Futebol para além da Copa do Mundo

Em entrevista, Bernardo Buarque de Hollanda faz uma reflexão contundente e original sobre os aspectos políticos, sociais e econômicos que gravitaram em torno da Copa do Mundo da FIFA 2014.
29 de julho de 2014
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Bernardo Buarque de Holanda é professor da Fundação Getúlio Vargas. Foto: acervo pessoal do entrevistado.

A Copa do Mundo do Brasil, você bem sabe, já acabou. Mas no Café História nós acabamos de entrar na prorrogação. Em entrevista exclusiva sobre a relação entre história, sociedade e futebol, o professor Bernardo Buarque de Hollanda, especialista em História Social do Futebol, pesquisador do CPDOC/FGV e coordenador do MBA em Bens Culturais na FGV-SP, faz uma reflexão contundente e original sobre os aspectos políticos, sociais e econômicos que gravitaram em torno da realização de um dos maiores eventos esportivos do planeta no Brasil em 2014, da ação dos Black Blocks ao fracasso da seleção dentro campo. Hollanda discute ainda torcidas organizadas (tema que estudou em sua tese de doutorado), violência no futebol e o futuro do esporte no Brasil.

Bernardo Buarque de Hollanda é bacharel (1996) e licenciado (1998) em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É mestre (2003) e doutor (2008) em História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É professor-adjunto da Escola de Ciências Sociais, da Fundação Getúlio Vargas, e pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil na mesma instituição (CPDOC/FGV). É pós-doutor pela Maison des sciences de l’homme (Paris-2009), com bolsa do Centre national de la recherche scientifique (CNRS). É editor da Revista Esporte & Sociedade e da coleção de livros Visão de Campo (7Letras). É coordenador do MBA em Bens Culturais na FGV-SP. Tem experiência nas áreas de História, Antropologia e Sociologia. Seus principais temas de pesquisa são: História Social do Futebol e torcidas organizadas; modernismo e vida literária no Brasil; cultura – crítica e interpretação; pensamento social e História Intelectual.

É um prazer recebê-lo no Café História, professor. Obrigado por aceitar nosso convite. Esse é um excelente momento para falarmos sobre futebol: acabamos de sediar – pela segunda vez – uma Copa do Mundo. Que avaliação geral você poderia fazer desse evento?

O prazer é todo meu. Fico feliz e honrado com o convite. De fato, essa segunda Copa do Mundo no Brasil nos traz pontos importantes à reflexão e que terão longevidade analítica para os pesquisadores. Podemos dizer que estivemos diante de, pelo menos, quatro surpresas com sentidos opostos e/ou distintos. A primeira surpresa havia sido a canalização das revoltas de Junho de 2013 para a Copa das Confederações, no decorrer daquele torneio. Os quatro jogos da Seleção (Brasília, Fortaleza, Minas e Rio) foram extremamente conturbados e massivos do lado de fora dos estádios. Isso levou ao questionamento e à apreensão geral do que poderia ser o ano seguinte, durante a Copa do Mundo, quando, além de um número muito maior de jogos e seleções, haveria a presença maciça de turistas. Nesse um ano de intervalo entre os dois eventos oficiais da FIFA, a dinâmica das manifestações mudou. Uma inflexão importante foi a morte do cinegrafista da Rede Bandeirantes, que colocou progressivamente a opinião pública e a sociedade, de modo geral, contra a radicalização do movimento, capitaneado e fustigado pela visibilidade dos Black Blocs. Ainda que já existisse a clivagem “maioria pacífica” versus “minoria violenta”, aquele incidente dramático arrefeceu o movimento em termos de popularidade, de legitimidade e de adesão.

Nesse entretempo, no entanto, durante o primeiro semestre de 2014, a indiferença da população ante a Copa continuou expressiva, sobretudo pelas notícias de superfaturamento e pelas denúncias com os gastos com o Mundial. A população ficou emparedada entre a desconfiança com o megaevento oneroso e, ao mesmo tempo, com a não-identificação com slogans mais radicais – do tipo “não vai ter, Copa” – que soavam irreais. Pois bem, eis a segunda surpresa: foi apenas a duas semanas do início do Mundial que a população “acordou”, de fato, para a sua realização. E acordou de modo surpreendente para a maioria, incrédula ante o que via. Embora a frase de Platini – “esqueçamos os problemas sociais por um mês para fazer o torneio da Fifa” – tenha soado mal, sua proposição de alguma maneira encontrou adesão no Brasil. O sentimento de algo extraordinário e único – quando se repetirá essa oportunidade no país? – levou o brasileiro a querer vivenciar a experiência de um Mundial e dos seus jogos, a querer receber os estrangeiros bem, a querer mostrar aspectos positivos do país, para além das mazelas tão escancaradas que todos nós sabemos que temos. A terceira surpresa, podemos dizer, não foi propriamente a vaia à Dilma no jogo de estreia da Copa, mas a reação negativa da população ante a hostilidade à sua representante máxima, num evento internacional, por parte de um segmento da população. Isto entra na chave da autovalorização frente ao “outro”, ao que vem de fora, num jogo identitário que é sempre relacional…Mas, houve um aspecto estratégico para que as manifestações não assistissem a um crescente processo na Copa: a gigantesca repressão policial no jogo de estreia da Copa e do Brasil, em São Paulo, coagiu não só os metroviários então em greve como boa parte dos manifestantes e dos movimentos sociais. Para mim, aquela demonstração de força policial foi exemplar para a contenção do que poderia ser uma espiral de violência fora dos estádios na sequência dos jogos.

Finalmente, a quarta surpresa: o Mundial acabou e o que avultou não foi a parte administrativa e comportamental, mas a pífia performance do Brasil em campo, variável importante para pensarmos possíveis desdobramentos no pós-Copa. Enquanto paira a sensação mais geral de “sucesso de organização”, a Seleção, que caminhou até a semifinal sem despertar grandes encantamentos, esboroou em suas duas últimas partidas, revelando a crise do “país do futebol” e fazendo-nos duvidar do mito do “futebol-arte”, inventado, aliás, pela imprensa francesa na Copa de 1938. A vitória “fora de campo” e a derrota dentro de campo – sobretudo o “como” ganhamos em organização e o “como” perdemos nas quatro linhas – serão fontes férteis para uma série longeva de leituras e interpretações narrativas da Copa por décadas a fio.

Desde as manifestações populares ocorridas em meados do ano passado, durante a Copa das Confederações, tem se falado muito da força política da FIFA, sobretudo no tocante a sua relação com o governo federal, relação esta que parece ter terminado estremecida ao fim da Copa. Como você percebe o lugar e a função da mais forte entidade do futebol no mundo, atualmente?

Isso dá uma aula de Relações Internacionais… (risos). O advento de uma entidade internacional de futebol, como é o caso da FIFA, criada na França em 1904, é emblemático dos aspectos políticos e nacionalistas em questão. Assim como outros órgãos de caráter transnacional – a exemplo da Liga das Nações – a Fifa surgiu para articular o sentido universalista do esporte, a partir da divisão geopolítica do poder futebolístico, sob um critério continental de divisão e representatividade. Enquanto os Jogos Olímpicos, idealizados pelo Barão Pierre de Coubertin, enfatizavam sua relação amadora com o passado e enalteciam de maneira aristocrática as suas origens na Grécia Antiga, a Fifa de Jules Rimet afinou-se aos novos tempos e tratou de criar as Copas do Mundo, com uma caráter profissional mais aberto e mais integrador dos selecionados nacionais. O profissionalismo no futebol, já existente na Inglaterra, foi aceito de maneira progressiva na Europa continental e na América do Sul, e permitiu a incorporação dos jogadores das classes populares que surgiam nas seleções de cada país. Um dado revelador das Copas do Mundo, bem como dos Jogos Olímpicos, em sua relação com os nacionalismos do século XX é alternância com as guerras entre as potências mundiais. O fato de a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) ter interrompido durante doze anos a realização das competições esportivas revela a ligação direta dos esportes com a diplomacia e com as lutas de poder entre as nações que disputavam a supremacia política. Se, por um lado, as práticas esportivas sublimavam a ritualização das guerras, substituindo-as e impedindo que elas ocorressem, por outro lado, a instrumentalização do esporte pelos regimes políticos, quer sejam democráticos ou ditatoriais, canaliza as tensões e as leva para o terreno de jogo. Mussolini na Copa de 1934 – “vencer ou morrer!”, era o lema do Duce à seleção italiana – e Hitler nas Olimpíadas de 1936 são seus exemplos mais notórios dessa tentativa de captar prestígio com o uso de esportistas e futebolistas.

No pós-Segunda Guerra, entidades como a Fifa cresceram bastante em termos de número de países afiliados, chegando ao ponto de a Federação Internacional de Futebol Associado ser chamada de “a ONU do futebol”. Já o contexto da Guerra Fria implicou em uma nova politização das disputas esportivas. Tratava-se de um novo modo de as nações medirem-se e concorrerem entre si por meio dos esportes. Os dois principais estilos de jogo, representados pela escola sul-americana e pela europeia, deixam de ser a tônica pouco a pouco das Copas do Mundo, na segunda metade do século XX. Novos selecionados vão ser incorporados, como a União Soviética e a Coréia do Norte, em 1958; Israel e El Salvador, em 1970; a Alemanha Oriental e o Zaire, em 1978, entre outros. A África e a Ásia foram os continentes que maior entrada tiveram no corpo representativo da Fifa, a partir dos anos 1960. A razão para tanto foi o processo de descolonização, de independência e de guerras de libertação que irrompeu em países como Argélia, Angola e Moçambique, entre outros. A qualidade de alguns jogadores africanos, no entanto, já se fazia notar quando seus países eram ainda colônias. Bastaria lembrar os atletas de origem argelina que atuavam na França e o ídolo moçambicano Eusébio, atacante que brilhou na Copa de 1966, ao representar a seleção portuguesa e eliminar o Brasil de Pelé. Quem se beneficiou e soube explorar a entrada dos países do assim chamado Terceiro Mundo – o termo foi cunhado durante a Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955 – foi o dirigente brasileiro João Havelange, eleito à presidência da Fifa em 1974. Sua eleição ocorreu graças aos votos dos países africanos, asiáticos e sul-americanos, que polarizaram contra a hegemonia britânica de Stanley Rous. Uma vez à testa do poder da entidade suíça, o dirigente do Brasil introduziu substantivas transformações na configuração da entidade, no último quartel do século XX, a começar pelos patrocínios de empresas multinacionais e pela mercantilização da Copa do Mundo, que se tornou uma marca registrada. Podemos dizer que o legado de Havelange – os benéficos e os nefastos – perduram até hoje no seio da entidade. Entidade que, a propósito, tive a oportunidade de conhecer e em cujos arquivos tive a possibilidade de pesquisar no ano de 2013.

Verdade, o assunto rende mesmo. De quatro em quatro anos, durante as copas do mundo, nós vemos uma intensa onda de patriotismo: isso está nas propagandas veiculadas na televisão, na imprensa, nas ruas e, principalmente, entre a população. Nesses tempos, parece realmente que a seleção brasileira é a “pátria de chuteiras”, para citar o clichê de Nélson Rodrigues. Como é possível explicar a mobilização desse sentimento? Sempre foi assim? Por que o futebol mobiliza tanto as pessoas, mesmo aquelas que em outros momentos pouco ligam para futebol?

A Copa do Mundo impõe forçosamente uma tripla narrativa: a do Estado-nação brasileiro – sua capacidade de mostrar-se preparado para organizar um torneio de tamanha atratividade planetária – a da sociedade – sua hospitalidade, sua receptividade aos estrangeiros, a relação da torcida com os símbolos nacionais – e a do time – sua performance esportiva em campo. Sucedâneo das Exposições Universais do século XIX, os Jogos Olímpicos e as Copas do Mundo são ocasiões extraordinárias de aparição de um país para o mundo, de modo que os brasileiros viveram com bastante ansiedade os jogos e a organização do torneio Mundial, assim como ocorrerá daqui a dois anos, com as Olimpíadas. O Brasil assistiu desde o ano de 2007 a uma grande esgrima verbal entre Estado e sociedade, e entre Fifa e Estado brasileiro, em torno do significado da realização da Copa do Mundo no país. Os termos em duelo foram “gastos” versus “investimentos”. Os custos da Copa alcançaram 26 bilhões de reais, se comparados ao orçamento do Ministério da Educação (98 bilhões) e do Ministério da Saúde (99 bilhões), temos uma proporção arredondada de um quarto (25%). De todo modo, houve uma desconfiança generalizada por parte da população frente ao governo, pois dizia-se, logo após o anúncio da Copa, sete anos atrás, que todo o custeio do Mundial ficaria a cargo do financiamento privado, o que afinal não ocorreu.

Legado foi outra palavra cara à semântica em luta política. Sabemos que havia múltiplos legados em jogo – esportivo, social, urbanístico, turístico etc. Quando falávamos do legado esportivo, tinha-se de imediato o imaginário das doze novas arenas, modernizadas para a Copa, que ficariam para o futebol de clubes brasileiros, após um mês de megaevento. O caso de estádios situados em cidades-sedes como Manaus, Cuiabá e Natal, no entanto, era extremamente preocupante, pois são regiões destituídas de times locais com tradição futebolística e com expressão nacional, cujo futuro se mostra, portanto, enigmático.

Professor, mudando um pouco o rumo do nosso papo, queria entrar agora num terreno, digamos, mais imediato (ou familiar) de nossa relação com o futebol: as torcidas organizadas no Brasil, tema que é sua especialidade acadêmica. Como surgiram essas torcidas organizadas? Como podemos dividir essa História?

O mais surpreendente na minha pesquisa de doutorado, defendida em 2008 e publicada com o nome de “O clube como vontade e representação”, foi constatar que historicamente as torcidas uniformizadas, em São Paulo, e as torcidas organizadas, no Rio de Janeiro, surgiram nos anos 1940 e foram criadas pelos clubes, com o apoio da imprensa, justamente para ser uma força de contenção à violência das massas. Assim, chamava-se de “organizada” porque cabia à torcida, formada por sócios do clube, animar de forma orquestrada a festa das arquibancadas e denominava-se “uniformizada” porque o uniforme tornava o torcedor facilmente identificável, ao contrário dos que iam sem identificação e valiam-se disto para promover agressões.

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Estádio Groupama, 13/10/17 Olympique Lyonnais. Foto: Thomas Serer, Unplash.

As primeiras torcidas organizadas datam dos anos 1940, no Brasil. Nos anos 1960, elas reaparecem sob a denominação Torcidas Jovens, em particular no Rio de Janeiro, com a reivindicação de uma postura mais crítica e contestatória no universo do futebol. Os distúrbios, constantes no futebol desde suas origens, passam a ser associados às Torcidas Jovens nos anos 1980, quando essas associações crescem e passam a premeditar os confrontos com os grupos torcedores oponentes na cidade (Flamengo X Vasco; Corinthians X Palmeiras; Cruzeiro X Atlético, etc…) e no país (Corinthians X Vasco; Atlético-PR X Vasco; Flamengo X São Paulo, etc…). O termo “força fiscalizadora” é recorrente entre as torcidas desde os anos 1960. Neste sentido, há uma analogia direta com o papel dos sindicatos no mundo do trabalho e dos conflitos sociais. Eis seu papel político, eis sua “moral”: cabe à torcida exercer a pressão para que algo seja feito quando o time está em crise e para que o momento crítico seja revertido o quanto antes, mesmo que com o emprego da violência. De todo modo, é muito difícil tipificar o torcedor organizado sem recair em estereótipos. Como os próprios componentes das torcidas gostam de dizer, há de um pouco de tudo, de “marechal a marginal”. É claro que, à primeira vista, sobressai a impressão de que se trata exclusivamente de jovens da periferia, com trabalho precário e com baixo grau de escolaridade, sem aspiração à ascensão social. Mas é arriscado generalizar: entrevistei lideranças da Federação de Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro, a FTORJ: 4 dos 6 líderes tinham diploma universitário e todos moravam na zona sul do Rio de Janeiro.

Como você acabou de apontar, torcidas organizadas/uniformizadas no Brasil estão longe de serem uma novidade. A “Charanga” do Flamengo, por exemplo, foi criada ainda nos 1940. Desde então, fazer parte de entidades como essas significa associar-se a uma organização que possui ideais, que gera sentimento de pertencimento, enfim, é compartilhar muitas coisas. A noção de pertencimento e os valores compartilhados de ontem, no entanto, não necessariamente são os mesmo de hoje. Qual a diferença entre os torcedores dos anos 1940, de uma Charanga, por exemplo, e os torcedores de organizadas nos dias de hoje?

O final da década de 1960 e o curso dos anos 1970 foram a conjuntura histórica em torno da qual se processou, paulatinamente, a mudança no perfil das torcidas organizadas, a que você se refere. Em âmbito internacional, deflagra-se a crise de valores e de gerações, por meio da emergência da juventude como protagonista de uma História ambígua de contestação e de adesão à sociedade envolvente, em particular as transformações do capitalismo de então. Os “ultras”, por exemplo, surgiram na Itália nos anos 1970, mas essa palavra inspira-se nas passeatas estudantis ocorridas no país em fins da década de 1960. Em escala nacional, pode-se apontar a ditadura militar, com suas influências, diretas e indiretas, sobre a juventude brasileira, em específico os estudantes.

No nível futebolístico, a criação de um Campeonato Nacional de clubes, a partir de 1971, levou as torcidas à necessidade de uma maior estruturação interna, para as caravanas, que contribuíram para construir uma identidade juvenil e um estilo de vida ao redor do futebol. Entre as diferenças existentes ontem e hoje, pode-se dizer, em princípio, que as charangas eram concebidas no interior dos clubes, como braço de apoio incondicional ao time. Assim foi com a Torcida Uniformizada do São Paulo, fundada em 1940, por sócios do clube paulista. Em contrapartida, as torcidas jovens organizam-se, inicialmente no final dos anos 1960, fora da alçada do clube. Por isto, é mais fácil reivindicar uma posição crítica, de fiscalização e, em casos extremos, de ameaças verbais e até físicas, como se verifica até os dias atuais. Essa foi uma marca insurgente do seu início, como um movimento contestatório, que se dá em 1967 e 1968 no Rio, e em 1969, em São Paulo. Mas é evidente que tal postura oscilou de acordo com a situação do próprio time e da relação com a gestão do clube, consoante a política interna clubística. Hoje também assistimos ao fenômeno da criminalização do torcer: as torcidas tornaram-se caso de polícia a partir de 1988, com a morte de Cléo, líder e fundador da Mancha Verde, do Palmeiras. Em termos judiciais, o fenômeno deriva da chamada “batalha campal” do Pacaembu, ocorrida em 1995, quando Mancha Verde e Independente são proscritas dos estádios.

Todas essas torcidas organizadas, principalmente as que vemos hoje, acionam uma série de representações. Muitas, por exemplo, se apropriam de termos e símbolos militares ou bélicos em seus discursos: “guerra”, “baralha”, “pelotão”, “esquadrão”, etc. Por que isso? Em que medida a violência no futebol espelha a violência em nossa sociedade?

É evidente que uma discussão mais aprofundada requer uma definição e um entendimento mais claro e rigoroso do que é violência. Há uma variedade de graus para os vários tipos de atos violentos e transgressores, que ocorrem dentro e fora dos estádios. Até uma ofensa e um xingamento pode ser considerado um ato de violência, dependendo da circunstância. Assim, parto do princípio de que, quando falamos de violência no futebol, tratamos em específico de subgrupos de torcedores, vinculados a um clube profissional, que têm por finalidade encontrar e agredir agrupamentos rivais em dias de jogos, ou mesmo em dias normais. Esses agrupamentos têm uma História de cerca de trinta anos no Brasil e reúnem, em sua grande maioria, jovens do sexo masculino, entre 14 e 25 anos de idade. Nesse sentido, podemos falar em uma estrutura da violência no futebol que é, aliás, um fenômeno juvenil internacional, com os hooligans na Inglaterra, os ultras na Itália e as barras na Argentina. É evidente que, quando tratamos da violência social, devemos pensar em seus efeitos no futebol. O esporte inscreve-se na sociedade, não é um organismo à parte. Todavia, falar apenas em ‘reflexo’ da sociedade na violência esportiva é por demais reducionista, álibi para que a questão não seja enfrentada, como ocorreu na Inglaterra, ainda que não solucionada inteiramente. Distúrbios nos estádios sempre existiram. Em princípio, havia o medo da multidão, do homem violento que se valia do anonimato de uma praça de esportes em que cabiam mais de cem mil pessoas. Gustave LeBon e Gabriel Tarde, entre outros ideólogos e estudiosos franceses do século XIX, discorreram sobre o “pânico moral” da multidão e o correspondente encorajamento a atitudes emotivas, pulsionais e agressivas do homem na coletividade. Mas, note-se que eles não falavam disso relacionado ao futebol, mas a todo o movimento de massa, seja ele político, cultural ou social. Os esportes tornaram-se um ingrediente disso, pois os estádios se agigantaram com o tempo, a exemplo de Wembley e do Maracanã, com capacidade para mais de cem mil pessoas.

Muitas pessoas acreditam que a solução para a violência futebol passa pelo fim das torcidas organizadas. Outros defendem que o problema está na maneira como o futebol no Brasil é administrado ou ainda na conivência da justiça desportiva. Na sua opinião, qual o melhor caminho para se erradicar episódios de violência no futebol? O que aconteceu na Inglaterra, por exemplo, pode ser um modelo a ser seguido?

O sociólogo Maurício Murad é feliz e certeiro ao dizer que é necessário: 1. Reprimir no curto prazo; 2. Prevenir a médio prazo; e 3. Reeducar em um horizonte mais amplo. Um tratamento apenas repressor e policial não consegue dar conta do problema. Há pelo menos 20 anos temos tragédias em estádios brasileiros, seguidas de repressão (algumas torcidas em São Paulo foram extintas), mas o tempo passa e não se verificam mudanças mais profundas. O policiamento, com seus órgãos repressivos, e os juízes, com suas aplicações penais, coíbem os efeitos, não a gênese do fenômeno. A repressão e a punição são necessárias, mas têm de estar articuladas a outras ações, a outros atores sociais (psicólogos, pedagogos, antropólogos) e a outras esferas. Apenas a polícia não resolverá a questão. Este é um ponto importante. Os órgãos de segurança – leia-se a polícia – tornaram-se os únicos interlocutores responsáveis pelo acompanhamento das torcidas, e um monitoramento restrito aos dias de jogo. Uma visão mais ampla tem de considerar o envolvimento da sociedade, a começar pelos clubes, corresponsáveis pela existência das torcidas. Ações que envolvam pessoas das áreas de Serviço Social, Sociologia e Antropologia seriam positivas na mediação de conflitos, como ocorre na Alemanha, como o Fan Project. Além disso, estimular o exemplo da criação de associações de torcidas entre diferentes clubes, como a existente hoje no Rio: a Federação de Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (FTORJ); a de existência recente, o Conselho Nacional de Torcidas Organizadas (a CONATORG); e a existente no passado (anos 1980), como a Associação das Torcidas Organizadas de São Paulo (ATOESP). É difícil apontar erros e culpados unilateralmente. De um lado, os clubes têm de pautar de modo mais claro o tipo de relacionamento com as torcidas, sobretudo quanto à concessão de ingresso e ao custeamento das caravanas. Já o Estado tem de desenvolver uma política continuada de assistência, que envolve os atores mencionados na primeira questão. É preciso ter clareza: apenas a polícia não resolverá isto.

Olhando agora para o futuro do futebol, confesso que fico um pouco preocupado com o que está ocorrendo no país. Depois da construção das novas arenas e de uma nova onda de gestão profissional adotada por muitos grandes clubes no Brasil, temos acompanhado o aumento dos preços dos ingressos, de forma a excluir uma parcela significativa da população dos jogos. Há quem defenda que isso nada mais é do que um novo modelo de gestão, em que o torcedor, mais pobre, fatalmente deixará mesmo de ir com a mesma frequência aos jogos. O Brasil pode estar caminhando para uma elitização do esporte? O que está errado e o que está certo nessa forma de pensar o futebol?

O esporte movimenta um segmento da indústria do entretenimento de maneira crescente, tanto presencial quanto virtualmente. O preenchimento da vida do torcedor passa por essa estruturação temporal em torno de um “antes”, de um “durante” e de um “depois” do jogo. Tal estrutura, antes restrita aos fins de semana, agora se estende às partidas do meio de semana, que preenchem a grade televisiva em seu horário nobre. É difícil afirmar genericamente o que está certo e o que está errado no projeto de mercantilização do esporte. Trata-se de um projeto, com uma visão de mundo e com interesses particulares, cuja aplicabilidade, por assim dizer, depende de um público de massa heterogêneo, que não é mera ‘tábula rasa’, como se costuma crer. A semântica das palavras muitas vezes encobre seus objetivos. Quem é contra conforto e segurança em um estádio de futebol? Mas o “conforto” aqui é a pedra de toque para o modelo excludente contemporâneo de arena, que vem da Europa. A majoração dos ingressos é seu resultado. Sempre houve torcedores que preferiram o reconforto individual e aqueles, por outro lado, que querem a emoção coletiva. Por que então não contemplar ambos os tipos ao conceber planos arquitetônicos para estádios? Sim, a tendência contemporânea é a da elitização dos estádios, mas tal tendência encontra obstáculos. O Maracanã, por exemplo, possui um apelo simbólico considerável no imaginário brasileiro e internacional. Foi a mobilização popular, por exemplo, que impediu a sua implosão nos anos 1990, previsto à maneira de Wembley, conforme queria o então presidente da CBF, Ricardo Teixeira. Seu futuro modelo de gestão, no entanto, é preocupante, pois ainda não se tem uma definição quanto a princípios identitários, que respeitem sua História e tradição populares. Se as mudanças são inevitáveis, elas não são únicas nem inflexíveis.

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Futebol é jogado ao redor do mundo. Na imagem, dois menios jogam em terra inundada do Vietnã. Foto: Vietnã lindo, Unplash.

É preciso muita atenção às próximas decisões bem como ao espaço das torcidas organizadas no novo Maracanã. Isso porque, junto à elitização das praças de esportes, o modelo das arenas implica também em uma mudança substancial do tipo de comportamento do torcedor. Em especial, saliente-se a recomendação expressa dos gestores esportivos e dos arquitetos responsáveis para que os torcedores assistam às partidas sentados, em assentos individuais e personalizados. Isto se confronta com o hábito tradicional de parte significativa das plateias futebolísticas, ligadas a seus respectivos clubes, de assistir aos jogos em pé. Assim, a acepção geral de “legado”, tal como requerida pela entidade suíça que comanda o futebol mundial, encontra no Brasil uma série de obstáculos quando aplicada a esse quesito. No país, os estádios têm uma tradição pública e não privada, isto é, foram construídas pelo governo e não pela iniciativa particular dos clubes. Ao mesmo tempo, os espectadores que tradicionalmente assistem às partidas são aqueles interessados no futebol de clubes, e em campeonatos em escala nacional e regional nos quais seus times participam.

Muitos de nossos leitores provavelmente se interessam por futebol também do ponto de vista acadêmico. Como é ser historiador e ter o futebol (e/ou outros elementos do universo futebolístico) como objeto de estudo? Como anda a nossa historiografia nesse ponto? Que pesquisadores e centros de pesquisas estão nessa vanguarda? Fale um pouquinho, por favor, sobre a pesquisa acadêmica em História quando o tema é futebol.

Essa é uma questão bem ampla, a da historiografia do futebol. De imediato, ressaltem-se o vigor e a presença crescente dessas pesquisas, uma vez que até pouco tempo atrás quase nada havia sido produzido nos Departamentos de História das universidades sobre a temática esportiva. Neste sentido, inspirada nos ensaios estruturais de Roberto DaMatta, a Antropologia Social já tinha assumido um caráter precursor desde fins da década de 1970, quando uma geração de antropólogos do Museu Nacional (Universidade Federal do Rio de Janeiro) defendeu suas primeiras teses acerca do assunto. É sempre arbitrário determinar um marco zero e mais difícil ainda abarcar todos os livros, sem pecar com omissões ou esquecimentos. Mas, circunscrevendo a obra de historiadores strictu sensu, é possível destacar o livrinho pioneiro de Joel Rufino dos Santos, “História política do futebol brasileiro”, publicado em 1981, na série “Tudo é História”. Esta série configurou uma das grandes inovações editoriais levadas a cabo pela Brasiliense em princípios da década de 1980. Ao lado das coleções “Primeiros Passos” e “Encanto Radical”, ela foi responsável por lançar a obra introdutória “O que é futebol?” (1990), de José Sebastião Witter, professor da Universidade de São Paulo. No final dos anos 1990, um primeiro processo de institucionalização do campo esportivo acadêmico começou a se manifestar. No Rio de Janeiro, por iniciativa de Francisco Carlos Teixeira da Silva, uma equipe de pesquisadores ligados ao Laboratório de Estudos do Tempo Presente (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais/UFRJ) se debruçou sobre os arquivos do Clube de Regatas Vasco da Gama. O resultado foi a organização do acervo daquele clube e a publicação de “São Januário: arquitetura e história” (1998), uma caixa com livros e CD-ROM, de autoria de Hamilton e Clara Malhano.

Embora o levantamento arquivístico não tenha sido estendido a outros grandes clubes, a produção acadêmica continuou intensa naquele departamento, com o trabalho coletivo realizado no Sport – Laboratório de História do Esporte e do Lazer. Sob liderança de Victor Melo de Andrade, o grupo se caracteriza por abordar não apenas o futebol, atividade que monopoliza as atenções no Brasil, mas por encompassá-lo numa variada gama de atividades esportivas. Assim, o futebol é visto à luz de estudos comparativos com esportes como o turfe, o remo, o boxe e o basquete, entre outros. Uma das notáveis publicações desse centro, organizada em parceria com a historiadora Mary Del Priore, intitula-se “História do esporte no Brasil: do Império aos dias atuais” (2009), um completo painel da evolução das modalidades esportivas desde princípios do século XIX.

Em São Paulo, a publicação na área de história do futebol vem crescendo desde o ensaio seminal de Nicolau Sevcenko: Futebol, metrópoles e desatinos (1994). Nele, o historiador correlaciona o advento dos esportes na capital paulistana aos novos parâmetros da modernidade europeia e ao impacto da revolução científico-tecnológica de 1870 no país, durante as primeiras décadas do século XX. Para o historiador, longe de ser apenas efeito do velocíssimo processo de expansão urbana e dos gigantescos condicionamentos técnicos sobre o corpo humano, o futebol seria ao mesmo tempo um vetor da vida moderna e um componente identitário importante no processo de enraizamento do homem do campo às metrópoles que surgem nos anos 1920. Sob orientação de Sevcenko, Fábio Franzini defendeu sua dissertação na Universidade de São Paulo, publicada em livro no ano de 2003, com o título “Corações na ponta da chuteira – capítulos iniciais da História do futebol brasileiro (1919-1938)”. As balizas temporais propostas por Franzini se iniciam na conquista brasileira do Sul-Americano de 1919, no qual desponta a figura do atacante Friedenreich, e culminam na disputa da Copa do Mundo na França, em 1938. Nesta, o Brasil obtém a terceira colocação e Leônidas da Silva se sagra o artilheiro da competição, sendo ovacionado em seu retorno ao Brasil e constituindo assim o grande ídolo negro anterior a Pelé. Sem sair de São Paulo, deve-se apontar também o volumoso livro de Leonardo Affonso de Miranda Pereira, “Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938)”. Tese de doutorado defendida na Universidade Estadual de Campinas em 1998, trata-se de uma original abordagem da introdução do futebol na capital da República. Nela, o autor põe em xeque a versão dicotômica consagrada acerca do período do amadorismo – a belle-époque e a exclusividade de seus clubes de elite –, proposta pelo jornalista Mário Filho em “O negro no futebol brasileiro” (1947). Sem fazer eco à historiografia canônica, que identifica a popularização do futebol apenas na década de 1930, fruto de uma concessão do Estado, Leonardo reconta a História deste esporte sob novo prisma – “de baixo para cima” –, com base nas ligas operárias e suburbanas formadas pelos “trabalhadores da bola”, durante a Primeira República. Ainda naquele estado, em período recente, Flávio de Campos e Hilário Franco Júnior, professores de História da USP, vêm ministrando cursos dedicados à compreensão histórica do fenômeno futebolístico. Graças em parte à sistematização das pesquisas para esses cursos, o segundo autor elaborou um denso e completo livro, no qual explora, sob um viés ao mesmo tempo sincrônico e diacrônico, nacional e internacional, quase todas as latitudes e longitudes do futebol. A obra A dança dos deuses – futebol, cultura e sociedade (2007) situa este esporte na micro-história da vida contemporânea, difundido em todos os quadrantes da Terra. Com foco na Europa e no Brasil, Franco Jr. faz do futebol o elemento-síntese, fio-condutor das transformações por que passou o mundo após a eclosão da Revolução Industrial, no final do século XVIII. Além da visão sintética, o futebol também faz as vezes de metáfora que empresta sentido às ações humanas, trazendo em sua prática conotações sociológicas, antropológicas, religiosas, psicológicas e linguísticas insuspeitadas.

Nos últimos anos, é possível dizer que as dissertações e as teses defendidas na área de História se irradiam em diversos lugares do país, de Curitiba a Belém, de Goiânia a Porto Alegre. Seu crescimento se evidencia a cada encontro regional e nacional da Associação Nacional de História (ANPUH), com o sucesso de público no grupo de trabalho “História do Esporte”. Conforme costuma ocorrer ciclicamente, a cada quatro anos, quando se inaugura um novo megaevento esportivo, a Copa do Mundo é um momento convidativo para se refletir sobre futebol. Da mesma forma que a historiadora Gisela de Araújo Moura, em O Rio corre para o Maracanã (1998), livro sobre a construção do estádio do Maracanã e a realização da Copa de 1950 no Brasil, publicado no ano da Copa do Mundo na França; e da mesma maneira que o historiador Rubim Aquino, no panorâmico Futebol, paixão nacional (2002), lançado por ocasião da Copa do Japão e da Coréia, as Copas de 2010 e 2014 constituíram momentos propícios para que historiadores fizessem esse tipo de balanço, catapultados pelo boom editorial na publicação de livros sobre futebol. Do que se depreende do já considerável elenco de livros, a relação entre futebol e brasilidade é sem dúvida o aspecto mais recorrente na historiografia nacional. Pode-se dizer que a identidade nacional é o ponto quase obsedante da reflexão historiográfica, algo compreensível, pois o futebol mobiliza uma gama de questões cruciais no Brasil: o papel do Estado; a composição étnica do povo; o peso da representação regional na nacionalidade; a expansão dos meios de comunicação de massas; e a construção da imagem de nação moderna, entre outros. Só resta desejar aos leitores do Café História: boas leituras!

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

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