“Matrix Resurrections”: posicionado para desagradar 1
Neo (Keanu reeves) e Trinity (Carrie-Anne Moss) estão de volta a seus papéis em Matrix. Foto: reprodução.

“Matrix Resurrections”: posicionado para desagradar

Em sua crítica sobre o novo filme de Lana Wachowski, o historiador Andre de Lemos Freixo discute como os elementos do quarto filme da franquia estão ali para provocar incômodo, e por meio do incômodo, a reflexão.
10 de fevereiro de 2022

Eu gostei muito do quarto filme de Matrix, Resurrections. Não se enganem: o filme é uma sátira. E não satiriza apenas elementos da trilogia original. Acho que ele dá um tapa na cara de muita gente, dentro e fora de Hollywood, e merecidamente, diga-se de passagem. Acho que tudo ali foi meticulosamente posicionado para desagradar. Desagradar principalmente a indústria do cinema, pois o filme foi pensado para ser um “antiblockbuster”.

Atenção aos letreiros luminosos na cena de perseguição da personagem Bugs logo no início do filme (“Sabor de merda”, diz um, outro diz: “para aqueles que estão acostumados a comer cocô”). Atenção também diálogo sobre o relançamento (continuação) da franquia The Matrix no contexto de uma grande Empresa de Games. É absolutamente explícito sobre o que afirmei aqui.

O filme visa colocar uma pedra nesse assunto das sequências (acho). Acho que ele desagrada, propositalmente, aos fãs de ficção científica e demais fanboys desse tipo de reciclagem da indústria cultural de massas e seus filmes de super-heróis que estão matando a sétima arte, reduzindo-a a mero adereço de parques temáticos e venda de brinquedos. Desagrada porque se recusa a fornecer a “pílula azul” de nostalgia que nossa época parece desesperada para consumir. Desagrada porque mobiliza abertamente pautas sobre o lugar da tecnologia nas nossas vidas e na contemporaneidade; das sexualidades; das identidades não binárias; e porque faz verdadeira chacota das apropriações da trilogia original, desde as absolutamente selvagens (de incels, ancaps e trumpistas) até mesmo as pirações mais filosóficas. Desagrada porque insiste no caráter provocador e questionador da arte, nesse caso da sétima arte. Desagrada porque não se furta a se posicionar politicamente num contexto anticrítica dizendo: “não ousem utilizar essa obra para fomentar discursos de ódio, teorias da conspiração, e outras aberrações”.

Gostaria de ressaltar que a dada altura do filme o novo “dono” da nova matrix aciona seus “bots” para atacar Neo, Trinity e os demais integrantes da resistência. Os bots se lançam (literalmente) contra eles. A cena é impressionante: corpos atirados como mísseis contra os protagonistas. São partes de uma massa amorfa e acéfala empenhada numa sanha assassina de destruir os alvos eleitos pelo sistema da nova matrix para serem deletados.

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Elon Musk diz: “Tome a pílula vermelha”. Ivanka Trump compartilha dizendo: “Tomei!”. Lilly Wachowski diz para os dois: “Fodam-se os dois”. Fonte: Twitter.

Os bots representam pessoas completamente dominadas pelo mundo virtual e seus smartgadgets. Ou melhor, foram pessoas, uma vez que o processo de desumanização está completo ali. São como os zumbis do universo de Matrix. Matam e perseguem e não descansam enquanto há vida nos alvos. Seus corpos desalmados, descerebrados e absolutamente desprovidos de qualquer traço de vontade própria, remorso ou vergonha, parecem controlados de fora, por alguma inteligência artificial que já se fundiu a eles (elas).

Eu queria crer que essa cena é apenas parte de uma sátira que alimenta a esperança de que, pelo conteúdo caricato da sua proposta, possamos ainda mudar o curso de nossa trajetória. Bom, talvez eles (lá nos istêitis) tenham esse tipo de (fat)chance. Talvez, ainda tenham tempo de não serem todos reduzidos a bots vis, violentos e irracionais (será?). Mas a nossa matrix bruzundanga não é como a da ficção hollywoodiana e anti-hollywoodiana, ou quase. Aqui é sempre tarde demais. De novo e de novo… Um loop, como se fosse uma mistura de Matrix com Feitiço do Tempo, talvez? Sempre tarde demais para quem está no chão, no fundo do poço, no corre, na favela, na manifestação, na luta contra tudo e todos, nadando contra a maré só por existir. Aqui os bots já vem programados e pegam quem eles querem, como querem, e quando querem. Nada acontece com os bots que se multiplicam aos milhões. Eles também não são controlados de fora, claro. Tem consciência do que fazem e são aplaudidos por seus pares, pelo Estado, pelas forças policiais e braços armados tanto do Estado quanto da contravenção (partners in crime, como bem sabemos). Nada disso é novidade, claro. Mas vou lhes contar… Está difícil de existir nesse momento.

André de Lemos Freixo

Doutor em História (PPGHIS/UFRJ, 2012), Mestre (PPGHIS/UFRJ, 2008) e Bacharel com Licenciatura (UFRJ, 2006) em História. É Professor Adjunto no Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Tem como áreas de interesse: História da Historiografia Brasileira, História do Brasil Republicano, História Pública, Teoria e Filosofia da História. Foi coordenador do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP) no biênio 2014-2016.

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