O historiador, o embaixador e outras histórias

3 de abril de 2011
Entrevista com Fábio Koifman (UFRRJ)

Em entrevista ao Café História, o historiador Fábio Koifman, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), explica como transformou mais de sete mil documentos em uma pesquisa que se tornou referência em História do Brasil e que ajudou a tirar do (quase) anonimato a história do embaixador brasileiro Souza Dantas, que salvou centenas de refugiados do nazismo. Seu livro “Quixote nas Trevas: o embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo”, lançado em 2002, baseado em sua dissertação de mestrado, é uma visão original sobre a admissão de estrangeiros no país durante a Era Vargas.

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Fabio Koifman é professor da UFRRJ. Foto: Leila Fuggi/SESC-SP.

Bruno Leal: Professor, seja muito bem-vindo ao Café História. O senhor possui graduação em História e também em Direito. Como ocorreu esta dupla formação? O que ela significa para o senhor enquanto pesquisador?

Fábio Koifman: Eu sempre tive muito interesse por História. Entretanto, o senso comum da época em que eu fiz o meu primeiro vestibular, no início dos anos 1980, era de que historiador era uma profissão cujo sustento seria incerto ao profissional que se dedicasse a ela. Assim, acabei por me decidir por Direito, um curso de cinco anos de duração. Depois de alguns meses na faculdade, percebi que parte da teoria do direito era interessante, mas a prática, terrível. Assim, no final do primeiro ano de Direito fiz novo vestibular para História. Como eu já fazia de manhã Direito na UFRJ e o único curso noturno de História em universidade pública na cidade era o da UERJ, optei pela UERJ. Inicialmente não tinha certeza se iria conseguir me formar em ambas, pois eu passei a trabalhar e depois estagiar na época em que estudava. Mas consegui ir levando os cursos sem nenhuma reprovação e, como sou insistente, me formei no mesmo ano em ambas, já que o curso de História tinha duração de quatro anos. De certo modo, sob alguns aspectos, são formações complementares. Especialmente no trato da pesquisa em documentação de Estado. O conhecimento de como funciona a cabeça de um advogado e a lógica do direito brasileiro sempre foram de bastante utilidade.

Bruno Leal: Professor, sua obra “Quixote nas Trevas – O embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo” (2002) se tornou uma obra de referência para quem estuda História do Brasil Contemporâneo. Como surgiu essa ideia?

Fábio Koifman: A ideia surgiu na época em que eu procurava um tema para desenvolver em um projeto de pesquisa visando a realização de um mestrado História na UERJ. Uma antropóloga que trabalhou em um projeto que recolhia depoimentos de sobreviventes do Holocausto para a Fundação Shoah, Kátia Lerner, me contou que um dos depoentes mencionou o nome do Souza Dantas sem maiores detalhes, uma vez que era ainda criança na época em que sua família recebeu os vistos do embaixador. A pesquisa começou com apenas um nome. Durou mais de três anos, produziu um acervo de cerca de sete mil e quinhentas cópias de documentos, cinqüenta entrevistas e culminou com o reconhecimento do Souza Dantas por parte do Museu do Holocausto em Jerusalém, o Yad Vashem, como um dos “Justos entre as Nações” a partir do encaminhamento que fiz ao museu das evidências que obtive.

Bruno Leal: “Quixote nas Trevas” pode ser definido como um trabalho de grande fôlego. Afinal de contas, trata-se de uma pesquisa enorme e realizada durante o mestrado, envolvendo milhares de documentos. Como o senhor conseguiu dar conta de tantos documentos e leituras? Como se organizou na época?

Fábio Koifman: Como disse na resposta anterior, a pesquisa produziu um volume muito grande de dados de diferentes proveniências, em especial, de arquivos públicos brasileiros. Na época em que eu pesquisava, alguns colegas me chamavam de exagerado, compulsivo, megalomaníaco ou me diziam que eu tinha ficado doido. Para poder redigir a dissertação (que foi transformada em livro) a partir desse volume de dados, por nove meses eu fiquei praticamente trancado em um quarto, virando a maioria absoluta das noites, dormindo poucas horas por dia. O quarto tornou-se uma “floresta de papéis”. Fiz inúmeras pilhas, organizadas cronologicamente e por tema. Como o arquivo já era todo sistematizado (carimbos com números nos versos das cópias e essas organizadas por temas), depois foi relativamente simples guardar tudo no lugar. Concluída a parte da documentação, os depoimentos foram inseridos, assim como as demais informações. O grande problema é que o Souza Dantas nunca teve um arquivo pessoal e nem ele nem ninguém fez registro dos atos humanitários praticados. Parte da pesquisa foi levantar tudo que dizia respeito ao embaixador e os atos relacionados à ajuda humanitária. Faltava ainda identificar os salvos, afinal, se o embaixador salvou perseguidos do nazismo, quais os nomes dessas pessoas? Depois de buscas públicas que se revelaram muito limitadas, passei a estudar todas as listas de passageiros de navios chegados da Europa no período de 1940 e início de 1942. A partir das listas preparei novas listas contendo milhares de nomes de prováveis portadores de vistos concedidos pelo embaixador. E fui verificando a documentação individual de um por um desses nomes. Quando cheguei a cifra de 475 dei a busca por encerrada. Mas até hoje surgem novos nomes. Há duas semanas, uma norte-americana me encontrou pela internet e pediu que a ajudasse a conhecer a respeito da saída do avô da Europa em 1941. Pesquisando o assunto para ela, descobri surpreso que o visto havia sido concedido por um cônsul brasileiro, mas que assinalou no passaporte que estava fazendo a concessão em razão de uma ordem telegráfica que recebeu do Souza Dantas. Como não há qualquer registro de autorização emitida pelo governo brasileiro na correspondência, trata-se de mais um dos ajudados pelo embaixador. Hoje a lista passou dos 500 nomes.

Bruno Leal: Existe uma corrente historiográfica no Brasil que vê o Estado Novo (1930-1945) como um período de grande antissemitismo em várias esferas governamentais. Essa visão é correta ou é preciso fazer alguma ponderação?

Fábio Koifman: O tema é complexo e é difícil expressar a minha opinião a respeito em poucas linhas. O antissemitismo não é “auto-explicável”. O uso não cuidadoso do termo produz explicações aparentemente fáceis de serem compreendidas, mas que não resolvem ou esclarecem o emaranhado político e ideológico existente durante o Estado Novo brasileiro. Não explica especialmente as contradições decorrentes de uma interpretação generalista e simplificadora. Dever básico do historiador de ofício é não interpretar o passado (e seus personagens) com os olhos e valores do presente sob vários riscos. É impreciso classificar um determinado personagem ou ato como antissemita com base em expressões contidas em um único documento escrito na época não levando em conta o contexto em que foi produzido e uma análise mais aprofundada. Por exemplo, na época em que ajudava a cineasta Sandra Kogut na elaboração do filme “Um Passaporte Húngaro”, estivemos juntos no Arquivo do Itamaraty para pesquisar a respeito de um determinado cônsul de Budapeste. Os primeiros documentos localizados, dirigidos ao então chefe da divisão de passaportes – um notório antissemita – davam a impressão de que o cônsul seria ele mesmo um judeófobo. Entretanto, desconfiado do tom dos textos, decidi investigar um pouco mais. Resolvi então ler os comentários dele a respeito das instruções recebidas em meados de 1937 restringindo a emissão de vistos a judeus. A reação do cônsul supostamente antissemita foi bastante enfática e o tom de protesto era nítido. Fez duras críticas às medidas. Esse é apenas um exemplo. Existiam antissemitas no governo estadonovista. Mas isso não significa dizer que os principais elaboradores da política imigratória e os responsáveis pela execução da mesma desempenhassem suas tarefas tendo como mote único e motivação central o antissemitismo. A intolerância e o preconceito do Estado Novo não eram exclusivamente dirigidos aos judeus. A explicação mais precisa, em minha opinião, para compreender as restrições que foram impostas à concessão de vistos para judeus durante o Estado Novo está na aplicação de uma política imigratória eugenista. Não o eugenismo norte-americano ou europeu, mas um eugenismo à brasileira. Dentro dessa política, vários grupos humanos foram considerados indesejáveis e dessa maneira foram impedidos de imigrar para o Brasil. A grande tragédia dessas restrições estava no fato dos judeus naquele momento estarem sob perseguição nazista e consequente risco.

Bruno Leal: Ao mesmo tempo em que obras como “Quixote nas Trevas” recuperam uma importante memória da luta contra as arbitrariedades do Nazismo, cresce nos Estados Unidos e na Europa movimentos “negacionistas”, isto é, escritores que negam a existência do Holocausto. Como isso é possível hoje? Devemos nos preocupar com essas ideias?

Fábio Koifman: As ideias de todas as épocas não estão imunes a motivações ideológicas de diferentes naturezas. Não se espera de um racista intolerante que possua honestidade intelectual ou preocupação em estudar a História de maneira aprofundada e séria. Certa vez, vi perto de minha casa um sujeito andando com dois pit bulls soltos, sem coleiras ou focinheiras. Então resolvi ir conversar com o camarada, de maneira amistosa, tentando fazê-lo ver que a sua atitude colocava em risco outras pessoas. A reação dele imediata foi a de me ameaçar. O que se poderia esperar de um dono de pit bulls que conduz seus animais dessa forma? Que fosse uma pessoa razoável e de bom senso? Na época dos nazistas, eles previram que ninguém iria acreditar que o Holocausto ocorreu ou todos se esqueceriam rapidamente. Citaram o caso do genocídio dos armênios. Eu não sou especialista no assunto Holocausto, tampouco estudo os chamados “negacionistas”. A minha impressão é de que atualmente basicamente esses se dividem em dois grandes grupos. Um grupo formado por judeófobos que formam a tradição de uma continuidade do ódio que já existia antes do nazismo e os judeófobos que negam o Holocausto por aderirem à ideia de que o Estado de Israel seria uma decorrência do Holocausto. Muitas vezes formulo a seguinte pergunta: “Você odeia os judeus porque odeia o Estado de Israel ou odeia o Estado de Israel porque odeia os judeus?” Minha impressão é a de que tentar explicar porque nazistas, judeófobos e similares negam o Holocausto é inútil. A explicações talvez possam estar no terreno da psicologia. Como disse Sartre, a pergunta deveria ser dirigida aos que odeiam, aos antissemitas. Eles é que podem explicar a razão de aderirem a falácias e mentiras para sustentar que um fenômeno histórico não existiu. Uma conhecida minha ao escutar tal coisa, sempre pergunta: “não existiu? Então onde estão os meus avôs, tios e primos?”. Essa mesma pergunta pode ser formulada ainda por muita gente. Embora boa parte das vítimas não tenha deixado parentes próximos em razão da totalidade da família ter desaparecido por completo. Aos que consideram que o Estado de Israel é decorrência do Holocausto, esses aderem à propaganda muito praticada pelos inimigos de Israel na busca pela deslegitimação do Estado judeu. A lógica é a de que retirando o Holocausto da História deixa de existir a justificativa da existência de Israel. Trata-se de retórica e falácia proposta por gente que, além de não conhecer História, não tem compromisso com a ciência ou com a honestidade intelectual, ou com os direitos humanos. Não por acaso, os regimes que vinculam essas afirmações como propaganda em televisões estatais, livros, rádio etc., são compostos em sua totalidade por Estados autoritários violentos, eles mesmos protagonistas de barbáries contra a população civil. A adesão à negação do Holocausto por pessoas que se apresentam como acadêmicos obedece quase que sempre a um profundo ódio ao Estado de Israel ou aos judeus ou a ambos. Independentemente de simpatizar ou não com a política do Estado de Israel, esse seria criado com ou sem Holocausto e, embora esse esteja nos discursos políticos de diferentes correntes e lados. O uso político do Holocausto seja pelo sionismo ou pelo negacionismo em nada muda o fato histórico. A maioria das cerca de 6 milhões de vítimas não eram sionistas. Não são todos os israelenses descendentes diretos (como alguns equivocadamente insistem em dizer) das vítimas do Holocausto, até mesmo porque a grande maioria das vítimas não deixou descendência (entre outros aspectos, um quarto dos mortos eram crianças). A preocupação nossa deve ser seguir trabalhando e pesquisando de maneira honesta e correta. Pessoalmente, ignoro solenemente os racistas, os intolerantes, os ignorantes e aqueles que propagam o ódio quando eles se apresentam como supostos intelectuais ou acadêmicos. Se determinados limites forem ultrapassados, temos já no Brasil uma legislação eficiente contra esse tipo de gente e conduta.

Bruno Leal: Sua tese de doutorado fala sobre o Ministério da Justiça e Negócios Interiores (MJNI) entre 1941 e 1945. O que o senhor quis responder nesta tese?

Fábio Koifman: A tese é um dos muitos temas que encontrei na pesquisa do mestrado, mas sob o risco de produzir uma enorme digressão, foram deixados para depois. Trata de responder justamente qual era a política imigratória durante o Estado Novo, quem a elaborou, quem a executou e como a executou. O nome da tese é “Porteiros do Brasil” e eu trato do “Serviço de Vistos” do MJNI, um órgão que até a minha tese ficou absolutamente desconhecido do público e da historiografia. A tese será publicada em livro pela Editora Civilização Brasileira no início de 2012.

Bruno Leal: Professor, vem acontecendo nos últimos meses um grande debate sobre o acesso aos arquivos brasileiros. Na sua opinião, o pesquisador hoje encontra muitas dificuldades para realizar suas pesquisas? Como o senhor avalia, no geral, a legislação arquivística no Brasil, hoje?

Fábio Koifman: Pessoalmente eu nunca tive problema em arquivo público. Sempre contei com enorme, gigantesca boa vontade dos funcionários públicos. Nos livros que já publiquei faço questão de listá-los e agradecer a todos. Creio que a maioria dos pesquisadores encontra ótima acolhida e ajuda por parte dos funcionários. Pesquisadores que realmente encaram os ácaros e a poeira dos acervos. Entretanto, algumas pessoas têm por prática, ao se deparar com limites legais de acesso, buscar “pistolões” para obrigar os funcionários de arquivo a realizar ações para as quais a lei os impede. Contrariados pelas regras, atacam publicamente as instituições e seus funcionários. Curiosamente, em textos publicados na mídia, citam de maneira clara que realizaram a tal prática de falar com “fulano manda-chuva”. Ora, o que é preciso fazer não é reclamar do arquivo ou de seus funcionários, mas do legislador. As limitações legais não são criações dos arquivos. Um aspecto que a legislação atual também é absoluta e absurdamente errada é a que diz respeito à limitação ou restrição de realização livros biográficos. O caso mais impressionante foi do cantor Roberto Carlos. O pesquisador utilizou-se tão somente de material publicado na mídia e de fontes antes já publicadas. Mesmo assim, a justiça mandou recolher o livro, sendo que no dia do julgamento, causa ganha ao cantor, o juiz do caso solicitou que tirassem uma foto dele ao lado de Roberto Carlos. Esse foi o caso mais famoso, mas existiram outros. Esse tipo de restrição é bastante prejudicial ao historiador. Penso que os direitos dos personagens e herdeiros devam, claro, ser resguardados. Existindo calúnia ou difamação e inexistindo provas do que foi afirmado, o autor responde.

Bruno Leal: Professor Fábio Koifman, muito obrigado pela entrevista concedida ao Café História. Os leitores de nossa rede certamente vão apreciar bastante esse bate-papo. Para finalizar, gostaríamos de saber: o que o senhor anda pesquisando ou gostaria de pesquisar no futuro?

Fábio Koifman: No momento estou terminando de escrever um livro a respeito da atuação de alguns consulados do Brasil na Europa durante a II Guerra Mundial. Em especial, o consulado do Brasil na cidade francesa de Marselha.


Fabio Koifman possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), graduação em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1988), Mestrado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2001) e Doutorado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2007). Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), onde leciona nas Graduações dos cursos de História e de Relações Internacionais. Atua e pesquisa nas áreas de História Contemporânea, História das Relações Internacionais, História do Brasil Contemporâneo e História da Política Externa Brasileira.

Ana Paula Tavares

Subeditora do Café História. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC/FGV) , bolsista CNPq. Possui graduação em Comunicação Social – habilitação jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2006). É formada em teatro pela Casa de Artes de Laranjeiras – CAL (2010). Estuda História Intelectual, Imprensa, Mediação Cultural na trajetória da jornalista Yvonne Jean.

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