“Hoje podemos tratar da Semana e do modernismo de forma mais livre, pois não somos mais seus contemporâneos” 1
O professor Eduardo Jardim participa da sessão de abertura da Flip 2015 - Festa Literária Internacional de Paraty, com a mesa literária: As Margens de Mário (Tânia Rêgo/Agência Brasil).

“Hoje podemos tratar da Semana e do modernismo de forma mais livre, pois não somos mais seus contemporâneos”

A Semana de Arte Moderna completa 100 anos. Para pensar a da-ta e o evento de 1922 em si mesmo, conversamos com o filósofo Eduardo Jardim, professor aposentado da PUC do Rio de Janeiro. Jardim explica o que foi a “Semana” e os desafios estéticos, políti-cos e identitários enfrentados pelos modernistas nos anos seguin-tes.
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A Semana de Arte Moderna, popularmente chamada de “Semana de 22”, está em praticamente todos os livros escolares de história e de literatura. Se você, leitor, fez Ensino Médio, então certamente estudou o que fez o grupo liderado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Anita Malfatti e muitos outros artistas e intelectuais brasileiros, entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal da cidade de São Paulo. O motivo para que aqueles poucos dias tenham tanta importância é simples: a Semana de 22 revisou criticamente a produção artística do país e funcionou como marco de uma geração disposta a novas ideias e estéticas em diferentes campos da arte e da literatura no Brasil.

Para falar do primeiro centenário desta importante experiência artística, conversamos com o filósofo Eduardo Jardim, professor aposentado da PUC-Rio.

Para Jardim, o distanciamento no tempo e nas propostas faz com que nós, hoje, possamos falar sobre a Semana de 22 de forma mais livre. Ele explica ainda o que havia de modernismo antes da Semana, do legado daquele movimento e da relação dos intelectuais modernistas, anos depois, com o poder, sobretudo o do Estado Novo. Sobre o significado da Semana, Jardim vai direto ao ponto: “construir uma identidade nacional é uma das tarefas a que se propõe o modernismo em sentido amplo”.  

Eduardo Jardim nasceu no Rio de Janeiro, em 1948. Foi professor de filosofia na PUC-Rio entre as décadas de 1970 e 2010. Escreveu livros sobre modernismo no Brasil, como “A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica” (1978), recentemente reeditado (2016), “Limites do Moderno” (1999), “Mário de Andrade – a morte do poeta” (2005) e coordenou a coleção “Modernismo + 90” (2012-13). Em 2015, lançou a biografia “Eu sou trezentos – Mário de Andrade, vida e obra”, vencedor do Prêmio Jabuti de Melhor Livro do Ano de Não Ficção. Pesquisou o pensamento de Hannah Arendt e Octavio Paz, colaborando na divulgação de suas obras e publicou sobre eles: “A duas vozes – Hannah Arendt e Octavio Paz” (2007) e “Hannah Arendt – pensadora da crise e de um novo início” (2011). Traduziu a coletânea de ensaios “A busca do presente”, do escritor mexicano Octavio Paz (2017), parte da coleção Ensaios contemporâneos, que dirige na editora Bazar do Tempo.

Como você explicaria a Semana de Arte Moderna para alguém que nunca ouviu falar dela?

A Semana de Arte Moderna foi um acontecimento no Teatro Municipal de São Paulo, em fevereiro de 1922, de três dias, que teve a participação de escritores, artistas plásticos e músicos. A Semana consistiu de palestras, leitura de poemas, concertos e uma exposição montada no saguão do teatro. Entre os escritores participantes, os mais destacados foram Graça Aranha, Mário de Andrade e Menotti del Picchia. Entre os músicos, Villa-Lobos. Entre os artistas plásticos, Anita Malfatti, Victor Brecheret e Di Cavalcanti.

Não se sabe quem teve a ideia da Semana. Alguns falam de Di Cavalcanti, outros mencionam a mulher de Paulo Prado, D. Marinete. Não havia unanimidade, do ponto de vista estético, entre os participantes. Havia sim a preocupação com a atualização da produção artística a um novo tempo, a intenção de romper com toda forma de academismo e o propósito de chamar atenção para novas formas de expressão artística.

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Diversos artistas e intelectuais que participaram da “Semana”. (Reprodução).

A Semana foi financiada por expoentes da aristocracia cafeeira, principalmente por Paulo Prado. Ela foi considerada o marco inaugural do modernismo no país. Mas é claro que foi preparada nos anos que a precederam. Também foi a expressão do anseio de renovação que se espalhava pelo ambiente intelectual no país. O melhor depoimento sobre a Semana foi o de Mário de Andrade na comemoração dos seus vinte anos, em 1942, na conferência “O movimento modernista”, incluída em Aspectos da Literatura Brasileira.  

Quando se fala em modernismo no Brasil, nós costumamos pensar na “Semana de Arte Moderna” de 1922 e nos artistas que fizeram parte dela. Mas a historiografia tem demonstrado que o movimento modernista foi muito mais do que isso, com diferentes expressões regionais, de modo que deveríamos falar em “modernismos”. Como você enxerga essa pluralidade?

É possível que já houvesse artistas modernos no país antes da Semana, mas só existe uma Semana de Arte Moderna. Também foi o grupo paulista liderado por Mário de Andrade que explorou, ao longo dos anos vinte, as possibilidades da renovação intelectual. Acho que o historiador deveria inserir a Semana e o modernismo de 22 em uma corrente de ideias que vem desde o final do século dezenove até os anos sessenta do século XX. Poderíamos chamar essa corrente de modernismo em sentido amplo, que teria durado aproximadamente 100 anos, desde a geração de setenta e Euclides da Cunha até o tropicalismo no final dos anos sessenta do século XX. Quais as questões enfrentadas por esse amplo movimento de ideias? Foram duas: modernizar significava inserir o país no “concerto das nações”. Como conseguir isto? Os principais autores pretendiam que apenas pela afirmação do caráter nacional conseguiríamos a inserção no mundo moderno. Em segundo lugar, era preciso entender o país como uma unidade. E o problema que se apresentava era: onde reconhecer esta unidade? As respostas foram várias, como a solução de Mário de Andrade, que definia o elemento nacional referindo-o ao elemento popular e este ao folclore. Precisamos contar a história do modernismo no Brasil, do seu começo até seu fim. Deste modo, não somos mais contemporâneos do modernismo. Para o analista isso tem uma vantagem – a de poder considerar de fora o movimento e tentar compreendê-lo.      

Há pouco, você citou a conferência “Movimento Modernista”, feita pelo Mário de Andrade, em 1942. Nessa ocasião, ele fez um elogio ao movimento, mas reconheceu que ele não teria sido capaz de transformar a sociedade e a arte em um sentido mais amplo. Essa avaliação, 20 anos depois de 1922, era só do Mário de Andrade ou também de outros artistas modernistas?                                   

A conferência “O movimento modernista” é um marco na nossa história intelectual. Nela, Mário de Andrade faz um histórico do modernismo, destacando a Semana de 22, e, em seguida, faz uma avaliação do movimento com base em três critérios. São eles: o direito permanente à pesquisa estética, a estabilização de uma consciência nacional e o que ele chama de atualização da inteligência artística brasileira. Ao se considerar o modernismo a partir dos dois primeiros critérios, o movimento foi bem sucedido. Foi assegurado o direito permanente à pesquisa estética e promoveu-se a radicação da produção artística brasileira no solo do país. Já quanto à atualidade do movimento modernista, Mário de Andrade acredita que o modernismo é um movimento frustrado. Para Mário de Andrade a arte envolve mais coisas do que pesquisa estética. Ela deve responder aos desafios do seu tempo. Ora, o tempo em que transcorreu o movimento modernista foi sobretudo político. Por esse motivo os modernistas deveriam ter superado toda forma de abstencionismo e se dedicado ao que Mário de Andrade chama de “melhoramento político-social do homem”. Não deveriam se contentar em ver a multidão passar, mas marchar com ela. O tom dessa parte do texto é fortemente confessional. Mário de Andrade sempre pretendeu que sua obra tivesse a marca do anti-individualismo, mas agora ele observa que ficara preso a um “hiperindividualismo implacável”. Ele não se reconhecia mais no seu passado; seu passado não era mais seu companheiro. Para se compreender estas passagens é preciso considerar o contexto em que elas foram escritas. Em 1942, no plano mundial, a guerra ainda não estava decidida na Europa. No plano local, vivia-se a ditadura do Estado Novo. Também o contato de Mário de Andrade com jovens intelectuais muito politizados no período em que viveu no Rio deve ser levado em consideração. Não lembro de ter lido outros autores com um diagnóstico tão duro de sua própria obra, com uma visão tão crítica do movimento que liderara. 

Nós sabemos que o Estado Novo se empenhou na construção de uma identidade nacional, e o modernismo estava no centro deste esforço. Como foi a relação do governo autoritário de Vargas com o modernismo e com os intelectuais modernistas?                                                                                    

O contato de alguns modernistas com as agências governamentais no período Vargas passava pela figura do ministro da educação, Gustavo Capanema. Assim, Carlos Drummond de Andrade foi chamado para a chefia do gabinete do ministro. Em 1935, Capanema convidou Mário de Andrade para uma reunião na sede do ministério, no Rio, e incumbiu o paulista de elaborar o anteprojeto do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional  (SPHAN). A abrangência desse anteprojeto é notável. Compunham o patrimônio não apenas monumentos e obras-de-arte, mas até paisagens e o patrimônio imaterial. Os bens tombados foram divididos em oito categorias: arte arqueológica, arte ameríndia, arte popular, arte histórica, arte erudita nacional, arte erudita estrangeira, artes aplicadas nacionais e artes aplicadas estrangeiras. Para se ter uma ideia do espírito do projeto, pode-se tomar as duas primeiras categorias – artes arqueológica e ameríndia. Os bens a serem tombados incluíam objetos, monumentos, paisagens e folclore, como vocabulário, cantos, lendas, magias, medicina, culinária ameríndias, etc.

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Vista do centro da cidade de São Paulo (SP), vendo-se o Teatro Municipal de São Paulo. Fundo: Fotografias Avulsas / Wikipedia.

A atuação efetiva do SPHAN nos anos seguintes restringiu de forma considerável a abrangência do projeto apresentado por Mário de Andrade. Com a extinção da Universidade do Distrito Federal (UDF), onde era professor, Mário de Andrade foi trabalhar em outro organismo estatal, o Instituto Nacional do Livro, onde deveria elaborar uma Enciclopédia Brasileira, um projeto nunca realizado. Trabalhou em seguida no SPHAN, quando preparou a monografia sobre o pintor padre Jesuíno do Monte Carmelo. Construir uma identidade nacional é uma das tarefas a que se propõe o modernismo em sentido amplo. A identidade nacional foi pensada por vários protagonistas e em muitas direções. Ela podia conter tanto traços autoritários quanto antiautoritários.

Os artistas modernistas exploraram temáticas ligadas ao universo indígena e ao afro-brasileiro. Mas negros e indígenas participaram da semana e do movimento enquanto artistas?

A questão racial tal como se entende hoje não era uma preocupação dos modernistas. Muito pelo contrário. Era preciso desconsiderar as diferenças raciais para se chegar à definição de uma raça brasileira. Em Macunaíma, a família do herói é composta por um negro, um mulato e um branco. O antropófago de Oswald de Andrade é definido mais como o operador do processo da antropofagia do que como um índio propriamente.

Foi preciso esperar algum tempo para o aparecimento na literatura da figura do negro e da tragédia da escravidão, como na obra de Raul Bopp. O poema “Negro” vai diretamente ao assunto:

Pesa em teu sangue a voz de ignoradas origens.

As florestas guardaram na sombra o segredo da tua história.

A tua primeira inscrição em baixo-relevo

foi uma chicotada no lombo.

Um dia

atiraram-te no bojo dum navio negreiro.

E durante noites longas e longas

vieste escutando o rugido do mar

como um soluço no porão soturno.

O mar era um irmão da tua raça.

Uma vez de madrugada

era uma nesga de terra e um porto.

Armazéns com depósitos de escravos

e a queixa dos teus irmãos amarrados em coleiras de ferro.

Principiou aí a tua história.

O resto

o que ficou pra trás

o Congo as florestas e o mar

continua a doer na corda do urucungo.

Mas para responder mais diretamente a pergunta: não houve participação de negros ou indígenas nas atividades da Semana. Também não se tem notícia de autores negros neste período do modernismo inicial. No Departamento de Cultura de São Paulo, em 1938, Mário de Andrade organizou uma série de atividades comemorando os cinquenta anos da abolição. Aí sim houve participação de negros. Este é um assunto ainda pouco estudado, mas vale a pena uma investigação mais detalhada.

Recentemente, o escritor Ruy Castro afirmou que muitos autores, sobretudo do Rio de Janeiro, pré-1922, mas que já praticavam uma literatura modernista, foram relegados ao esquecimento a partir da década de 1930, e que esse esquecimento se explica pelo fato de serem jornalistas, atuantes no mercado e porque “não tiveram seus nomes martelados diariamente desde os anos 1950 pela indústria acadêmica da USP”. Você concorda com essa crítica?

Não sei de que autores Ruy Castro está falando. Acho essa colocação meio bairrista. Parece que opõe ao bairrismo paulista um bairrismo carioca. Um momento importante na fixação da Semana como marco inaugural do modernismo é a conferência de Mário de Andrade “O movimento modernista”, de 1942. Depois disso em 1952, nos trinta anos da Semana, uma outra conferência, de Mário Pedrosa, já aceita a datação fixada por Mário de Andrade. Como a de Mário de Andrade, também a de Mário Pedrosa ocorreu fora do âmbito acadêmico.

O que resta, hoje, dos ideais da Semana da Arte Moderna?

Hoje podemos tratar da Semana e do modernismo de forma mais livre, pois não somos mais seus contemporâneos. Algumas tarefas se apresentam para o historiador. A primeira delas tem a ver com a inserção do modernismo de 22 no contexto de um modernismo em sentido amplo. A segunda consistiria em examinar as bases conceituais do movimento. Do ponto de vista artístico é certo que o modernismo assegurou de forma definitiva a liberdade de pesquisa estética. Noto também que ele é ainda referência para uma arte que tematiza a questão da brasilidade. Penso por exemplo no álbum recente de Caetano Veloso, com canções como “Meu coco” e “Sem samba não dá”.

Como citar essa entrevista

JARDIM, Eduardo. “Hoje podemos tratar da Semana e do modernismo de forma mais livre, pois não somos mais seus contemporâneos”. (Entrevista). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/entrevista-com-eduardo-jardim-semana-de-arte-moderna-100-anos/. Publicado em: 7 fev. 2022. ISSN: 2674-5917.

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

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