfone ou possivelmente Deméter. Como é típico dessas terracotas sicilianas, elas não representam os braços ou os seios da figura, mas o rosto e o cabelo com seus cachos e cachos ondulados são representados de maneira poderosa. Originalmente, eram adornados com brincos, conforme indicado pelos orifícios nos lóbulos das orelhas. Foto: The MET, NY. 1994.600.1, .2

Mulheres úmidas e homens secos: representações de gênero no mundo grego antigo

Escritos da Grécia Antiga revelam representações de gênero que poderiam ser lidas atualmente a partir da ideia da misoginia, embora o conceito ainda não existisse entre os gregos clássicos.
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A misoginia, isto é, o ódio ou a depreciação das mulheres, é um dos focos centrais do debate público no mundo contemporâneo. Ela está presente nos discursos e representações do feminino, na violência contra a mulher e na falta de crédito que é dada à sua palavra. Manifesta-se, de forma aberta e velada, nos estratos sociais mais altos e mais baixos. Mas e no passado, as mulheres também eram alvo do que hoje classificamos como misoginia? De que modo se davam as relações de gênero no mundo grego antigo, em especial na Atenas do período clássico? Sem desconsiderar as diferenças entre as nossas normas de gênero atuais e a dos antigos gregos, ou entender a história como a fonte de explicação do presente, refletir sobre essas perguntas pode nos ajudar a entender desafios bem persistentes, ainda que não idênticos, nas relações de gênero.

Gênero e Misoginia no mundo grego

É possível identificar traços do que hoje chamamos de misoginia em diversos textos canônicos gregos. Mediante o reconhecimento de diferentes representações gregas que chegaram até nós, pode-se verificar, em especial quando pensamos no período clássico da polis de Atenas, a existência de uma separação rígida em núcleos diferentes de participação, em ambientes públicos e privados, entre o gênero feminino e o gênero masculino. Isso vai ao encontro com o que a historiografia sabe sobre o período: as mulheres figuravam entre os vários grupos marginalizados da dinâmica democrática ateniense do período clássico. Essa exclusão integra o arcabouço ético grego e, sendo assim, buscou justificativas biológicas e míticas para o seu cumprimento.

Em um texto atribuído a Aristóteles, Problemata, no qual o autor disserta sobre um conjunto de questões das mais diversas, está a hipótese das diferentes composições físicas entre homens e mulheres, que teriam, por assim dizer, naturezas diferentes. Enquanto os homens seriam quentes e secos, as mulheres seriam, antagonicamente, frias e úmidas. Nesses termos, devido a sua natureza seca, homens seriam capazes de resistir com mais sucesso à violência do eros (amor erótico), tendo em vista que este teria um efeito mais suave e liquefeito. Já no caso das mulheres, ao contrário, o calor se alocaria mais internamente (o que tornaria inclusive a pele mais clara, característica tipicamente feminina entre os gregos), no coração e no fígado, resultando em uma maior propensão às paixões. Essa formulação, pseudocientífica para os padrões modernos, é, no entanto, especialmente útil para iluminar a crença grega de que as mulheres seriam incapazes de segurar os seus impulsos, em um sentido de autocontrole (enkrateia) e, por conseguinte, incapazes de viver em equilíbrio, ou moderação (sophrosyne).

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Estatueta em faiança fragmentária de Afrodite, 334–30 AC. Período: Helenístico. Cultura: egípcia, ptolomaica. Foto: The MET.

Essa natureza dada às paixões deveria ser alvo de desconfiança masculina, afinal, seria a própria causa de todos os infortúnios. Isso pode ser observado, por exemplo, na poesia instrutiva de Hesíodo (poeta do período arcaico, séc. VIII – VII a.C.), cuja obra exerceu influência significativa para a cultura grega durante o período clássico (séc. VI – V a.C.). No poema intitulado Teogonia (Origem dos Deuses), o poeta descreve as chamadas “Cinco eras dos homens”, entre as quais, a primeira, Era de Ouro, teria sido a melhor, ou seja, ali haveria apenas homens imortais e, dessa forma, em alguma medida comparáveis aos próprios deuses. Contudo, a quinta e última Era, a Era de ferro, constituída, assim, em meio a um sentido progressivo de decadência, seria marcada por um cenário em que longe das proezas e atribuições de antigos heróis, “filhos desonram os pais, irmãos brigam com irmãos e o contrato entre visitantes e anfitriões deixa de existir”. É nessa dramática sequência narrativa que a primeira mulher, Pandora, teria sido criada como uma forma de punição orquestrada por Zeus contra os homens. Graças a sua natureza feminina, de acordo com Hesíodo, todos os males foram libertados da infame caixa, de modo que “a terra e os mares estão repletos de todos os males e as doenças trazem sofrimento aos homens, seja de noite ou de dia”.

Portanto, enquanto às mulheres faltaria a capacidade de autocontrole (enkrateia), e moderação (sophrosyne) o que seria potencialmente prejudicial ao bem comum (como fica evidente no caso de Pandora), ao homem, consequentemente, esses elementos seriam condição para a sua própria masculinidade. Isso se reflete nas obrigações públicas atribuídas a eles nesse contexto, reforçando a hipótese de que as classificações por gênero traduziam, e traduzem, diferentes papéis sociais. Por exemplo, aos cidadãos atenienses era esperado no âmbito público a responsabilidade de administrar a economia do oikos (casa), de observar a conduta de todos os membros de seu núcleo, de participar das assembleias e de defender a cidade em tempos de guerra. Segundo o filósofo francês Michael Foucault, em História da Sexualidade, todos esses compromissos, ao fim e ao cabo, seriam práticas de uma mesma natureza, quer dizer, dependeriam em grande medida para o seu sucesso da capacidade de controlar a si próprio. Dessa forma, pode-se concluir que para um homem perder a moderação ou o autocontrole significaria ao mesmo tempo perder o próprio status de masculino e se comportar de maneira efeminada, uma vez que nesse cenário o gênero se comporta como um rígido condicionante social.

Distinções sociais

Levando-se em consideração essas barreiras entre os gêneros, ainda cabe fazer referência às diversas categorias sociais propriamente femininas no mundo ateniense clássico. Segundo Demóstenes, influente orador ateniense, seguindo ainda uma retórica masculina, certas mulheres, etairoi, serviriam para o deleite (intelectual) masculino nos banquetes, já outras, as escravas, para as necessidades sexuais, e as gyne, isto é, mulheres casadas com filhos, tinham a atribuição de administrar o oikos, chefiado pelo kyrios (senhor), ou o homem da casa. Além dessas, também pode-se mencionar a kore, ou menina ainda não casada, nem ao menos noiva, e a nimphe, ou ninfa, jovem mulher que está prestes a se casar, ou já se casou, mas ainda não tem filhos. O reconhecimento dessas distinções sociais se revela importante já que torna evidente que as mulheres naturalmente não constituíam, assim como ainda não constituem, um grupo homogêneo, mas preenchiam diferentes funções a depender de um próprio status precedente, ou melhor dizendo, há casos de mulheres escravizadas, estrangeiras, que trabalham no campo, ou de famílias aristocráticas. Todas elas cumpriam papéis sociais razoavelmente diferentes, ocupando, assim, espaços públicos e privados distintos. Com isso, deve-se ter em mente que o universo de condicionantes sociais possíveis nesse ambiente era amplo, compondo um quadro social complexo imerso a uma dicotomia existente entre gênero feminino e gênero masculino.

Passado e presente

Com isso, não se pretende atribuir algum juízo de valor, sob o risco de anacronismo, aos gregos, até porque a própria concepção de misoginia não existia, nesses termos, entre os antigos helenos. Entende-se, no entanto, que o estudo e reflexão de questões ligadas ao gênero em diferentes realidades históricas (não apenas a grega) pode ser enriquecedor para as discussões sobre o tema nos dias de hoje. Dar-se conta da pluralidade de categorias sociais via gênero em diferentes momentos históricos tem como efeito natural ‒ dentre outras possibilidades ‒ contribuir para a legitimação de novas e renovadas discussões sobre o tema e outros subjacentes no presente.

Referências

DAVIDSON, J. Foucault and Greek Homosexuality: Penetration and the truth of Sex. Past and The Present, n. 170, p. 3-51. 2001.

FOUCAULT, M. The History of Sexuality, vol.1: An Introduction. Vintage Books. 1980.

______ . The History of Sexuality, vol. 2: The Use of Pleasure. Vintage Books. 1986.

JOHNSON, M; RYAN, T. Sexuality in Greek and Roman Society and Literaturre: A sourcebook. Routledge. 2006.

SKINNER, M. Sexuality in Greek and Roman Culture. Wiley Blackwell. 2014.

VEYNE. P.  La Famille et L’amour sous L’Haut Empire romain. Annales ESC. n. 31, p. 50-53. 1978.

Como citar este artigo

BERNARDINO, Danilo. Mulheres úmidas e homens secos: representações de gênero no mundo grego antigo (Artigo). In: Café História. Publicado em 7 junho de 2021. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/mulheres-umidas-homens-secos-genero-na-grecia-antiga/. ISSN: 2674-5917.

Danilo Bernardino

Doutorando no Programa de Metafísica da Universidade de Brasília. Professor de História da Secretaria de Educação do Distrito Federal.

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