“A Índia era considerada (e ainda o é) pela ótica da espiritualidade, e quase nada além disso” 1
Emiliano Unzer é professor da Universidade Federal do Espírito Santo. Foto: acervo pessoal do entrevistado.

“A Índia era considerada (e ainda o é) pela ótica da espiritualidade, e quase nada além disso”

Para Emiliano Unzer, professor da Universidade Federal do Espírito Santo, sabemos pouco sobre a história e a cultura dos povos asiáticos, e boa parte do que conhecemos advém de estereótipos, generalizações e mal-entendidos. A boa notícia é que temos tudo pra mudar isso.
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Se uma raça alienígena pousasse em nosso planeta e quiséssemos enviar um emissário que representasse a maior parte de nós, humanos, esse emissário deveria ser asiático, afinal de contas, mais da metade de todos os seres-humanos são asiáticos!

O aspecto populacional de nossa ficção científica nos dá uma dimensão da importância dos povos asiáticos em nosso mundo. Mas não é só isso: a cultura asiática é gigantesca, é basilar no campo da geopolítica, da cultura, da intelectualidade, enfim, de tudo. O problema é que raramente nos damos conta disso. Conhecemos ainda muito pouco sobre a história e a cultura dos povos asiáticos, e muito deste parco conhecimento advém de estereótipos, arquétipos e simplificações ocidentais.

Essa entrevista com Emiliano Unzer, estudioso da História da Ásia, é uma provocação para irmos em busca de mais conhecimento sobre a Ásia.

Conheci Emiliano Unzer em fevereiro de 2021, quando ele deu a aula inaugural em nosso Curso de História da Universidade de Brasília. Foi a aula inaugural mais vista desde que começamos a publicá-las no canal no YouTube do Instituto de Ciências Humanas da UnB: mais de 3.500 pessoas assistiram ao vídeo até o momento.

Desde então, eu e Emiliano trocamos várias mensagens, por e-mail e por meio de redes sociais, falando ora sobre História da Ásia, ora sobre mercado editorial e História Pública. Divulguei várias das aulas, livros e canais do Emiliano aqui no Café História.

O papo com o meu interlocutor flui bem por vários motivos: ele é ótimo comunicador, professor generoso e que faz um ótimo trabalho de pesquisa e difusão da história.

Emiliano vem mais uma vez ao Café História, mas, desta vez, na condição de entrevistado. Escolhi essa modalidade porque ela nos dá liberdade de falar sobre os vários assuntos que são de interesse de Emiliano. Nesse papo, ele fala sobre Japão, Índia, China e várias outras regiões dessa região. Espero que o leitor goste e que este seja um ponto de partida para conhecer mais sobre todos esses e outros países asiáticos.

Emiliano Unzer é graduado em Relações Internacionais pela UnB (Universidade de Brasília) (2000), tem mestrado (MscEcon) em Postcolonial Politics – Universidade de Gales – Aberystwyth, Reino Unido (2002) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (2007). Atualmente é professor associado no Departamento de Historia da Universidade Federal do Espirito Santo (Ufes). Tem pesquisado e publicado artigos, livros, e organizado aulas e palestras na área de História da Ásia. É criador e organizador do canal do YouTube, com centenas de aulas, palestras, entrevistas e lives sobre a história asiática; Para conhecer mais, clique aqui.

Como começou o seu interesse pela história da Ásia?

Essa pergunta recebo com frequência, e acho muito interessante. Sou filho de professores, cresci rodeado de livros de arte, literatura, política e história. Quando pequeno tinha um enorme mapa do mundo no meu quarto, e sempre ficava reparando nos locais onde ninguém falava a respeito. Como o Lago Issyk-Kul, no Quirguistão. Ou de personagens e nações com que eu me deparava, de tempos remotos e antigos, como os Ashinas, dos túrquicos.

Com os anos, esse sentimento confluiu com minha sede de encontrar mais a respeito do pouco dito. E sempre devorei livros e viajei, a tentar atender essa minha inquietação. Isso me faz lembrar de uma frase de Herman Melville, do livro Moby Dick, “sou atormentado por uma inquietação eterna por coisas remotas, amo navegar em mares proibidos”. Assim acabei entrando no curso de Relações Internacionais, na UnB. Ali busquei sobre Ásia e África, indo além das áreas convencionais pesquisadas e ensinadas. Saí formado, mas ainda insatisfeito. Tive uma formação humanística incrível na UnB, fruto das ideias de Darcy Ribeiro, mas ainda assim muito eurocêntrica.

No mestrado, voltei para o Reino Unido, em Gales, onde passei parte de minha infância. Lá pude entrar em contato com pessoas e novas áreas de estudos. História e cultura sempre captavam meu olhar, nas bibliotecas e livrarias, e assim pude começar a adentrar o campo asiático. Desde então, acumulando longitudes e páginas viradas, e depois outras tantas rascunhadas e escritas, pude enfim passar a ofertar o que acumulei aos outros.

Após o doutorado, e tendo entrado como professor na Ufes, a disciplina de História da Ásia passou a ser obrigatória aos alunos de graduação e isso me possibilitou dedicar meu tempo às pesquisas, leituras e viagens no continente asiático. Em 2020, depois de anos de viagens e estudos, compilei tudo que escrevi e publiquei meu livro maior, “História da Ásia”, pela Amazon. Isso, em suma, é parte de minha trajetória pessoal e objetivo de vida. A deixar para os outros, para essa nova geração, inquieta e curiosa como é natural de uma mente jovem, o que tenho produzido e gravado em aulas e palestras no meu canal no YouTube.

Os brasileiros conhecem pouco a história da Ásia?

Infelizmente, sim. Muito pouco e muito mal. Digo que não temos uma tradição literária e política de incentivo de leitura no Brasil, apesar de louváveis esforços. Isso se agrava com o isolamento que acadêmicos tem com relação à sociedade em geral. Esse portal, por exemplo, é uma venerável exceção. Então temos, decorrente disso, um escasso conhecimento da história em geral, e do pouco que temos, é apropriado de maneira desonesta por alguns. Se estendermos isso à Ásia, fica ainda pior.

Por décadas, a percepção geral sobre a Ásia no Brasil vinha da cultura pop de programas televisivos japoneses, que era amplificado pela mídia dos EUA após a Segunda Guerra Mundial. Tínhamos a ideia de que se era asiático, era quase sinônimo de Japão, ou quando muito algo que vinha de Taiwan. A Índia era considerada (e ainda o é) pela ótica da espiritualidade, e quase nada além disso. A China era bastante isolada até a década de 1970. O Irã passou a ser visto quase como um santuário de “fanáticos” xiitas, a ser guiados por aiatolás e terroristas. Isso é uma grande afronta à humanidade, reduzir grandes porções da humanidade a caricaturas e estereótipos. É ultrajante ouvir ainda pelas ruas pessoas a falar “xiita” como sinônimo de radical, por exemplo.

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Artista feminina com uma samburá, Índia da Dinastia Mogol, Século XVIII.

Acredito que isso possa ser mudado com o tempo e dedicação. Acadêmicos, estudantes, jornalistas, diplomatas, meios de comunicação e escolas podem e devem ser os guias a apresentar a história e cultura de países asiáticos. A mostrar a rica história do Afeganistão, que vai muito além do Talibã. A escola de pinturas em miniaturas de Herat no século 15 é espantosamente belo, rico e complexo. Foi em terras afegãs que um regente, Mahmud de Gázni, no início do século 11, comissionou a Ferdusi a escrever o maior épico da literatura persa, o Shanameh, “Livro dos Reis”, um monumento literário da humanidade.

Você tem trabalhos publicados sobre Japão e Índia. O que mais te chama a atenção na história desses dois países?

O Japão tem uma história única e belíssima. Fico assombrado em saber do quão pouco sobre o tema foi publicado no Brasil, onde temos uma enorme comunidade de descendentes japoneses. Visando sanar um pouco isso, escrevi em 2016 um pequeno livro sobre a história japonesa, assim como gravei aulas a respeito no YouTube.

O meu maior desafio foi tentar desconstruir um pouco a tendência a considerar a história japonesa a apenas a samurais, artes marciais e outras figuras estereotipadas. Fazem parte sim da história, mas o Japão vai muito além disso. Foi no período Heian (794 – 1185) que surgiram grandes obras literárias, como o Genji Monogatari, da grande Murasaki, que retrata em minúcia todos os detalhes da sociedade japonesa da época, das intrigas da corte, das roupas, estampas, comidas, rituais, gestos, cheiros, natureza, algo que considero assombroso. Algo que só se compara a raros livros no mundo, como a Ilíada, Divina Comédia, ou mesmo o Sonho da Câmara Vermelha (Honglou Meng), um clássico da literatura chinesa do século 18, de Cao Xueqin.

Sobre a Índia, esse foi um dos meus maiores desafios. Aprendi muito ao escrever alguns anos atrás no meu livro História da Índia. A história indiana é tão complexa e diversa que comparo a um grande caleidoscópio. São regiões diversas que guardam séculos de tradição linguística, étnica e cultural, e isso tudo foi depois costurado numa unidade democrática e republicana após a independência em 1947, grande parte disso graças a figuras da estatura de Nehru, Patel, Ambedkar e Menon. Naturalmente, a considerar o trauma da partição do Paquistão e da indefinição sobre a Caxemira.

Mas a história indiana vai muito além disso. Foi na Índia, que um matemático e astrônomo da época dos Máurias, Ariabata (476 – 550), considerou que os planetas orbitavam em volta do Sol, que as órbitas eram elípticas e que o brilho dos planetas advinha da luz das estrelas. Isso é espantoso, algo que pouco sabemos aqui fora do continente asiático. Apenas um exemplo. Outros abundam nas páginas da história indiana, como Nagarjuna (150 – 250), considerado um dos maiores pensadores do budismo, ou Bodidarma (483 – 540), aquele que contribuiu para o alastramento do budismo Chan para as terras chinesas.

Queria voltar à História do Japão. Muito se fala na Era Meiji (1868-1912) como um período decisivo para a história japonesa. Entende-se comumente como um período de modernização Ocidental. Essa leitura tão recorrente no senso comum não parece eurocêntrica demais?

Sim, sem dúvida. O Japão tem uma história incrível de adaptação e inovação. O príncipe Shotoku, no século 7, como exemplo, promoveu amplas reformas administrativas e o budismo no Japão. Durante os períodos Asuka e Nara, do século 6º ao 8º, um novo sistema jurídico e administrativo foi implementado no arquipélago, chamado de ritsuryô, inspirados no confucionismo e legalismo chinês.

Acredito que devemos sempre considerar a dinâmica interna e protagonismo histórico dos japoneses e sua relação com outras regiões asiáticas, isso apresenta uma leitura mais acurada e complexa. O período Meiji (1868 – 1912) foi culminação de uma série de transformações e contradições advindos do período Edo anterior. Nos séculos 17 e 18, o Japão já tinha se estabilizado numa ordem interna com crescimento econômico e urbano. Edo, hoje Tóquio, já despontava como uma das maiores cidades do mundo em fins do século 18.

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Escultura budista do período Heian, do século 10, que representa, ao mesmo tempo, o feminino e o masculino,os deuses e os humanos. Fonte: The Met.

Essas transformações alavancaram a classe de comerciantes e urbanos, mas em detrimento do declínio de classes antes prestigiadas, como a dos guerreiros (samurais) e grandes latifundiários (daimiôs). Os comerciantes, especialmente nas regiões do sul, como em Kyushu, começaram a prosperar e querer maior abertura do arquipélago para outras regiões asiáticas, e isso foi durante séculos regulado pelos éditos de controle e isolamento (sakoku) do período Edo (1603 – 1867).

Sendo assim, foram pressões sociais internas que culminaram na queda do regime dos xoguns Tokugawas em 1867, com a articulação dessa classe de comerciantes e jovens líderes meridionais que passaram a se inspirar na restauração do poder imperial em torno do jovem Mutsuhito, ou o Imperador Iluminado, Meiji. A mudança do poder se deu após anos de guerra civil (Guerra Boshin, 1868-69), e a reestruturação do governo e economia. No campo econômico, a adaptação técnica produtiva foi certamente inovadora, assim como a adoção de uma constituição em 1889. Mas, confluindo com isso, foi também um período, inspirado na constituição prussiana, que deu amplos poderes para as indústrias siderúrgica, naval e bélica. Isso, com as crises das décadas de 1920 e 30, irá resvalar para uma série de anexações de regiões asiáticas.

Como você enxerga o futuro da China?

A China sempre foi e será uma região pivotal na Ásia. Pela sua história e magnitude. Não é de hoje que a economia asiática e global olha para a China. Durante a dinastia Tang (618 – 907), a China já tinha controlado as rotas terrestres para as regiões ocidentais, pelo Corredor Gansu a alcançar a Ásia Central. Algo vital para arrecadar tributos e alfândegas nas rotas comerciais, assim como a proteger seu flanco mais vulnerável no oeste e norte diante de poderosas nações túrquicos e mongóis. No século 8º, em tempo de crise chinesa, os tibetanos tinham se organizado num império e chegaram a ocupar a capital imperial chinesa, Chang’an. Considero esses aspectos históricos a servir como uma primeira reflexão das recuadas relações da China com outras regiões próximas.

A continuar na história, a China durante a dinastia Ming (1368 – 1644), no século 14 em específico, chegou a empreender grandes missões navais pelo Estreito de Málaca, Java, Sumatra e Oceano Índico. Isso foi liderado por um eunuco muçulmano chinês, expressão do vigor cosmopolita de então, Zheng He, a projetar diplomaticamente o Reino do Meio para regiões distantes. Isso é impressionante, pois demonstra como a China tinha uma percepção ampliada na Ásia muito antes do século 20. No Sri Lanka, há até hoje num museu em Colombo, uma estela de Galle de 1409 com três línguas presentes: chinês, tâmil e persa. Eram as três línguas mais faladas no trato político e comercial nos mares do Oceano Índico e mares do Leste Asiático. Estamos falando de uma época que antecede em mais de oito décadas a chegada das caravelas de Vasco da Gama.

Com a queda da dinastia Qing em 1911, depois com o período de conflitos e guerras até 1949, e a ascensão do Partido Comunista Chinês, a China entrou num período de relativo isolamento até atravessar uma extraordinária reforma e abertura nas décadas finais do século passado. Acredito que hoje, os chineses enxergam o futuro como uma retomada da centralidade chinesa na Ásia e no mundo, ecoando períodos de maior integração e projeção como nas dinastias Tang e Ming citadas. A série de crises – a incluir nesse quadro a entrada de demandas de estrangeiras ocidentais no mercado chinês – que resultou na queda da dinastia Qing, desde meados do século 19 até meados do século seguinte, é considerada pelos chineses como o “século das humilhações” (Bǎinián Guóchǐ). 

Como citar esta entrevista

UNZER, Emiliano. “A Índia era considerada (e ainda é) pela ótica da espiritualidade, e quase nada além disso” (Entrevista, por Bruno Leal Pastor de Carvalho). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/entrevista-emiliano-unzer-historia-da-asia. Publicado em: 27 dez. 2022. ISSN: 2674-5917.

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

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