O perigo do movimento antivacinas e o que a história tem a dizer sobre a vacinação

Relutância em se vacinar cresce no Brasil, país que é referência mundial em imunização. História da Saúde e da ciência mostra importância da vacinação para erradicação e controle de doenças perigosas.
28 de setembro de 2020
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Pistola de pressão para aplicação da vacina substituiu métodos anteriores, permitindo vacinar um maior número de pessoas em curto espaço de tempo. Foto: Claudio Amaral, Acervo COC/Fiocruz.
Pistola de pressão para aplicação da vacina substituiu métodos anteriores, permitindo vacinar um maior número de pessoas em curto espaço de tempo. Foto: Claudio Amaral, Acervo COC/Fiocruz.

“Hesitação vacinal”. Quem nunca ouviu falar na expressão talvez não imagine que essa questão vem se tornando objeto de investigação em saúde pública e epidemiologia. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o termo significa relutância ou recusa em se vacinar, apesar da disponibilidade da vacina[1]. É algo tão relevante que ameaça reverter o progresso mundial feito no combate às doenças evitáveis por imunização, razão pela qual, no Brasil, desperta a preocupação de gestores e pesquisadores.

Em plano estratégico para o quinquênio 2019-2023 publicado no ano passado, a OMS listou a hesitação vacinal como um dos dez maiores riscos à saúde, ao lado questões como poluição do ar e mudanças climáticas, ebola, dengue e HIV. Se a vacinação, segundo a própria OMS, previne atualmente cerca de 2 a 3 milhões de mortes por ano no mundo, por que cresce a hesitação em tomar vacinas? Com a emergência sanitária causada pela Covid-19, como se comportará a população quando surgir um imunizante contra o novo coronavírus? Os grupos antivacinas irão desestimular a adesão à vacina? O que a história da ciência e da saúde tem a nos dizer sobre a importância das vacinas>

Vítimas do próprio sucesso

Os motivos da recusa, ou hesitação à vacina, são complexos. Há diversos fatores socioculturais, políticos e pessoais que podem impactar a cobertura vacinal (percentual de pessoas que está vacinada) de um grupo dado social: dúvidas sobre a real necessidade das vacinas e sobre a segurança de sua produção e eficácia; medo de reações e efeitos adversos; experiências anteriores negativas; desconfiança sobre os interesses de indústrias produtoras e governos; especulações sobre guerras biológicas e mesmo questões filosóficas e religiosas podem impactar a vacinação.

As vacinas são também vítimas de seu próprio sucesso. “Médicos formados há mais de 20, 30 anos, mal viram ou cuidaram de pacientes com poliomielite, difteria e meningite causada por Haemophilus influenzae. Os formados há menos de 40 anos não viram casos de varíola. A falta de memória sobre essas doenças, sua gravidade e sequelas torna menos evidente a necessidade de preveni-las”, avaliam pesquisadores em artigo publicado no jornal da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

Campanhas e programas de imunização bem-sucedidos, como o Programa Nacional de Imunizações do Brasil (PNI), referência mundial, contribuíram para a completa erradicação ou o controle de inúmeras doenças. Atualmente, o calendário de rotina do PNI garante acesso universal e gratuito a 44 imunobiológicos para todas as faixas etárias, incluindo 19 vacinas, em aproximadamente 34 mil salas de vacinação.

Apesar do sucesso do PNI, criado em 1973 após o término da exitosa campanha nacional de erradicação da varíola, iniciada em 1962, tem se observado a redução do percentual de cobertura vacinal no país. Dados recentes do Programa mostram que a cobertura vacinal está em 51,6% para as imunizações infantis. O ideal seria que esse índice ficasse em 95%, no caso de proteção contra doenças como sarampo, e de 90% a 95% para coqueluche, meningite e poliomielite. “A probabilidade de uma criança nascida hoje ser totalmente vacinada com todas as vacinas recomendadas mundialmente até os cinco anos de idade é inferior a 20%”, alertam a OMS e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).

No Brasil, ainda há poucas pesquisas sobre a crescente recusa ou hesitação da população em tomar as vacinas disponíveis gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo aponta o estudo “Recusa vacinal, o que é preciso saber”, algum movimento nesse sentido foi realizado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM). Em junho de 2017, estas instituições lançaram um alerta a médicos e outros profissionais de saúde sobre a importância de neutralizar o movimento antivacinas.

No artigo “Confiança nas vacinas e hesitação em vacinar no Brasil”, publicado nos Cadernos de Saúde Pública da Fiocruz, os pesquisadores concluíram que, apesar dos benefícios globais da imunização, a hesitação em vacinar é uma tendência crescente que tem sido associada ao ressurgimento das doenças imunopreveníveis (evitáveis por vacinas), como sarampo e poliomielite. De acordo com a pesquisa, níveis mais baixos de confiança nas vacinas estavam associados a níveis mais altos de hesitação. Em outras palavras, quanto menor a confiança nas vacinas por inúmeros motivos[2], maior a hesitação, o que leva menos pessoas a se vacinar ou levar seus filhos para tomarem as vacinas.

O perigo do movimento antivacinas e o que a história tem a dizer sobre a vacinação 1
Em 1970, no lançamento da campanha de combate à varíola em Natal, no Rio Grande do Norte, faixas convocam a população a se vacinar contra a doença. Foto: Acervo COC/Fiocruz.

No Brasil, segundo esse mesmo estudo, a crise política e econômica que culminou no impeachment do governo em 2016 coincidiu com o aumento das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti, como dengue e zika. Isso se deve, acredita-se, porque a eliminação de criadouros de mosquitos como medida preventiva é um esforço colaborativo entre governo e sociedade civil. Nesse período, a resposta à epidemia de zika e dengue foi prejudicada pelo baixo nível de confiança da população no governo. “Mas sem investigação científica apropriada, tais observações podem permanecer no nível da especulação”, alertam os pesquisadores.

Campanhas e políticas bem-sucedidas

O Brasil já deu mostras de campanhas de vacinação bem elaboradas e contundentes que conquistaram a população e a levaram em massa aos postos de vacinação. “Campanhas, varreduras, rotina e bloqueios erradicaram a febre amarela urbana em 1942, a varíola em 1973 e a poliomielite em 1989; controlaram o sarampo, o tétano neonatal, as formas graves da tuberculose, a difteria, o tétano acidental, a coqueluche. Medidas para o controle de doenças como rubéola, síndrome da rubéola congênita, hepatite B, influenza e suas complicações nos idosos, infecções pneumocócicas e infecções pelo Haemophilus influenzae tipo B foram implementadas”, lembram os organizadores do documento publicado em 2003 em comemoração aos 30 anos do PNI.

A estratégia campanhista e de promulgação de leis para o controle de doenças de massa marca até hoje o desenvolvimento das políticas públicas no campo da saúde. A lei 5026, de 1966, denominada Lei Orgânica das Campanhas Sanitárias, foi instituída para coordenar nacionalmente atividades públicas e particulares de prevenção e combate a doenças de alcance coletivo.

Um marco nessa trajetória foi o sucesso da Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), que deu ao Brasil a certificação de país livre da doença, concedida pela OMS em 1973. Em 1975, a lei 6259, que estabeleceu a regulamentação do PNI e organizou as ações de vigilância epidemiológica, tornava obrigatória a vacinação básica no primeiro ano de vida, sujeitava os pais infratores à suspensão do pagamento do salário-família e instituía a notificação compulsória de um conjunto de doenças.

Em 1974, uma epidemia de meningite meningocócica, com foco principal em São Paulo, levou o governo – que, em um primeiro momento, tentou abafar a dimensão do problema – a aprovar o Programa Nacional de Combate à Meningite. Na mesma época, o Plano Nacional de Controle da Poliomielite (1971-1973) estabeleceu a vacinação em massa da população infantil.

Um novo plano de ação para o período de 1980 a 1984 criou dois dias nacionais de vacinação contra a poliomielite em massa. A estratégia incluiu a oferta da vacina oral a cada ano, com aplicação em um único dia. O objetivo era alcançar alta cobertura vacinal em todas as regiões brasileiras. “Os dias nacionais de vacinação foram capazes de mobilizar grandes segmentos da sociedade e alcançaram êxito excepcional”, destacam os pesquisadores em artigo sobre a erradicação da doença no Brasil.

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Considerado como santo por muitos nordestinos, Frei Damião participa de campanha de vacinação contra a varíola na Paraíba em 1960. Foto: COC/Fiocruz.

Em 1988, a Constituição Federal brasileira estabeleceu a saúde (e a imunização) como direito de todos e dever do Estado. Alguns anos mais tarde, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) instituiu a obrigatoriedade da vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. O Bolsa Família, garantido por lei a partir de 2014 (Lei 10.836/04), passou a ser concedido a famílias beneficiárias mediante a vacinação obrigatória das crianças de zero a seis anos (a concessão ainda exige exames pré-natal, acompanhamento nutricional e de saúde e frequência escolar mínima de 85%). Projetos de lei em discussão preveem a extensão da obrigatoriedade da vacinação a maiores de seis anos e adolescentes.

Os dias nacionais de vacinação e a experiência acumulada, principalmente, com as campanhas de controle da meningite e da poliomielite, com uso do rádio e da televisão como instrumentos de informação e mobilização, marcam a estruturação de uma vertente importante no campo da informação em saúde que se mantém até hoje. “Estes instrumentos, dado seu caráter pedagógico, foram fundamentais para a estruturação de uma consciência sanitária específica, fortalecendo a visão da vacina como um bem público, de caráter universal e equânime”.

Mas o esforço coletivo dos profissionais de saúde pela vacinação depara-se com obstáculos que vêm de décadas. A resistência à vacinação é tão antiga quanto a própria vacina e pode ser desencadeada por diversos interesses. Manifestações nesse sentido são verificadas em fontes de arquivo e livros de história, muito antes do surgimento de grupos que propagam notícias fraudulentas ou falsas valendo-se das ferramentas tecnológicas atuais.

No século XX, foram inúmeros os desafios enfrentados pelo Estado brasileiro para mobilizar a população e fomentar a adesão à vacinação. Em artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos, os pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz Carlos Fidelis Ponte e Ângela Pôrto analisaram fotografias, caricaturas e charges sobre a Revolta da Vacina e as campanhas que culminaram na erradicação da varíola e da poliomielite. No texto eles apontam, a partir da análise de fontes documentais sob a guarda do Departamento de Arquivo e Documentação da COC/Fiocruz, ações decisivas para a eliminação de doenças que, hoje, infelizmente, voltam a assombrar a população.

Arquivos do Departamento de Arquivo e Documentação (DAD) da Fiocruz sobre vacinas e campanhas de vacinação:

Claudio do Amaral Júnior (1934-2019)

Herman G. Schatzmayr (1936-2010)

Fundação Serviço de Saúde Pública (FSESP)

Projeto” História da poliomielite e de sua erradicação no Brasil”

Projeto “Vacina antivariólica: história e memória da erradicação da varíola” 

Notas

[1] Em 2012, a OMS compôs um grupo de especialistas, o Strategic Advisory Group of Experts Working Group on Vaccine Hesitancy (SAGE-WG), para definir a hesitação vacinal, entender sua magnitude e os fatores que a influenciam e reunir sistematicamente evidências de intervenções em saúde pública. Ver mais em SATO, 2018.

[2] (1) não achava que a vacina era segura; (2) não considerou a vacina eficaz; (3) teve má experiência ou reação com vacinação anterior; (4) outra pessoa me disse que seu filho teve um problema/reação; e (5) outra pessoa me disse que a vacina não era segura. BROWN et al., 2018.

Referências

BROWN, Amy Louise et al. “Confiança nas vacinas e hesitação em vacinar no Brasil”.Cad. Saúde Pública [online]. 2018, vol.34, n.9, e00011618.  Epub 21-Set-2018. ISSN 1678-4464.  http://dx.doi.org/10.1590/0102-311×00011618.

FERREIRA, Vinicius Leati de Rossi et al . “Avaliação de coberturas vacinais de crianças em uma cidade de médio porte (Brasil) utilizando registro informatizado de imunização”. Cad. Saúde Pública,  Rio de Janeiro ,  v. 34, n. 9,  e00184317,    2018 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2018000905002&lng=pt&nrm=iso.

PORTO, A. e PONTE, C. F.. “Vacinas e campanhas: imagens de uma história a ser contada”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 10 (suplemento 2): 725-42, 2003.

SATO, Ana Paula Sayuri. “Qual a importância da hesitação vacinal na queda das coberturas vacinais no Brasil?”. Rev. Saúde Pública,  São Paulo ,  v. 52,  96,    2018. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102018000100601&lng=en&nrm=iso

SCHATZMAYR, H. G.; FILIPPIS, A. M. B. de; FRIEDRICH, F. e LEAL, M. da L. F.: “Eradication of poliomyelitis in Brazil: the contribution of Fundação Oswaldo Cruz”. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol. 9(1): 11-24, Jan.-Apr. 2002.

SUCCI, Regina Célia de Menezes. “Vaccine refusal – what we need to know”. J Pediatria (Rio J). 2018; 94:574-81.

TEMPORÃO, J. G. O Programa Nacional de Imunizações (PNI): origens e desenvolvimento. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, vol. 10 (suplemento 2): 601-17, 2003.

Como citar este artigo

D’AVILA, Cristiane O perigo do movimento antivacinas e o que a história tem a dizer sobre a vacinação (Artigo). In: Café História. Publicado em 28 set de 2020. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/movimento-antivacina-historia-das-vacinas-no-brasil/. ISSN: 2674-59.

Cristiane d’Avila

Jornalista, doutora em Letras pela PUC-Rio, Tecnologista em Saúde Pública da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), onde atua no Departamento de Arquivo e Documentação. Mestre em Comunicação Social e Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-Rio. É organizadora do livro “Cartas de João do Rio a João de Barros e Carlos Malheiro Dias”, publicado pela Funarte em 2013, e autora do livro “João do Rio a caminho da Atlântida”, publicado em 2015 com apoio da Faperj. Colabora mensalmente com o Café História com textos sobre História das Ciências e da Saúde.

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