Vitor Izeckshon
Vitor Izeckshon é professor de História da América da UFRJ. Foto: acervo pessoal do entrevistado.

Precisamos falar sobre a História dos Estados Unidos

Entrevistamos o historiador Vitor Izecksohn, que acaba de lançar pela Editora Contexto o livro “Estados Unidos: uma história”. De acordo com o professor da UFRJ, não se pode negar a tenacidade do passado, “que sobrevive nos movimentos que cultuam a Confederação e um passado marcado pelas hierarquias de raça”.
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O dia 6 de janeiro de 2021 vai ficar marcado na história política dos Estados Unidos. Uma multidão inconformada com a derrota de Trump no pleito presidencial de 2020 invadiu o Capitólio durante uma sessão que validava a vitória do democrata Joe Biden. Cinco pessoas morreram no ato de insurreição. Além da violência, o episódio também se destacou pelos usos políticos do passado por parte da turba. Muitos usavam a bandeira confederada, enquanto que outros vestiam trajes folclóricos ou portavam símbolos nazistas.

A História dos Estados Unidos é o tema da nossa entrevista com o historiador Vitor Izecksohn, que acaba de publicar “Estados Unidos, uma história”, pela Editora Contexto. O livro, que chega em boa hora, é voltado para o público em geral, em especial aos interessados em compreender os processos históricos que marcaram a sociedade estadunidense durante seus primeiros 100 anos de existência. O passado pode não oferecer todas as respostas para explicar o presente, mas é possível extrair dele algumas pistas para entender esse caldo de fúria, autoritarismo e ressentimento que tomou conta do país nos últimos anos.

“Estados Unidos, uma história” cobre os 100 primeiros anos dos Estados Unidos.  Da Independência à Guerra Civil, passando pelo processo de reconstrução do país no século XIX, o autor examina a construção de sistemas partidários, o surgimento de instituições, a expansão territorial, a unidade política do país e a expansão dos direitos entre classes, gêneros e etnias. Este é o período em que a ideia de nação, política e identidades estadunidenses vão ser forjadas.

Vitor Izecksohn é professor adjunto de História da América no Departamento de História da UFRJ e colaborador do Café História, tendo participado também de um debate sobre História dos Estados Unidos, no Café História TV, com o historiador Arthur Lima de Ávila, professor do departamento de história da UFRGS.

Não é fácil elaborar um livro de síntese histórica. É preciso fazer muitas escolhas difíceis. Em “Estados Unidos, uma história”, você privilegia o século XVIII e, principalmente, o século XIX. Por quê?

Há anos eu queria publicar um trabalho como esse. É desafiador escrever para um público mais amplo, sem usar notas de rodapé, ainda mais tratando de temas tão específicos da História dos Estados Unidos. O livro cobre o intervalo entre a Independência e o final da Reconstrução (após a Guerra Civil). Concentrei-me nesse intervalo porque foi um período fundamental para a consolidação de um sistema partidário competitivo, para a afirmação de uma sociedade baseada no trabalho livre, para a expansão territorial e para o fortalecimento de um Estado nacional com poderes ampliados. E também porque sempre preferi estudar essa época.

Há bons trabalhos publicados no Brasil sobre essa quadra da História dos Estados Unidos. Por exemplo, os livros da Mary Junqueira. E há também vários trabalhos comparativos, enfocando principalmente a escravidão, que era uma instituição comum ao Brasil e a Cuba. Essa tradição foi revigorada pelos estudos sobre a Segunda Escravidão, através, entre outros, dos trabalhos do Ricardo Salles e do Rafael Marquese. O meu diferencial foi a ênfase nos três sistemas partidários que o país teve ao longo da história e na influência dessas agremiações no comportamento do setor público. Isso se dá não apenas porque os Estados Unidos são a primeira democracia de massas (ainda que negros, índios e mulheres estivessem excluídos), mas também porque os partidos se tornaram instituições nacionais numa república baseada na forte autonomia estadual. Nessas circunstâncias, os partidos políticos substituíram a burocracia no quesito da formação de rotinas administrativas estáveis. Então, me pareceu importante enfatizar essas questões pouco discutidas entre nós nas abordagens sobre o período.

Na sua avaliação, a questão da escravidão teve mesmo maior peso na eclosão da Guerra Civil? Havia outra agenda?

A historiografia norte-americana, principalmente a corrente Progressivista, acreditava que as causas da Guerra eram econômicas – alguns autores dessa corrente até mesmo ignoraram a escravidão. Se você ler o texto clássico do Frederick Jackson Turner, um dos historiadores mais influentes dos Estados Unidos entre o final do século XIX e início do século XX, não tem escravidão na fronteira Oeste. Por outro lado, historiadores pró-sulistas viram o conflito como resultado da cobiça partidária ou da ambição de um grupo de oportunistas. Sempre houve historiadores, como o W. E. B. Du Bois, que apontaram para a escravidão como o grande motivo a Guerra Civil, mas esses escritores não tinham espaço na academia.

Durante os últimos 50-60 anos, o posicionamento sobre a escravidão ser o elemento decisivo para a eclosão da guerra se consolidou de uma forma que dificilmente poderá ser contestada. De fato, como apontam diversos trabalhos, havia vários canais para a integração econômica entre o Norte livre e o Sul escravista no período anterior ao conflito. Para assegurar a paz e os privilégios, lideranças partidárias das duas regiões estabeleceram vários compromissos ao longo da primeira metade do século XIX visando preservar a integridade da União. Ou seja, a Guerra Civil não era uma consequência inevitável das diferenças entre essas duas regiões. Mas a expansão da escravidão para o Oeste, acelerada a partir da década de 1790, vai, aos poucos, perturbando essa paz. Ela foi o principal evento desestabilizador dos acordos celebrados na Constituição de 1788 e os que vieram depois dela. Esse fenômeno criou a percepção na opinião pública do Norte, durante o período posterior ao final da guerra contra o México, a partir de 1848, de que a escravidão poderia controlar o governo (o que de certa forma os escravocratas já faziam) e desacreditar o valor do trabalho livre.

Biblioteca Nacional Fred W. Smith
Recentemente, a Biblioteca Nacional Fred W. Smith para o Estudo de George Washington, em Mount Vernon, Virgínia, Estados Unidos, anunciou os nomes de 24 pesquisadores e pesquisadoras agraciados com bolsas de estudo para a classe de 2020-21. Izeckshon está entre eles. Foto: acervo pessoal do autor.

Por seu lado, os líderes escravocratas sulistas temiam que um governo republicano desestabilizasse seu poder sobre os escravizados, criando uma situação de rebelião que destruiria a hierarquia racialmente orientada. Por isso, a despeito das garantias que o futuro presidente, inicialmente ofereceu aos escravagistas do Sul, a eleição de Abraham Lincoln, em 1860, deu impulso aos grupos mais radicais naqueles estados, que muitas vezes impuseram a secessão à maioria. A decisão de ir à guerra para restaurar a União decorreu do desígnio de Lincoln e da liderança republicana. Havia quem defendesse simplesmente deixar que aqueles estados se separassem. Prevaleceu o ideal de uma república unificada que o presidente traduziu no discurso de Gettysburg (1863), quando declarou: “que o governo do povo, pelo povo, para o povo, não desaparece[ria] da face da terra”.

Foi uma guerra bastante devastadora, não? Foi a “primeira guerra moderna”?

Foi uma guerra de enormes dimensões. Ela envolveu alguns milhões de soldados nos dois exércitos. Particularmente, a partir de 1863, o objetivo das forças da União passa a ser a destruição da infraestrutura sulista. Episódios como a marcha do general Sherman entre Atlanta e Savanna, a destruição física de várias cidades e o crescente número de refugiados mostram os contornos de uma guerra moderna, na qual as populações civis se tornam um alvo preferencial da violência militar.

Mas ainda que tenha sido uma guerra inovadora, talvez não tenha sido uma “guerra total”, porque os estados contendores tinham grande dificuldade para extrair os recursos necessários para as campanhas. O Sul foi muito prejudicado pela enorme autonomia dos Estados membros. No Norte, frequentemente o recrutamento precisou ser interrompido porque as comunidades recusavam-se a cooperar. Na falta de instituições recrutadoras, houve muita negociação entre autoridades e cidadãos. Nesse quesito, a presença do partido Republicano nos estados foi fundamental para manter ao menos cotas mínimas de soldados nos períodos cruciais. Mas não fosse pela abolição da escravidão e o recrutamento de quase 200 mil soldados negros, dificilmente a União teria homens suficientes para derrotar e ocupar militarmente o Sul. Então, havia várias rotinas, cuja execução ainda era incompleta.

No livro, você dá bastante espaço para a Guerra Civil, haja vista a importância do fato para o desenvolvimento histórico do país. Mas em que medida esse acontecimento foi importante para a geopolítica da época?

A Guerra Civil Americana foi parte da crise federativa global, que engloba as revoluções liberais europeias de 1848 e tem reflexos na Guerra da Reforma no México, nas guerras civis argentinas e nas guerras da Unificação Italiana. Ao longo dos anos seguintes, um novo conceito de nação foi erguido e demandas para a criação de um Estado federal mais forte tornaram-se gradativamente imperativas. Os ideais que moveram o Norte tinham alguma familiaridade com a mensagem das revoluções liberais europeias de 1848 – e não é coincidência que muitos exilados europeus, especialmente alemães, tenham lutado com os exércitos da União. Era preciso unificar o país para que ele funcionasse, de fato, como uma república – não como uma coleção de estados fracamente articulada. Essa ação era do interesse dos fazendeiros livres, dos comerciantes e dos industriais, que formavam a grande aliança republicana.

Posteriormente, as coisas mudaram, assim como mudaria o papel do partido Republicano[1]. Mas entre 1854 e 1876 esses grupos beneficiaram-se com o fortalecimento do governo central. Assim, os republicanos operaram uma fusão temporária entre o partido e o Estado que permitiu um avanço gigantesco da agenda modernizadora. Um mandato profundo o suficiente para operar uma transformação radical das bases daquela república.

Manifestantes do Black Lives Matter em NY, 2016. Movimento enfrenta passdo e presente; Engenheiros da 8ª Milícia do Estado de Nova York em frente a uma tenda, 1861. Identificador local: 111-B-499. Identificador de arquivos nacionais: 524918; Primeira canhoneira blindada construída na América. O Saint Louis. Identificador local: 165-C-630. Identificador de arquivos nacionais: 533123; Retrato de George Washington. Tela de 1796, por Gilbert Stuart. Fonte: domínio público; Três prisioneiros confederados da Batalha de Gettysburg, julho de 1863. 200-CC-2288. Identificador de arquivos nacionais: 559274

A Guerra Civil também faz parte de um bloco de guerras bastante violentas do século XIX. Alguns historiadores se referem à década de 1860 como “sangrenta”, devido à multiplicidade de conflitos em quase todos os continentes, indo da rebelião na Índia (1857) até a Comuna de Paris (1871). Só para ficarmos nas Américas, temos a Guerra do Paraguai, as guerras da Reforma no México, as invasões francesa e espanhola ao mesmo México, a intervenção espanhola na República Dominicana e a Guerra dos Dez Anos em Cuba. Então, houve guerras internacionais com elementos de guerras civis e guerras civis que evoluem para conflitos internacionais. A violência foi generalizada por todo o Atlântico.

Na última parte do livro, você fala em “batalhas da reconstrução”. O que foram essas batalhas?

O termo é do historiador Eric Foner. A Reconstrução foi o movimento pela incorporação dos negros à sociedade americana após o final da Guerra através da extensão de um conjunto de direitos, um breve experimento de democracia multirracial no Sul. Muitos autores entendem que ela começou durante o conflito, com as fugas em massa e o arbitramento das relações de trabalho no Sul pelo exército. Talvez tenha sido um fenômeno único em sociedades escravistas, no qual o poder público procurou dar alguma compensação aos libertos tentando atender aos protestos dos ex-escravos por terra, voto e liberdade de circulação.

Mas esse movimento esbarrou numa série de limitações por parte das autoridades vitoriosas. Faltou um compromisso mais profundo, pois o Partido Republicano estava dividido e o exército nem sempre combateu eficientemente às reações terroristas dos antigos escravocratas. A Reconstrução também não alcançou o Oeste, onde o extermínio dos índios continuaria até a década de 1890. Finalmente, ela foi vítima do nacionalismo Confederado, que sobreviveu à débâcle da Confederação. Assim, um velho ditado diz que o “Sul perdeu a Guerra, mas ganhou a paz”. E de fato, as forças supremacistas impuseram, através da violência e da intimidação, um sistema racista que marcaria a política dos Estados Unidos até os nossos dias.

Precisamos falar sobre a História dos Estados Unidos 6
“Estados Unidos, uma história”, de Vitor Izeccshon, acaba de ser lançado pela Editora Contexto. Livro é voltado para o grande público.

A despeito do revés que foi a chamada “Redenção”, é possível afirmar que a Reconstrução criou um precedente para a intervenção do governo federal em favor dos negros. Um expediente que seria reeditado 100 anos depois, durante a campanha dos Direitos Civis. Então, apesar de ter fracassado no médio prazo, ela criou uma base para o futuro. O livro do Du Bois, “Black Reconstruction in America, 1860-1880”, é essencial para a compreensão dos dilemas da época. Infelizmente tanto este trabalho quanto os livros do Eric Foner, como “Reconstruction: America’s Unfinished Revolution”, não foram traduzidos para o português. Aliás, há poucos trabalhos traduzidos sobre esse período. Por exemplo, nenhuma das chamadas “Narrativas Escravas”, que foram textos de caráter autobiográfico escritos por homens e mulheres que escaparam do Sul e descreveram os horrores da escravidão, foi traduzido ainda para o português.

Por que existe uma bipolarização partidária entre republicanos e democratas no sistema eleitoral dos Estados Unidos? Sempre foi assim?

Os líderes da independência dos Estados Unidos (mais conhecidos como “Pais Fundadores”) não previram a existência de partidos, que viam como um elemento do sistema de facções. Os partidos se impuseram devido às demandas por participação política dos homens brancos adultos, por seu desejo de ter mais voz nos assuntos que afetavam suas vidas e anseios. Mas já na década de 1790 emergiram dois partidos oriundos de um cisma das elites: os “Federalistas” e os “Jeffersonianos Democratas”. Durante as décadas de 1820-30, surgiu um novo sistema partidário, composto pelos Democratas e pelos Whigs. Tratava-se de um sistema eleitoral mais moderno, competitivo. Ele também é conhecido como “Democracia Jacksoniana” em referência ao presidente Andrew Jackson, um dos arquitetos da criação do Partido Democrata. O sistema atual é o terceiro. Ele surgiu durante a década de 1850, quando toda a discussão a respeito dos territórios tomados ao México regionalizou o debate político. É curioso que naquele momento os republicanos fossem o partido da reforma, enquanto os democratas mantinham vínculos estreitos com os antigos grupos escravistas do Sul, uma história que muitos líderes democratas atuais gostariam de esquecer.

Na trajetória dos EUA houve tentativas de criação de “terceiros partidos”, como os populistas e os progressivistas, normalmente liderados por figuras carismáticas. Mas a estrutura do colégio eleitoral, criado em 1788, impediu que esses partidos se estabelecessem de forma permanente e nacional, ainda que não seja raro encontrar parlamentares independentes dos partidos no congresso e no senado nos dias atuais. A estrutura eleitoral também reforçou a estrutura não ideológica dos partidos políticos, uma das diferenças em relação às agremiações europeias.

Assistimos neste início de 2021 uma violenta invasão do Capitólio. Em que medida isso pode ser visto como um acontecimento disruptivo na história política norte-americana?

Vejo como um movimento desesperado de frações da população branca e pobre e de seus representantes entre os grupos de renda mais alta. Os EUA estão sendo ultrapassados pela China como principal potência industrial. Essa circunstância é percebida por pessoas prejudicadas pelas mudanças como decadência. Também existe a percepção de que a população branca ficará minoritária, ou seja, da ampliação da diversificação da composição étnica do país, que é um fato estatístico. Para muitos brancos do Sul e de áreas desindustrializadas do Norte e do Oeste, o apelo de Donald Trump e seus seguidores por supostos “valores tradicionais” de grandeza torna-se algo relevante, num cenário no qual várias das profissões clássicas do mundo fabril deixaram de existir.

Não deve ser negligenciada, também, a teimosa tenacidade do passado, que sobrevive nos movimentos que cultuam a Confederação e um passado marcado pelas hierarquias de raça. Esses setores reagem com violência às mudanças em curso porque se sentem mais desiguais quando veem as oportunidades se abrindo para outros grupos étnicos. Os EUA estão entrando em um período de turbulências mais longo faz algum tempo. Mas aquela república já superou tantos desafios que me parece provável que alguma forma de equilíbrio se estabeleça em médio prazo. Lembro-me dos anos 1970, quando alguns economistas brasileiros previam que a hegemonia do Japão levaria ao colapso dos Estados Unidos. Essas previsões não se cumpriram, por mais que fossem desejadas por alguns. O fato é que as redes sociais mudaram muito a forma como se faz política. Esse é um movimento global. Os EUA são a ponta do iceberg.

Notas

[1] Os republicanos nasceram como o partido das reformas, como a abolição, o acesso livre às terras e a criação de universidades estaduais. Mas o partido transformou-se ao longo do século XX, tornando-se mais afeito aos grandes negócios e corporações, a despeito da retórica libertária e individualista.

Como citar esta entrevista

IZECKSOHN, Vitor. Precisamos falar sobre a História dos Estados Unidos (Entrevista). Entrevistador: Bruno Leal. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com/precisamos-falar-sobre-a-historia-dos-eua/. Publicado em: 18 jan. 2021. ISSN: 2674-5917.

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

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