Identidades Negociadas: um debate sobre imigração e nação

12 de novembro de 2013

As identidades nacionais são um fenômeno relativamente recente na história da humanidade, mas cuja força tem sido evidente em diferentes aspectos da vida social. O Café História entrevistou com Jeffrey Lesser, professor da Emory University, nos Estados Unidos, especialista no tema. 

Professor da Emory University, em Atlanta, Estados Unidos, Jeffrey Lesser vem se dedicando nos últimos anos ao estudo de questões ligadas a formação e a representação de comunidades estrangeiras no Brasil, sobretudo de judeus e japoneses, com o foco na formação das identidades nacionais.

Em entrevista exclusiva ao Café História, o historiador explicou como o nosso olhar para as políticas imigratórias da “Era Vargas”, principalmente durante do Estado Novo, deve levar em conta uma série de variáveis sociais e políticas, para além daquilo que consta na documentação oficial do período, tais como os conceitos de negociação, etnicidade, comunidade e, principalmente, identidade.

Lesser também conta como nasceu o seu interesse pela história do Brasil, analisou a mudança no status dos estudos brasileiros nos Estados Unidos em anos recentes e falou sobre os desafios conceituais a que todos os historiadores devem estar atentos no decorrer de suas pesquisas.

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Jeffrey Lesser em lançamento de livro em São Paulo. Fonte: UNESP

Bruno Leal: O senhor já realizou diversos estudos sobre aspectos da História do Brasil, quase sempre tendo imigrantes como foco. E hoje é considerado por muitos como um dos mais importantes “brasilianistas” – termo que nós por aqui no país corriqueiramente utilizamos para designar estrangeiros que pesquisam e ensinam História do Brasil. Professor, como surgiu esse seu interesse pelo Brasil e sua História?

Jeffrey Lesser: Olha, pelo menos a minha sogra me acha um grande brasilianista (risos). Eu comecei a estudar Brasil por motivos muito pouco intelectuais. Quando eu era aluno de graduação, em uma universidade bastante liberal dos Estados Unidos, eu estudei três coisas bem diferentes: política da América Latina, história judaica e aquilo que as pessoas chamariam hoje de história da diáspora africana.

Dentro deste contexto da História da Diáspora Africana, eu conheci um brasilianista chamado Anani Dzidzienyo, de Gana, uma figura extremamente carismática. Ele não é uma pessoa famosa no sentido de publicar muito. Mas ele é uma pessoa famosa neste sentido: você lê livros escritos por brasilianistas e o nome dele aparece várias vezes. É incrível quantas pessoas, quantos brasilianistas, durante 30 anos, foram inspirados por ele. Então, dentro deste contexto, ele foi a primeira pessoa a sugerir que seria possível estudar Brasil e estudos judaicos ao mesmo tempo. Pois, pelo menos como é feito nos Estados Unidos, estudos judaicos não tem nada a ver com América Latina. Estudos judaicos aqui quer dizer Estados Unidos, Holocausto, Israel, essas coisas.

Dzidzienyo foi o primeiro a falar sobre isso. Quando eu era jovem, ele me ajudou a conseguir uma bolsa para passar seis meses em Israel, onde eu trabalhei fazendo história oral em kibutzim de imigrantes da América Latina. Eu fui para um kibutz mexicano, para um kibutz chileno, argentino, mas não foi muito interessante. Já quando eu cheguei a um kibutz brasileiro…quer dizer…eu era muito jovem e aconteceram as coisas que acontecem com os jovens! (risos).

Eu me diverti muito. E fiquei muito amigo de um casal de gaúchos. Eles voltaram para Porto Alegre e me chamaram para morar com eles. Entrei no doutorado e alguns meses depois eu estava morando em Porto Alegre com eles. Então, foi assim. Não foi uma coisa “eu estava contra a ditadura e tal”. Foi uma coisa muito natural e pessoal. E de uma certa forma, eu acho que essa naturalidade aparece muito nas minhas pesquisas.

Eu não penso muito nos temas. Eles aparecem. Eu digo: “legal, vamos tentar isso, vamos fazer isso”. Esse é o meu jeito. Depois da bolsa de Israel, o professor Dzidzienyo também me ajudou a entrar no doutorado, onde eu fui orientado por um brasilianista já falecido, mas muito importante, chamado Warren Dean. Eu fui um dos últimos alunos do Warren Dean. Ele foi um orientador muito interessante. Ele falava assim: “a responsabilidade de um pesquisador é fazer uma pesquisa que vai aparecer na primeira nota de rodapé de um livro de um outro pesquisador, mesmo que aquela nota de rodapé vá falar que a pesquisa do Jeffrey é uma merda. Tudo bem. Sua responsabilidade é provocar pessoas que fazem pesquisas”. A pior coisa é sempre ser aquela pessoa que está na nota vinte, onde há uma lista de 40 livros. Isso não é nada.

Dean foi muito importante pra mim. Ele me falou certa vez: “Jeffrey, precisamos de mais pesquisas sobre questões étnicas no Brasil. É uma coisa diferente. Vamos fazer isso”. E naquela época tínhamos pesquisadores com perfis muito diferentes, que falavam coisas do tipo: “eu acho que você deveria falar sobre X” ou “esses são os tópicos legítimos, pode escolher deles”. O Warren Dean não foi exatamente assim. É impressionante. Ele aceitou poucos alunos, um a cada quatro anos. Mas cada um de nós, orientados por ele, criamos de um jeito diferente. Todos fomos orientados por ele, mas éramos diferentes um dos outros e, inclusive, do próprio Warren Dean.

Bruno Leal: Quantos anos o senhor tinha quando morou em Porto Alegre?

Jeffrey Lesser: Mais ou menos 21. Eu era muito jovenzinho. Eu passei, não sei, talvez uns quatro meses em Porto Alegre. E depois eu comecei a passar muito tempo no Brasil. A primeira parte da minha tese foi sobre colônias agrícolas no Rio Grande do Sul. Eu estava muito inspirado. Eu volto sempre ao Rio Grande do Sul. Eu estava em Passo Fundo há três semanas atrás. Tenho muita paixão pelo Sul. Foi uma experiência muito legal, gosto de trabalhar com pessoas de lá. Essa parte da minha vida, então, continua.

Bruno Leal: Desde o final dos anos 1980, o debate sobre a imigração judaica para o Brasil tem gerado uma série de debates historiográficos importantes. Porém, em geral, a pergunta sempre acaba sendo a mesma: o governo Vargas teve ou não teve uma política imigratória antissemita? Este tema aparece em um livro lançado pelo senhor, em 1995, chamado “O Brasil e a Questão Judaica” (Ed. Imago). Nele, o senhor reconhece o antissemitismo presente em várias esferas do governo, mas explica que graças a uma conjuntura das relações do Brasil com as potências internacionais aliadas, além de interesses econômicos internos do próprio Brasil, uma antiga imagem estereotipada dos judeus foi reformulada de forma a permitir que uma significativa leva desses imigrantes entrassem no país. Que reformulação da imagem do judeu foi essa? Quem operou esta reformulação? Em que fontes o senhor se apoia para defender esta tese?

Jeffrey Lesser: Antes de responder especificamente suas perguntas, eu preciso dizer uma coisa. Eu acho que parte deste debate é um debate sobre identidades. Há algumas pessoas – não eu – que trabalham com a ideia de uma identidade que podemos chamar de “essencialista”. Isso é, se alguém fala uma coisa racista, preconceituosa, antissemita, então, a pessoa é racista, preconceituosa, antissemita. Eu, em todos os meus trabalhos, tenho uma ideia diferente de identidade. Eu não sou “essencialista”. Em minhas pesquisas, os meus sujeitos sempre possuem muitas identidades. São filhos em um momento, pais em outro. São estudantes em um momento, trabalhadores em outro. Eu acho isso super normal, super humano. Então, o fato de alguém falar uma coisa não quer dizer que ele é essa coisa. Quando alguém fala alguma coisa, eu preciso pesquisar se ele é alguma coisa. Isso é pesquisa. Não há uma resposta desde o começo.

Eu também estou aberto a ideia de que as pessoas usam a linguagem para vários fins. O historiador deve notar que embora as pessoas usem a linguagem X em um momento, elas não vão usar, necessariamente, essa linguagem X para todos os momentos. Para isso, é preciso fazer pesquisa. Isso é parte do debate. Perguntas como “o governo Vargas é antissemita ou não” é uma pergunta que não funciona. O que quer dizer o “Governo Vargas”? Se eu definir todo o Governo Vargas como antissemita, quer dizer que até os judeus que nele trabalharam eram antissemitas? Qualquer pessoa, em qualquer setor do governo também foi? Esta não é uma pergunta sofisticada para mim.

A pergunta que eu fiz em meu trabalho foi diferente. Eu nunca trabalhei com a questão “o governo foi antissemita ou não foi antissemita”. Não temos como responder isso, pelo menos como historiadores. Em uma conversa de bar, pessoas batendo papo, é outra coisa. Mas estou falando em termos profissionais. A minha pergunta é: porque o Governo Vargas, ou melhor, os líderes do Governo Vargas, criaram uma ordem secreta proibindo a entrada de semitas no Brasil? Porque não usaram a palavra judeus e porque, mesmo assim, em alguns anos seguintes, mais judeus acabaram entrando legalmente no país do que em anos anteriores? Esta é uma pergunta muito diferente.

Eu acho que não há disputa sobre os dois fatos. Ou seja, todo mundo está de acordo que o governo promulgou ou criou uma ordem secreta dizendo que não poderiam aqui entrar semitas. E todos estão de acordo também com o número de pessoas que entraram. Não tem muito debate, pois são fatos no sentido tradicional de um fato. Então, minha pergunta é porque aconteceu?

A primeira coisa que eu penso, o meu primeiro pensamento, bastante tradicional, era: “tudo bem, esses judeus entraram, legalmente ou ilegalmente, e isso pode ter sido comprado e essas coisas…” . Porém, há pouca provas disso. Você pode achar: “O Brasil é assim”. Mas isso não é uma prova em termos profissionais. Na pesquisa, eu comecei a achar algumas coisas. Por exemplo: eu pude ver claramente como instituições de refugiados mundiais estavam negociando abertamente com pessoas importantes do governo Vargas, tal como Osvaldo Aranha e Getúlio Vargas.

Eu não estou falando de pessoas de um nível baixo. É possível ver claramente uma negociação, uma reposta e uma emissão de vistos. Isso não quer dizer que as pessoas não acreditaram em certas coisas antissemitas. Tudo bem. Mas isso quer dizer que o antissemitismo deles não era tão completo a ponto de matar judeus. Tivemos exemplos modernos onde existia uma ideologia contra um determinado grupo, como no Camboja, em Darfur, ou o próprio Holocausto, onde essa negociação não podia acontecer. Então, o Brasil claramente não estava dentro deste contexto.

A discussão, de uma certa forma, é sobre linguagem, porque seria impossível dizer que os líderes do Brasil daquela época não tiveram ideias preconceituosas. Pelo menos não claramente. De verdade, as ideais do Vargas, do Francisco Campos e do Oliveira Viana eram mais ou menos comuns. O Brasil não era tão especial neste sentido. Vargas acreditou exatamente nas mesmas coisas que o Franklin Roosevelt, presidente dos Estados Unidos, e exatamente a mesma coisa que o Mackenzie (William Lyon Mackenzie), primeiro-ministro do Canadá. Eram coisas comuns.

Então, eu acho que isso faz parte do debate. Para mim, o interessante no caso do Brasil foi o número de judeus que entraram, e não as ideias discursivas do dirigentes, pois estas ideias discursivas eram iguais em quase todos os países. A grande diferença é que no Brasil entraram muitas pessoas. Essa é a discussão.

Bruno Leal: Em seu livro, o senhor fala muito sobre como um certo de estereótipo negativo do judeu foi positivado durante a guerra. Quem operou essa transformação?

Jeffrey Lesser: Isso foi feito por dirigentes de grupos de refugiados, por líderes da comunidade judaica do Brasil e por um certo grupo de intelectuais antivarguistas, que eu não quero chamar de liberais, mas que naquele contexto eram liberais. E isso ocorreu também em um nível popular dos refugiados. Temos, por exemplo, muitas provas de um “joão-ninguém” que vai para a polícia federal e diz, “olha, meu irmão precisa de um visto para vir da Alemanha”. E escuta: “Judeus não podem receber vistos”. E aí, esse “joão-ninguém” fala de volta: “Mas esse judeu é engenheiro, ele vai fazer isso, isso e isso”.

Temos muitos exemplos desse tipo de coisa. Eu lembro um exemplo de um grupo do [Francesco Antonio Maria] Matarazzo indo lá abertamente defendendo “que os judeus são bons com dinheiro, no setor contabilidade” e tal e tal. De repente, ele tem os seus vistos. Isso não é uma coisa específica do Governo Vargas. Chama muita minha atenção, por exemplo, que o Delfim Neto, durante a ditadura militar, tenha escolhido para a sua equipe brasileiros de ascendência japonesa porque eles seriam [supostamente] bons com dinheiro internacional por serem japoneses. Isso é estereotipado, preconceituoso, não tem dúvida. Porém, para mim, há uma diferença entre o preconceito e o racismo que manda alguém ser assassinado em um campo de concentração e outro que manda trabalhar no governo. Para mim, há não só uma distinção moral, mas também uma distinção histórica. Não podemos confundir morte com vida. Para mim é uma coisa extremamente importante não fazer essa confusão. Há algo sobre essa mudança de imagens que eu quero deixar claro: não quero dizer que as antigas imagens sumiram. Meu argumento é que essas imagens são como identidades. Uma pessoa pode achar pela manhã que, “puxa, esses judeus e esses japoneses são bons com dinheiro, que mal para o país”, e, depois, pela tarde, o contrário. É difícil mostrar o que a pessoa pensa e isso é algo difícil para o historiador. Eu tenho sorte porque minha esposa é psicóloga. Ela sempre me diz que eu faço história e não psicologia. Então, para mim, o fato de uma pessoa escrever uma coisa, isso é apenas o começo da pesquisa e não o seu fim. Há um caso muito muito interessante sobre [Albert] Einstein. Acharam uma carta que Einstein escreveu para alguém, não me lembro quem, pedindo um visto para um conhecido. Recebeu como resposta um “não”. E a análise que se fez disso foi: “olha como o Brasil é antissemita. Mesmo o famoso Einstein não podia derrotar o antissemitismo”. Primeiro eu pensei, “puxa, é interessante pensar que alguém acha que pode mudar a política de um país”. Depois, pensei que a análise não teve cuidado com a carta do Einstein. Além do visto, no começo da carta, ele começava, “você me ajudou tantas vezes, eu estou pedindo mais um favor”. Quando eu vi a carta original, negando o visto, eu me perguntei: “porque esse Einstein está escrevendo um carta dizendo você me ajudou tantas vezes, eu estou pedindo mais um favor”. O que ele era falando? Usando essa última carta como começo da pesquisa, descobri quantas vezes e quantas pessoas entraram no Brasil depois dos pedidos do Einstein. Então, como podemos definir a política? Pegando as primeiras cartas, ele parece um super-homem; pegando somente a última, ele parece um ninguém. A pesquisa precisa ser mais complexa. Pelo menos, a minha.

Bruno Leal: Professor, Vários pesquisadores que se debruçam sobre o tema da imigração judaica, sublinham que apesar de todas as circulares secretas, que restringiam a vinda de judeus para o Brasil, eles continuavam chegando. Vários historiadores, inclusive o senhor, explicam que, entre outras coisas, isso acontecia porque muitas dessas circulares, além de memorandos, eram marcadas por textos ambíguos ou contraditórios, com brechas ou que deixavam margem à interpretação de cônsules e embaixadores. Mas essas brechas, essas ambigüidades, eram intencionais ou havia certa incompetência administrativa ou mesmo displicência na elaboração desses documentos?

Jeffrey Lesser: É uma boa pergunta. Uma parte foi claramente intencional. Ou seja, quando Oswaldo Aranha manda um telegrama dizendo “dê vistos”, não importa o que o embaixador está fazendo. Os funcionários da embaixada estão pegando um carimbo com o nome do embaixador e usando. Isso não é incompetência. É claramente intencional. Eu não sei como interpretar de uma maneira diferente. Nós não temos muitos exemplos do que seriam casos de incompetência. Talvez eles existam. Sabe uma coisa? Eu acho que precisamos pesquisar melhor essa ideia do Brasil incompetente. Quando eu começo a estudar um fenômeno histórico eu não parto do princípio de que “o Brasil é incompetente” ou de que “o brasileiro é incompetente”. Isso pode até ser o resultado, eu chegar ao final da pesquisa e concluir que o cara foi incompetente mesmo. Mas nas minhas pesquisas sobre etnicidade e imigração eu não acho muita evidência de incompetência. Eu encontro muitas provas, sim, de competência. Eu acho que essa ideia de incompetência está ligada a ideia de antissemitismo, pois uma das únicas maneiras de explicar a entrada de judeus no Brasil durante a Era Vargas seria esse discurso de incompetência. Mas se você vai começar com isso de que “o Brasil é quase uma Alemanha nazista”, logo vai descobrir que a coisa é bem diferente. Mas para mim, não há incompetência. Pode-se até achar uma coisa ou outra. Mas eu volto para a pesquisa: eu não acho. Isso é pesquisa. Isto é, se alguém aparece dizendo que possui uma metodologia que prova incompetência e que isso pode mostrar, a partir de evidências, que houve incompetência, eu posso mudar minhas ideias. Mas eu nunca vi alguém falar de uma metodologia histórica que possa analisar documentos e apontar que tal judeu entrou porque houve incompetência. Ninguém tem, ninguém usa. Eu não digo que não é possível. Eu estou completamente aberto a possibilidade (risos). Meus alunos criam metodologias fantásticas e tem resultados brilhantes. Mas até agora, não há nada.

Bruno Leal: A professora Maria Luiza Tucci Carneiro, desde os anos 1980, vem se notabilizando por publicar muitos artigos e muitos livros sobre o tema da imigração judaica para o Brasil e sobre o antissemitismo em nosso país. Nesses trabalhos, sobressai uma imagem bastante negativa do Brasil no que se refere a imigração judaica. O trabalho do senhor às vezes é colocado em perspectiva antagônica ao dos trabalhos da professora Maria Luiza Tucci Carneiro. O senhor concorda com esse antagonismo? Em que medida o seu trabalho se diferencia ou se afasta daquele desenvolvido pela professora da USP?

Jeffrey Lesser: Uma das grandes diferenças de estar baseado nos Estados Unidos é como o nosso trabalho de historiador é conhecido. Uma das coisas que eu gosto no Brasil – e gosto muito – é que o historiador possui uma presença pública que não existe nos Estados Unidos, em geral. Então, eu acho que as preocupações das pessoas em contextos profissionais diferentes são também bastante diferentes. Há claramente perspectivas diferentes entre o trabalho da professora Tucci e o meu trabalho: diferenças metodológicas, de pesquisa, em relação aos lugares onde pesquisamos, o que consideramos nessas pesquisas, os documentos que consideramos importantes ou não. Nós trabalhamos com uma historiografia bastante diferente. E tudo isso leva a resultado bastante diferentes. Quando eu penso sobre o meu próprio trabalho, quando saem meus livros, eu fico muito preocupado em não apresentar as pessoas como vítimas, em não começar com a ideia de que um grupo é vitimizado. Talvez eu esteja errado. Os imigrantes, os seus filhos, seus netos, são os heróis em meus trabalho. Em um livro, por exemplo, onde eu escrevi sobre pessoas presas durante a ditadura – pessoas torturadas – eu pensei nessas pessoas como heróis. Isso não é uma coisa de certo ou errado. É uma perspectiva. Isso é uma coisa. Outra coisa é: a questão no Brasil sobre imigração e grupos étnicos, para mim, não é sobre judeus, mas uma questão de identidade nacional. De uma certa forma, quando eu penso sobre o meu trabalho, eu penso o que é ser brasileiro ou quais as varias maneiras de ser brasileiro. Essa perspectiva é muito diferente. Se você vê as circulares secretas e vê apenas judeus, você vai ter resultados diferentes. Mas houve circulares sobre hindus e assírios, católicos de uma certa forma. Então, é curioso para mim, e um prazer, que ainda no Brasil as pessoas estejam pensando sobre o meu livro dentro da questão judaica. Eu hoje não estou mais pensando a questão desta maneira, mas de uma forma diferente.

Bruno Leal: Talvez esses seus trabalhos mas antigos acabem voltando ao debate por conta de alguns contextos sociais ou mesmo por conta da publicação de novos trabalhos na área. O professor Fábio Koifman, por exemplo, publicou recentemente a sua tese de doutorado, “Imigrante Ideal”, que fala sobre a formulação da política imigratória brasileira nos anos finais do Estado Novo. São coisas que fazem com que estes seus trabalhos acabem voltando à tona, não?

Jeffrey Lesser: Sim, talvez. Há pressão sobre todos os historiadores. Mas os públicos são diferentes. Nos Estados Unidos, quando eu escrevo um livro, eu escrevo para um público de dentro das universidades. Mas eu moro em um país onde há, sei lá, quatro mil universidades. Eu posso vender dois, três, quatro mil livros sem nenhuma pessoa comprar o livro em uma livraria. O nosso mercado acadêmico é enorme. Então, nós estamos pensando muito nesse mercado. No Brasil, o mercado não é estritamente acadêmico. Eu vendo muitos livros no Brasil. E fico muito feliz com isso. Mas minha impressão é que a maioria dos livros não são comprados dentro do contexto de sala de aula. Saem de outras maneiras. Às vezes eu faço palestras e 50 pessoas chegam para pedir autógrafo e nenhum é aluno. São pessoas inteligentes, sofisticadas e tal, mas não acadêmicos. Então, eu acho que a pressão é um pouquinho diferente neste sentido. Eu estou torcendo muito para que nos próximos anos, com a criação de grupos de estudos, como o Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos da UFRJ (NIEJ), jovens pesquisadores comecem a fazer pesquisas que vão começar com perguntas de verdade. O que seria uma pergunta de verdade? Por exemplo: como podemos entender discursos antissemitas no Brasil? Ou seja, entender a Era Vargas não é só entender a documentação oficial produzida pelo governo federal, dentro do Arquivo Nacional. Há outras pesquisas que podem ser feitas. Eu sempre falo para as pessoas: se você ler a Constituição de 1934, vai achar que houve cotas imigratórias no Brasil. E se você examinar a Assembléia Constituinte, vai descobrir que ela mesma escreveu essa Constituição. Mas se você vai para o Japão e olhar a documentação entre o Ministro das Relações Exteriores e o embaixador brasileiro, vai achar que não houve cotas para a imigração no Brasil. Ou seja, a pesquisa é muito importante. Não pode se confiar nas palavras dos documentos oficiais produzidos pelos “chefes”.

Bruno Leal: Além dos judeus e dos japoneses, o Brasil atraiu várias outras imigrações, como a dos árabes, que o senhor também pesquisa. Esse tipo de estudo de certa forma quebra, ou melhor, relativiza, a imagem bastante difundida no senso comum de que o Brasil é uma nação formada apenas partir de três grandes grupos: negros, portugueses e indígenas, não?

Jeffrey Lesser: Sim, exato. Esse triângulo é claramente uma ideia nacional que não funciona bem. E aí, de novo: para se ter uma ideia mais complexa do Brasil não se pode pesquisar somente no Arquivo Nacional ou no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro ou no Arquivo Público do Estado de São Paulo. É preciso fazer pesquisas diferentes. Eu não sou um grande intelectual. Eu sou uma cara que gosta de conhecer pessoas, falar com pessoas. Eu vou para qualquer lugar e acabo conhecendo tesouros. Eu acho cada vez mais novas imigrações. Veja, isso é uma coisa interessante. Em Passo Fundo, no centro da cidade, é impressionante a quantidade de novos imigrantes da África que trabalham como camelôs. Ou seja, alguém precisa lembrar que há imigrantes africanos, em pleno 2013, no Rio Grande do Sul. Precisamos perguntar o que é isso. Não se pode começar com “O Rio Grande do Sul é branco, aqui só há italianos e alemães”. Não, claramente não é verdade. Precisamos criar pesquisas, né? Minha impressão é que a sua geração é muito menos afetada por essa imagem por esse “mito das três raças”. Eu já vejo isso quando dou aulas no Brasil. É muito impressionante como a geração atual de alunos de pós-graduação e de graduação pensa diferente de seus professores. Não foi sempre assim. Há 15, 20 anos, alunos e professores tinham a mesma geração em termos de ideias sobre identidade e formação do Brasil. Hoje, isso me parece muito diferente. Mas isso é um achar (risos). Eu não faço pesquisas sobre isso. Eu acho baseado nas minhas palestras no Brasil. Então, não é uma coisa séria em termos de pesquisas.

Bruno Leal: Em seus trabalhos, o senhor utiliza muito o conceito de “negociação” para se referir a relação entre comunidades de imigrantes e uma “realidade local”. O que o senhor entende por “negociação”? Além disso, nós falamos muito de “comunidade judaica”, “comunidade portuguesa”, “comunidade japonesa”, etc. Mas nós sabemos que essa palavra “comunidade” é sempre um esforço de imaginação. Dentro destas coletividades há uma série de tensões e de projetos de comunidade que tentam se sobrepor. Então, como nós, historiadores, podemos conciliar e utilizar os conceitos de comunidade e negociação?

Jeffrey Lesser: Primeiro, negociação. Eu, hoje, uso essa palavra de uma mais sofisticada do que costumava usar. Todos nós precisamos melhorar. E eu estou tentando melhorar nos últimos anos. Para mim, negociação quer dizer o seguinte: o que você chamou de “local” é sempre um fluxo, sempre super-situacional. O “local” é composto de muitos tipos de brasileiros. Filhos de imigrantes, netos de imigrantes, bisnetos de imigrantes, bis-bisnetos de escravos, tudo isso misturado no “local”.

Como historiador, o que eu posso ver é o momento. Então, negociação é algo baseado numa ideia de identidade, onde a pessoa tem certas escolhas, sendo que essas escolhas podem ser conscientes ou subconscientes. Eu gosto de pensar sobre a negociação assim: você está levando em seu bolso moedas de um centavo, de 10 centavos, de 25 centavos, de 50 centavos, de um real, notas de dois reais, notas de cinco reais, e alguém fala: “me dá dez reais”. E você pode decidir: “eu vou te dar uma nota de dez” ou “eu vou te dar duas notas de cinco” ou “eu vou te dar dez moedas de um real”. Cada escolha é diferente. Cada escolha é uma negociação. Eu uso esse exemplo de moeda, porque no Brasil, onde nem sempre se tem troco, dinheiro é uma coisa negociada. Por exemplo: você tem uma nota de dez, mas está preocupado porque hoje a noite vai precisar de dois reais e então tenta usar aquela nota de dez para receber o troco (risos).

Em minhas pesquisas, os meus sujeitos trabalham com identidade exatamente assim. Eu posso observá-los, historicamente ou antropologicamente, fazendo isso. Pensando como eu vou encontrar você, Bruno, eu posso dizer que meu nome é Yosef, mas que você pode me chamar de Jeffrey. Ou ainda, que pode me chamar de professor”. Você pode usar todas essas palavras. Isso é negociação. E essas negociações estão acontecendo, ao meu ver, com todas as pessoas desde sempre. Nós estamos sempre negociando. Nós estamos negociando agora. Então, eu não trabalho com categorias fixas de “imigrante” ou de “brasileiro”, pois elas não são claras. Por exemplo: um dia eu estava pesquisando o arquivo do DOPS de São Paulo a respeito da luta armada e descobri que eles dividam o arquivo pelo nome da pessoas. De um lado, nomes estrangeiros. De outro, nomes brasileiro. A lista de imigrantes estava cheio de brasileiros. A lista de brasileiros estava cheia de imigrantes. Ou seja, não é só o indivíduo que está negociando. Aqui é a polícia que está negociando, criando essas ideias.

Cada vez que um brasileiro chama outro brasileiro de “alemão”, “japa”, é uma negociação. Agora, já sobre “comunidade” é um pouquinho diferente. Essa palavra comunidade é um tipo de engano, no sentido que nossos sujeitos usam a palavra comunidade. Não é uma palavra criada por intelectuais. Pierre Bourdieu não criou a palavra comunidade para falar de nossos sujeitos. Os nossos sujeitos a usam de uma maneira muito negociada. Por exemplo: quando eles falam de comunidade, eles querem dizer que se sentem parte de uma coletividade. Podem ser ou não. Mas o sujeito acha. Às vezes, comunidade quer dizer aquelas pessoas que eles decidiram que são líderes. Ou, comunidade é um tipo de xingamento. “A comunidade”; “eu não quero nada com a comunidade”; “a comunidade é problema”; “ a comunidade não representa a gente”. E dentro dessas grandes comunidades, há essas sub-comunidades. Às vezes essas sub-comunidades são denominadas “sefaradim” e “asquenazim”, “Yehkis (judeus de Europa Central)” e “ost-juden” (judeus de Europa oriental, “okinawanos”e “naichi” (japoneses das ilhas principais), “sírio” e “libanês”. Às vezes são comunidades bem escondidas. Pode não ser uma comunidade super pública, mas se você fala com várias pessoas, elas se acham parte de uma grande comunidade. O nosso problema é como vamos usar em nossas pesquisas uma palavra que ninguém entende, mas que todos utilizam para dizer qualquer coisa. Em meu caso, eu acho que eu melhorei muito. Eu acho que no livro sobre a questão judaica eu usei de uma maneira extremamente velho estilo, “a comunidade judaica”. Em meu novo livro, que saiu há alguns meses aqui, e que estamos negociando para sair no Brasil, logo nas primeiras páginas eu faço um ataque contra essas ideias de comunidade. Para mim, é importante respeitar a linguagem dos meus sujeitos. O que eu tento fazer, por exemplo, na “Diáspora Descontente”, meu último livro publicado no Brasil, é deixar que os sujeitos usem palavras como “comunidade”. Os “judeus”, os “japoneses”, são todas palavras falsas de certa forma. O sujeito as usa e eu como historiador tento explicar dentro do texto o que aquele sujeito quis dizer com aquilo naquele momento. E às vezes é muito complicado, pois o sujeito usa a mesma palavra cinco vezes em cinco minutos e em cada vez ele quis dizer algo completamente diferente. Mas isso não é o problema. Você faz isso, eu faço isso. Isso é ser humano. Para mim, é riqueza. Meu trabalho é explicar, analisar a experiência de pessoas. Eu sou muito a favor da história da história. A história de pessoas são fundamentais. Mas são coisas complicadas, claro. Às vezes eu preciso até perguntar ao sujeito. Pois ele diz uma coisa e eu preciso dizer: “olha, quando você falou que odeia a comunidade japonesa e você é um japonês, o que você quis dizer? O que você odeia?” E eles vão explicando o que quiseram dizer. Mas isso também é uma coisa que a nova geração precisa trabalhar melhor. Pois, todos os trabalhos que estamos discutindo hoje, incluindo o meu, tudo isso é claramente um problema que podemos reconhecer, mas vinte anos atrás nem pensávamos nessas coisas. Então, precisamos pensar para frente. E provavelmente daqui a 40 anos, teremos uma geração de jovens que vão dizer, “olha, esses loucos como o professor Bruno, tão preocupado com a palavra comunidade…ele tava louco mesmo, né? Comunidade é comunidade e acabou”. Então, isso acontece. Eu sou a favor. Não sou contra (risos).

Bruno Leal: É verdade. Isso pode acontecer mesmo. Professor, por falar em projeções e análises mais amplas, que avaliação o senhor poderia fazer, em termos gerais, dos chamados Estudos Judaicos hoje no Brasil.

Jeffrey Lesser: Essa é uma pergunta injusta! (risos). Eu vou dizer o seguinte. Eu não estou muito confortável hoje em dia com o conceito de estudos judaicos, ou estudos étnicos. Eu estou cada vez mais convencido que nós precisamos comparar grupos dentro de países. Se nós queremos entender muito bem os brasileiros de ascendência judaica, precisamos compará-los com brasileiros de outra ascendência. Mas é muito interessante que os estudos judaicos no Brasil estejam agora se tornando um espaço intelectual importante, pois mostra muito bem que aquele triângulo do negro, índio e português está mudando. Eu estou feliz neste sentido. Porém, eu estou muito ansioso para que uma nova geração que faria pesquisas sobre grupos étnicos e sobre identidades no Brasil de uma maneira não nacionalista. Então, neste sentido, eu estou muito a favor dos jovens pesquisadores. Eu aprendo muito com eles.

Bruno Leal: Professor, nos últimos cinco anos muito tem se falado de uma ascensão econômica, cultural e principalmente política do Brasil no cenário internacional. Como o senhor acompanhou essa grande exposição do Brasil em seus círculos no exterior? Houve, por exemplo, um interesse maior por suas pesquisas ou pelo estudo da História do Brasil?

Jeffrey Lesser: Há várias coisas. Claramente, em um nível de graduação, há mais interesse em assistir uma matéria sobre Brasil e talvez escolher português ao invés de uma língua como espanhol ou italiano. Disso, não há dúvidas. Porém, esse interesse pode cair também. É como você falou. Não é algo natural, mas em função de uma coisa. Em termos de doutorado, eu acho que talvez tenha agora um pouquinho mais de procura para se fazer trabalhos sobre Brasil. Mas onde podemos mesmo ver a mudança é no número de empregos. Quando eu entrei no mercado, nas entrevistas de emprego, as pessoas diziam que eu era um cara legal, que fazia uma pesquisa e tal, mas diziam que tinham um problema: o cargo era para História América Latina e eu estudava Brasil. Um dia, por exemplo, o telefone tocou e a pessoa estava falando comigo espanhol. E achou que eu não falava espanhol por ser brasilianista. Mas eu falei pra ela, em espanhol, “olha, espero que você esteja ligando para os mexicanistas e falando português!”. Hoje, é completamente diferente. Se você vai ao mercado de trabalho, a reclamação é que todos querem um brasilianista. Quando está escrito “História da América Latina”, o Brasil é o mais legal (risos). Então, isso é uma diferença.

A outra diferença está ligada ao “Ciências sem Fronteiras”. Nossos administradores, nas universidades, estão muito interessados no dinheiro brasileiro. E quem trabalha com Brasil, como eu, é interessante de ver. Nossos reitores estão ligando para a gente e dizendo: “olha, preciso que você me leve para o Brasil”. Duas semanas atrás, antes de ir para um congresso em Passo Fundo, passei cinco dias com o nosso Vice-Reitor no CAPES, no CNPq, na FAPESP, fazendo negociações no sentido financeiro. Então, isso é uma diferença. O Brasil é parte da estratégia internacional de qualquer universidade de pesquisa nos Estados Unidos. Porém, isso pode mudar rapidamente. Há 20 anos, era Japão. Agora, ninguém pensa mais sobre o Japão. Há o Brasil, a Índia, a China. Daqui a dez anos, pode ser Cuba, Quênia e Finlândia. Nós precisamos ser sérios em nossas pesquisas. E aí não importa se o Brasil é um tema quente ou não é quente. Isso é uma coisa que não importa. Eu percebo a exposição. Eu apareço mais publicamente, no “New York Times”, no rádio, na televisão, porque há mais histórias sobre o Brasil. Mas quando não tiver tantas histórias sobre Brasil, eu vou sumir. Mas tudo bem. Eu não me preocupo tanto. Eu entendo muito bem. Eu não vou ficar mudando para continuar na esfera pública (risos).

Bruno Leal: Professor, ficamos por aqui. Agradeço demais a sua disponibilidade para falar com o Café História. Muito obrigado. Nossa conversa foi muito boa.

Jeffrey Lesser: Bruno, muito obrigado! Eu agradeço o convite. Um abraço!


Jeffrey Lesser possui graduação e mestrado pela Brown University e doutorado pela New York University. Já ministrou aulas e palestras em universidades brasileiras, com as quais mantém contato constante, e publicou diversos livros no Brasil, com destaque para “O Brasil e a Questão Judaica” (1995, Ed.Imago), “Uma Diáspora Descontente” (2008, Ed. Paz e Terra) e “A Negociação da Identidade Nacional” (2005, Ed.UNESP).

Ana Paula Tavares

Subeditora do Café História. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC/FGV) , bolsista CNPq. Possui graduação em Comunicação Social – habilitação jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2006). É formada em teatro pela Casa de Artes de Laranjeiras – CAL (2010). Estuda História Intelectual, Imprensa, Mediação Cultural na trajetória da jornalista Yvonne Jean.

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