História e Humanidades Digitais: conexões para um novo tempo

17 de julho de 2017
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Uma entrevista com o historiador Daniel Alves, professor do Departamento de História da Universidade Nova de Lisboa.

Entrevista por Bruno Leal

Nos últimos anos, as Humanidades (a História incluída) se transformaram bastante em função do rápido desenvolvimento das mídias digitais. Atualmente, baixamos artigos acadêmicos em revistas digitais; consultamos bancos de teses online; pesquisamos em acervos digitalizados e ensinamos por meio de plataformas eletrônicas; transcrevemos entrevistas, produzimos mapas, criamos complexos bancos de dados e organizamos nossas referências bibliográficas com a ajuda de softwares; alguns historiadores, sociólogos e geógrafos dominam diferentes linguagens de programação e veem isso como parte inseparável de seu escopo de trabalho. Tudo isso levou a se falar em Humanidades Digitais – ou ainda, no campo específico da História, em História Digital. Mas o que exatamente isso quer dizer? Estamos diante de um novo campo de estudos ou o que vemos é o surgimento de novas ferramentas de análise? Basta um historiador utilizar uma mídia digital para ser considerado um historiador digital?

Daniel Alves - Universidade Nova de Lisboa
O historiador Daniel Alves em seu escritório. Foto: acervo pessoal do entrevistado.

Todas essas questões – e algumas outras – aparecem nesta entrevista que o Café História fez com o historiador Daniel Ribeiro Alves, professor auxiliar do Departamento de História da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal. Alves é hoje um dos principais nomes das Humanidades Digitais em língua portuguesa. É membro do Network for Digital Methods in the Arts and Humanities e da European Association for Digital Humanities. Escreveu diversos artigos sobre o assunto, participou de vários projetos envolvendo recursos digitais e é um dos fundadores da Associação das Humanidades Digitais (AHDig), que tem feito do português a segunda língua dos debates sobre as Humanidades Digitais, logo depois do inglês. Confira, abaixo, como foi nossa conversa!

Bruno Leal – Professor Daniel Alves, muito obrigado por conceder esta entrevista ao Café História. Tenho acompanhado com muito interesse o importante trabalho que você vem desenvolvendo nos últimos anos no campo das “Humanidades Digitais”. Para iniciar nossa conversa, começo com a seguinte questão: o que são as chamadas “Humanidades Digitais”? Elas se referem a um campo, a uma abordagem, a uma metodologia ou a uma perspectiva? Tudo isso ou nada disso?

Daniel Alves – Esta é, desde 2004, a pergunta para “um milhão de dólares”! Quero com isto dizer que desde o lançamento do “Companion to Digital Humanities” tem sido muito comum o debate sobre o que são as Humanidades Digitais e mais ainda as tentativas para as definir. Muito deste esforço está relacionado com a tentativa de institucionalizar e dar maior visibilidade às Humanidades Digitais dentro da academia e há quem defenda que elas podem e devem ser uma disciplina por direito próprio. Obviamente, esta perspectiva traz consigo uma forte tensão dentro da própria academia, com os que são das Humanidades “Tradicionais” a sentirem que isto pode ser uma ameaça. Eu considero que as Humanidades Digitais não são, e se calhar não têm de ser, uma disciplina académica, mas também são mais do que uma mera metodologia! Talvez a definição de abordagem metodológica, de perspectiva metodológica ou mesmo de comunidade de práticas, como defendi em artigo recente, seja mais interessante. As Humanidades Digitais podem ser mais do que uma ferramenta, podem ser um catalisador para potenciar aspectos que, quer se goste quer não, não estão amplamente difundidos e desenvolvidos nas Humanidades, ou não o estão suficientemente, e que julgo que deveriam estar. O diálogo com outras áreas do saber, a interdisciplinaridade, o trabalho colaborativo, uma relação mais aberta entre a academia e a comunidade em geral, ou até uma maior predisposição para a inovação.

É claro que existe todo o outro lado da questão e, em parte, esta indefinição sobre o que são as Humanidades Digitais tem contribuído para que, por vezes, se chame a atenção para aspectos menos positivos (e, em parte, com alguma razão, diga-se!): a excessiva fragmentação temática de algumas das tendências de investigação das Humanidades Digitais ou uma constante experimentação de novas ferramentas, sem que daí surjam avanços significativos na produção de conhecimento. Apesar de tudo, eu julgo que pensar as Humanidades hoje em dia, sem pensar no seu lado digital, sem levar em conta o impacto crescente da Era Digital e Global em que vivemos, sem estar atento às transformações que podem advir, para a academia, para a ciência, de um quotidiano cada vez mais digitalmente imersivo é um erro de cálculo. E se pensarmos deste modo, talvez se possa pensar as Humanidades Digitais como uma parte natural do que hoje são as Humanidades, destacando mais o que as Humanidades Digitais permitem fazer, potenciam, em vez do que são, de como se definem. Deixo aqui duas referências que nos últimos tempos me inspiraram neste sentido: Ryan Cordell. “How Not to Teach Digital Humanities”. In Debates in the Digital Humanities, 2016; Sarah Catherine Stanley. “Why Is Digital Humanities?” Sarah Catherine Stanley, 2017.

Bruno Leal – No Brasil, falamos muito em “História Pública” e “História Digital”. Mas o termo “Humanidades Digitais” ainda é pouco utilizado aqui.1 Qual é o cenário em Portugal?

Daniel Alves – Três estudos relativamente recentes e alguns dados muito superficiais que recolhi num texto de 2016 apontam para uma escassa utilização do termo Humanidades Digitais no meio académico português (Estudo 1, Estudo 2 e Estudo 3). Mesmo os termos “História Digital” e “História Pública” não são muito comuns. Mas isto pode ser enganador, pois o facto de os investigadores não usarem estas designações não quer dizer que não “pratiquem” as mesmas. Obviamente, não estamos a falar aqui de um efeito iceberg! (Só uma minoria usaria as expressões, mas a larga maioria praticaria as Humanidades Digitais mesmo sem apelidar o seu trabalhar como tal!) Não é isso. Mas há uma parte do iceberg que efectivamente fica escondida. Pela experiência que tenho no Departamento de História da FCSH e dos vários centros de investigação em História da Faculdade, a maioria dos meus colegas não desenvolve investigação ou ensino com uma componente digital significativa que possa ser classificada de Humanidades Digitais ou História Digital. Contudo, existem também outros que recorrem a fontes digitais ou digitalizadas, criam arquivos digitais, usam metodologias digitais e que não consideram que aquilo que fazem é Humanidades Digitais! E será que têm de considerar? O que quero dizer é que neste caso, como se calhar em muitos outros, a prática precede em muito e por muito a teorização, a incorporação de um discurso legitimador ou diferenciador. Antes mesmo de 2004, antes de se tornar moda a designação Humanidades Digitais, muitos deles (de nós) sentiam que estavam a fazer algo diferente do mainstream das Humanidades. Talvez o caminho a seguir seja passar a defender que aquilo que fazemos está incorporado nas Humanidades e será cada vez mais necessário à afirmação das mesmas na academia e na comunidade em geral. Tenho a noção que este talvez não seja um discurso muito motivador, mas também tenho a percepção que mesmo aqueles que até há pouco tempo nem queriam ouvir falar de “digital” agora vão procurando quem está do lado de cá da barricada para saber como funciona uma base de dados, como fazer “uns mapas”, como criar um website, etc. E isso é animador!

Bruno Leal –  Seu doutorado foi feito na área de História Econômica e Social e sua especialidade é o século XIX. Em que medida suas pesquisas e projetos em “Humanidades Digitais” têm lhe ajudado como professor e pesquisador do século XIX?

Daniel Alves – Posso começar por dizer que em grande medida devo a minha carreira académica actual ao facto de cedo ter começado a incorporar uma perspectiva tecnológica, computacional, como se dizia na década de 1990, nas minhas investigações. Foi a capacidade de aplicar a informática à investigação histórica, que procurei demonstrar com a minha dissertação de mestrado, que me permitiu ser convidado para dar aulas na FCSH quando a licenciatura em História foi reformulada em 2002. Na altura surgiram duas vagas, em Métodos Quantitativos e em Informática Aplicada à História (IAH; cadeira nova criada na altura) e poucos eram os candidatos com um perfil que se pudesse encaixar nesta nova exigência curricular. O uso do digital na cadeira de IAH é óbvio, mas para além de me obrigar a estar constantemente actualizado, por vezes num ritmo quase mensal, sobre novos métodos e novas ferramentas, também me estimulou a procurar incorporar novas abordagens nas aulas mais tradicionais, como História Contemporânea ou História dos Estados Unidos da América, que também lecciono. Sempre que possível a web é um recurso usado, a cartografia interactiva é quase sempre explorada, o uso do Zotero para a gestão de notas e bibliografias dos trabalhos dos alunos é obrigatório e até o Google Earth já foi usado em aulas de História das Revoluções Contemporâneas (cadeira de mestrado que também asseguro). Na área específica da História Urbana e da História Social do século XIX, duas das minhas áreas de investigação, seriam muito difíceis algumas perspectivas de análise, algum do conhecimento que consegui sobre Lisboa no final do século XIX sem uma boa base de dados que me possibilitasse uma prosopografia eficaz do grupo social que estudei ou sem o recurso aos sistemas de informação geográfica que me permitiram reconstituir o espaço da cidade nessa época e analisar a distribuição geográfica do comércio, por exemplo. Mas ainda outras vertentes podem ser mencionadas, pois as redes sociais têm sido uma montra para o meu trabalho, uma ferramenta de criação de redes e de colaborações efectivas, bem como um repositório de informação bibliográfica, arquivística e metodológica sobre o “meu” século XIX que era inimaginável poucos anos atrás.

Bruno Leal – Você é um dos fundadores da Associação das Humanidades Digitais (AHDig). Você pode falar um pouco mais sobre essa associação, principalmente sobre seus objetivos?

Daniel Alves – A AHDig nasceu em 2013 fruto do empenho de um conjunto de colegas brasileiros e portugueses onde se destacava Maria Clara Paixão de Sousa, da Universidade de São Paulo. Julgo que não estarei a ofender nenhum dos outros colegas se disser que a Maria Clara foi a alma do projecto no seu início. Eu faço parte da comissão fundadora e actualmente tenho estado a procurar dinamizar a associação no sentido da sua formalização ou institucionalização como verdadeira associação. Neste momento a AHDig funciona essencialmente como uma rede de contactos e de divulgação de iniciativas na área das Humanidades Digitais em português. Tem crescido de forma sustentada nestes anos, somos já quase 140 participantes, mas precisa dar o salto que lhe permita ter meios de actuar como dinamizadora das Humanidades Digitais, de projectos, iniciativas e actividades, que lhe permita ser uma forma de integração de jovens investigadores, por exemplo, entre outras valências, que uma associação voluntária e voluntarista de investigadores não permite desenvolver. A AHDig teve um grande impulso em São Paulo em 2013, voltou a crescer novamente em 2015, quando organizámos o Congresso de Humanidades Digitais em Portugal e espero que uma nova iniciativa que se está a preparar para o Rio de Janeiro em 2018 possa ser finalmente a rampa de lançamento que a associação precisa. Até porque o papel de uma associação deste tipo, num mundo onde a língua inglesa é quase hegemónica nas Humanidades Digitais, é fundamental para dar visibilidade ao trabalho que todos nós desenvolvemos em português ou sobre objectos de estudo do mundo que fala português.

Bruno Leal – Nas décadas de 1970 e 1980, muitos historiadores se entusiasmaram com a chegada dos computadores pessoais. A capacidade de processamento dessas novas máquinas, seu preço acessível e suas interfaces gráficas (muito mais simpáticas aos usuários “não iniciados”) se tornaram “ferramentas” fantásticas para se elaborar gráficos, editar textos e cruzar grandes séries de dados. Atualmente, com as novas mídias digitais e a internet, a tecnologia continua sendo uma ferramenta importante para o historiador. No entanto, parece que hoje, diferentemente do que aconteceu no passado, as tecnologias não são apenas ferramentas. Elas parecem ter um impacto muito além, como por exemplo, na própria maneira de se pensar a escrita da História. Você concorda? Que impactos das novas tecnologias você percebe ou espera na área de História?

[perfectpullquote align=”right” cite=”” link=”” color=”” class=”” size=”18″]A escrita da História também tem sofrido algum impacto, não porque a maioria dos historiadores estejam já a escrever de forma diferente, mas porque a narrativa, em termos gerais, está a mudar pelas alterações de paradigma em termos de publicação e divulgação culturais impostas pelos media digitais.[/perfectpullquote]

Daniel Alves – Concordo em parte, pois considero que apesar dos avanços dos últimos anos ainda há um caminho a percorrer. Em 2014 escrevi algo sobre isso e julgo que não foram muitas as mudanças desde essa altura. Talvez o desafio mais significativo seja o da superabundância de dados, que levará necessariamente a alterações na forma como o historiador constrói a sua visão do passado. Habituado à escassez de informação, a dados lacunares e dispersos, o problema daqui para a frente poderá ser o da selecção e avaliação da pertinência de um grande volume de dados. E isso implicará uma crítica face ao digital, quer a fonte, quer a ferramenta. Acho que neste ponto se tem caminhado um pouco. Nos anos 70, 80 e mesmo 90 o historiador recorria ao engenheiro informático para criar a ferramenta necessária e muitas vezes não dominava o funcionamento da mesma ou mesmo o aparato crítico por trás da sua criação. A tecnologia é feita pelos homens, logo não é neutra e esse processo escapava à maioria dos historiadores. A aposta nas Humanidades Digitais, na necessidade do futuro historiador também ter de saber alguma coisa de código, de computação, e pensar criticamente sobre isso, tende a mudar aos poucos essa relação. A escrita da História também tem sofrido algum impacto, não porque a maioria dos historiadores estejam já a escrever de forma diferente, mas porque a narrativa, em termos gerais, está a mudar pelas alterações de paradigma em termos de publicação e divulgação culturais impostas pelos media digitais. As mudanças não são apenas relativas ao meio de publicação, à passagem do impresso para o digital, mas têm implicações em termos culturais e sociais, na medida em que os novos meios têm impacto em aspectos centrais no edifício académico, como os direitos de autor, a autoridade científica e a fiabilidade da informação. Contudo, talvez as áreas onde me parece que as Humanidades Digitais têm tido mais visibilidade na História é num reforço da interdisciplinaridade e no trabalho colaborativo. Os historiadores mais comprometidos com as Humanidades Digitais cada vez menos publicam de forma isolada e colaboram em projectos de investigação cada vez mais multidisciplinares. É pelo menos a percepção que eu tenho. Posso estar errado e ser apenas um desejo para o futuro!

Bruno Leal – Em 2008, o “Journal of American History” promoveu um debate (depois publicado em forma de artigo) sobre História Digital envolvendo diversos pesquisadores que refletem sobre este “campo”. Um deles foi o professor Michael Frisch, referência em História Oral. Neste debate, Frisch, que disse não se considerar um “historiador digital”, afirmou: “Sou cético quanto ao valor duradouro do termo “história digital” – ele acabará tendo significado demais ou significando muito pouco e muito em breve será tão inescapável (em vinte anos, será que alguém vai fazer um trabalho profissional na história sem envolver isso de que estamos falando?)”.2 Você concorda com este diagnóstico/prognóstico?

Daniel Alves – Totalmente! Aliás, acho que parte do que fui afirmando acima vai precisamente nesse sentido. Um dos organizadores desse volume, Dan Cohen, tinha lançado apenas três anos antes um livro, hoje clássico, precisamente intitulado “Doing Digital History”. Em 2008 o termo começava já a ser posto em causa, por ser limitativo ou por não abarcar toda a riqueza do que se podia conseguir pela intercepção entre o digital e a investigação em História. O termo História Digital foi em grande medida ultrapassado ou confundido com as Humanidades Digitais (em 2014 houve ainda algum debate sobre isso), mas, ao mesmo tempo, hoje, o digital já envolve muito do que os historiadores fazem, mesmo que nem todos se apercebam ou sequer o pretendam valorizar. Nessa perspectiva, tal como me parece que daqui a uns anos falar de Humanidades será essencialmente falar de Humanidades Digitais, hoje em dia falar de História já é muito falar de História Digital: pela digitalização massiva dos nossos arquivos, pelo uso generalizado de computadores, portáteis, tablets e smartphones, pela profusão das revistas científicas em formato digital, entre outros factores. Mas talvez o mais importante seja o facto do passado humano – em especial este passado recente que nós vivemos e aquele que será vivido e criado pelas gerações nascidas no pós 2005 – ter cada vez mais uma marca digital indelével, talvez até inultrapassável, que obrigará os historiadores a serem sinónimo de historiadores digitais. Nessa altura, que me parece estar em parte a ser vivida já, falar de História Digital deixará de fazer sentido.

Bruno Leal – No Brasil, os professores de História, sobretudo os professores que atuam no nosso Ensino Básico, têm se interessado bastante pelas novas mídias. Eles estão entre os principais interessados na relação entre a História Digital e o Ensino de História, e entre História Pública e Ensino de História. Como você pensa a relação entre o Ensino de História e as Humanidades Digitais? Em que medida o trabalho do professor está mudando neste mundo cada vez mais conectado e digitalizado? 

[perfectpullquote align=”right” cite=”” link=”” color=”” class=”” size=”18″]O que ensinamos nas universidades não tem de se render aos 140 caracteres que parecem definir esta nova forma de cultura urbana, mas também não a pode ignorar.[/perfectpullquote]

Daniel Alves – Penso que é precisamente no campo do ensino que as mudanças de que falei se estão a sentir com maior rapidez e impacto. Por exemplo, a diferença de postura dos alunos numa sala de aula e na forma de recepção do conhecimento é muito visível, entre a geração que nasceu antes do paradigma web 2.0 e a que já cresceu a seguir youtubers, a twittar ou a interagir socialmente (e se calhar majoritariamente) através de um smartphone. O que ensinamos nas universidades não tem de se render aos 140 caracteres que parecem definir esta nova forma de cultura urbana, mas também não a pode ignorar. Eu comecei a dar aulas pouco tempo antes desta mudança e confesso que durante alguns anos ainda procurei conter a avalanche, limitando o uso dos portáteis e dos telemóveis (celulares!) nas minhas aulas e não ligando muito para as redes sociais. Mas o papel do professor sempre foi o de um mediador, mesmo na visão clássica das aulas magistrais em que a interactividade com os alunos era quase nula. Coube sempre ao docente mediar a construção do conhecimento. Mas fora da sala de aula o aluno podia sempre procurar os livros mais obscuros nos corredores mais empoeirados das bibliotecas, ultrapassando essa mediação. A diferença é que hoje essa busca dos alunos é feita de forma instantânea e directamente da sala de aula para todo o mundo. Negar esse acesso é apenas adiar o inevitável e com o risco de se perder o papel de mediador, que continuará a ser essencial, do meu ponto de vista. Mas para isso é preciso que o professor domine as redes sociais e outras ferramentas digitais, conheça a simbologia e o funcionamento muito próprios desse mundo para poder continuar a ajudar os seus alunos. É neste campo que vejo a mais valia das Humanidades “Digitais” e de um discurso que não seja de tensão e de confronto com as Humanidades “Tradicionais”, mas sim de natural incorporação. O humanista digital é antes de tudo um excelente mediador, pois consegue falar com e colocar a comunicar duas áreas que têm simbologias, metodologias e discursos muito díspares: a computação e as humanidades. Não será ele o mediador, o professor do futuro? Talvez… Há aqui um risco, sem dúvida, que é similar à crítica que por vezes é feita às Humanidades Digitais: estando acima das várias disciplinas dentro das Humanidades, esboroando através do digital os seus limites disciplinares, corre-se o risco de uma excessiva simplificação, da falta de conhecimento especializado, da ausência das nuances e subjectividade que entendemos como próprias do pensamento humanístico. Mas não será esse risco maior se os professores não integrarem os media digitais na sala de aula, na sua relação com os alunos? Eu julgo que sim.

Bruno Leal – Daniel, chegamos ao final da nossa entrevista. Muito obrigado por conversar com o Café História! Sinta-se livre para considerações finais.

Daniel Alves – Antes de mais, quero agradecer ao Café História e em particular a você pelo convite para esta entrevista, com os parabéns e o desejo dos maiores sucessos para este projecto. Por fim, afirmar que também eu estou a viver um pouco da tensão entre “digitais” e “tradicionais” de que fui falando na entrevista. Se por um lado tenho uma visão muito positiva sobre o impacto do digital nas nossas disciplinas, por outro defendo que a integração das Humanidades Digitais na academia não deve ser forçada. Terminando como uma nota de bom humor: tudo isto porque me parece que essa batalha está já a ser ganha mesmo sem o outro lado assumir a derrota! 😉


Notas

1 As iniciativas já existentes no país e, embora pouca, são importantíssimas. Em junho de 2017, por exemplo, com apoio do Café História, o Dr. Aquiles Alencar Brayner, curador digital da British Library, falou sobre as Humanidades Digitais em conferência no Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ. Brayner também discutiu o tema no CPDOC/FGV. Na FGV-RJ, a propósito, há um recente, mas já importante Laboratório de Humanidades Digitais (LHuD). Anita Lucchesi discute há alguns anos historiografia digital em seu blog “Historiografia na Rede”. Em abril de 2018 será realizado na cidade do Rio de Janeiro o I Congresso Internacional de Humanidades Digitais, organizado pelo Laboratório de Preservação e Gestão de Acervos Digitais (LABOGAD), da UNIRIO, pelo CPDOC e pelo LHuD.

2 Transcrito em livre tradução. No original: “I’m skeptical of the lasting value of ‘digital history’ as a term — it either will end up meaning too much or too little and pretty soon will be so inescapable (in twenty years, will anyone do professional work in history without involving what we’re talking about?)”. In: COHEN, Daniel J. et al. Interchange: The promise of digital history. The Journal of American History, v. 95, n. 2, p. 452-491, 2008.


Como citar essa entrevista

DANIEL, Alves. História e Humanidades Digitais: conexões para um novo tempo (Entrevista). Entrevista concedida a Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-e-humanidades-digitais. Publicado em: 17 Jul 2017. Acesso: [informar data].

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

6 Comments

  1. Excelente entrevista/reportagem! Nos faz pensar sobre nossas resistências ao uso das diversas mídias em sala de aula. Precisamos sim, constantemente buscar e agregar novas possibilidades de conhecimentos e instrumentos para tal.

    • Valeu, Rodrigo. Temos publicando bastante coisa sobre o tema. Você está sabendo do evento que vai aconteceu no Rio de Janeiro em abril de 18?

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