Como a violência passou a ser vista como um problema de saúde pública após a redemocratização

A violência, em todas as suas configurações, é questão de saúde pública e problema social que demanda políticas e práticas de prevenção e enfrentamento.
31 de maio de 2021
Como a violência passou a ser vista como um problema de saúde pública após a redemocratização 1
O "Non-Violence", também conhecido como The Knotted Gun, é uma escultura de bronze do artista sueco Carl Fredrik Reuterswärd de um revólver Colt Python .357 Magnum de tamanho grande com o cano amarrado com um nó. Sede das Nações Unidas, 9 de julho de 2019, NY. Foto: Matthew TenBruggencate, Unplash.

O impacto da violência no cotidiano dos brasileiros não é só uma questão de segurança pública. Homicídios, acidentes e suicídios acarretam danos diretos ou indiretos à saúde física e mental de indivíduos e populações, o que levou o tema à agenda da saúde. Pelas múltiplas configurações que pode assumir (contra crianças, adolescentes, idosos, de gênero, raça, contra grupos étnicos, população de rua e LGBTQI+ etc.), violência é substantivo que se escreve no plural e demanda políticas e práticas de prevenção, enfrentamento e participação multiprofissional.

A relação entre violência e saúde no Brasil começou a ser estudada de forma mais sistematizada no período da redemocratização, com destaque para o trabalho de Maria Cecília de Souza Minayo, pesquisadora do Departamento de Estudos sobre Violência e Saúde Jorge Careli, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Claves/Ensp/Fiocruz). Ela se dedica ao assunto desde a década de 1990 e retomou recentemente o tema na obra Impactos da Violência na Saúde, reeditada em 2020 em comemoração aos 120 anos da Fundação.

Segundo a cronologia pontuada pela socióloga no artigo “A inclusão da violência na agenda da saúde: trajetória histórica”, em meados da década de 1990 muitas secretarias de saúde municipais, em articulação com organizações da sociedade civil, criaram serviços de prevenção e assistência para tratar as consequências da violência. Tais iniciativas levaram à incorporação do tema à agenda da saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS) e, em 2001, foi promulgada, pelo Ministério da Saúde (MS), a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (PNRMAV).

Entre 2001 e 2006, a PRNMAV instituiu três importantes portarias: uma determinando a notificação obrigatória, pelos profissionais de saúde, das situações de suspeita ou confirmação de maus-tratos a crianças e adolescentes; a segunda exigindo o registro e preenchimento de Autorização de Internação Hospitalar (AIH), em casos de atendimento a “causas externas” (homicídios, suicídios e acidentes); a terceira incluindo a disponibilização de uma nova ficha de registro de entrada de pacientes no SUS, com a intenção de captar com mais qualidade os casos de acidentes e violência.

“Foi com a colaboração de profissionais de várias áreas, com a experiência de tratamento das sequelas da violência nos serviços de urgência, emergência e reabilitação, com apoio de movimentos sociais e com a reflexão acadêmica já acumulada no país desde 1970 que, em 2001, o Ministério da Saúde promulgou a PNRMAV”, detalham as pesquisadoras Cecília Minayo, Edinilsa Souza, Marta Silva e Simone Assis, do Claves/Ensp, no artigo “Institucionalização do tema da violência no SUS: avanços e desafios”. Com a iniciativa, o país se tornou um dos poucos no mundo a ter uma política de saúde dirigida ao problema da violência.

No plano internacional, em 1993, a Organização Mundial da Saúde (OMS) escolheu a prevenção de traumas e acidentes como mote da celebração do Dia Mundial da Saúde. Em 1994, a Organização Pan-americana da Saúde (Opas) realizou a Conferência sobre Violência e Saúde, em Washington, reunindo os ministros da Saúde das Américas, pesquisadores e especialistas. Na ocasião, a violência foi considerada endêmica na região e reconhecida como questão de saúde pública.

Em 2002, a OMS publicou um relatório no qual o termo “causas externas”, empregado para categorizar o tema da violência na Classificação Internacional de Doenças e Agravos (CID), foi substituído pela expressão “Violência e Saúde”. Em suma, com o passar do tempo, mudanças graduais tornaram a violência reconhecida como parte dos problemas que relacionam saúde, condições, situações e estilos de vida e incorporada como pauta de direitos humanos e questão social.

De questão biomédica a problema social

“Violência não é um problema médico típico, é, fundamentalmente, um problema social. […] a violência afeta muito a saúde e evidencia a necessidade de uma atuação muito mais específica, interdisciplinar, multiprofissional, intersetorial e engajada do setor, visando às necessidades dos cidadãos”, afirma Minayo no artigo “Conceitos, teorias e tipologias de violência: a violência faz mal à saúde[1].

Segundo a socióloga, lesões, traumas e mortes causados por violências e acidentes resultam em altos custos emocionais, sociais e com aparatos de segurança pública, além de prejuízos econômicos decorrentes da falta ao trabalho e perda de produtividade. Além disso, os impactos sobre a saúde mental que tais danos provocam nas vítimas e em suas famílias chegam ao SUS e se revertem em gastos com emergência, assistência e reabilitação, muito mais onerosos do que os procedimentos médicos convencionais.

Um exemplo é a associação entre violência e acidentes: os de trânsito, por exemplo, matam, anualmente, cerca de 30 mil brasileiros, e quase 300 mil sofrem lesões, muitas vezes incapacitantes. De acordo com o estudo “Impactos Socioeconômicos dos acidentes de transporte no Brasil”, divulgado em setembro de 2020 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Brasil perdeu 479.857 vidas no trânsito entre 2007 e 2018. O custo desses acidentes chegou a  R$ 1,584 trilhão.  A maior parte das vítimas fatais é de jovens de 18 a 34 anos, que veem suas expectativas de vida e trabalho alteradas por morte precoce, além de lesões e mutilações.

“São indicadores de extrema importância para futuras análises sobre a sobrecarga de hospitais públicos, equipes de paramédicos, gastos previdenciários, sinistralidade de carteiras de seguros, entre outros impactos”, destaca o relatório do IPEA. O perceptível aumento do número de jovens entregadores e motoristas autônomos das empresas de aplicativos, por conta da pandemia de covid-19, elevou substancialmente estes números, segundo reportagem de dezembro de 2020 do jornal A voz do motoboy.

Trata-se da chamada “uberização da economia”, outro fator de grande impacto sobre a saúde e reflexo do modelo 24/7 (24 horas de trabalho por dia, 7 dias por semana) destas companhias nacionais e transnacionais de tecnologia. Filmes como “Você não estava aqui” (2019) denunciam a situação, na qual se evidenciam a disparidade entre ricos e pobres, a precarização do trabalho, a complexa relação entre renda e sobrevivência e o impacto destes fatores sobre a saúde das populações.

“A pandemia de covid-19 expôs, alimentou e aumentou as desigualdades econômicas, de raça e gênero por toda a parte. As mulheres foram as que mais perderam empregos durante a pandemia em todo o mundo e a população negra foi a que mais se contaminou e teve o maior índice de mortes devido à covid-19 no período”, diz o relatório O vírus da desigualdade da Oxfam Brasil.

Desigualdade e violência

De acordo com o Atlas da Violência 2020, divulgado em agosto pelo IPEA e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a população negra (indivíduos pretos e pardos) é o principal alvo do desrespeito aos direitos constitucionais e da violência no Brasil. Segundo o Atlas, o assassinato de negros aumentou 11,5% em 10 anos (de 2008 a 2018). Para cada pessoa não negra assassinada em 2018, 2,7 negros foram mortos, representando 75,7% das vítimas.

Outro importante dado do relatório é a violência provocada por armas de fogo. “Desde 2019, tem havido uma mudança na legislação correlata, que sepultou o Estatuto do Desarmamento e patrocinou grande flexibilização no acesso da população às armas de fogo e munição, cujos impactos poderão durar décadas”, aponta o documento.

No extenso trabalho, os pesquisadores alertam: “[…] em um ano e meio, desde 2019, já foram editados, pelo menos, onze decretos, uma lei e quinze portarias do Exército que trarão como consequência a fragilização dos instrumentos de controle e fiscalização de armas de fogo e munições, o aumento do número de armas em circulação no país, a obstacularização do combate ao trafico ilegal dessas armas e a facilitação de sua obtenção por criminosos, como traficantes e milicianos”, destaca o texto.

A violência é devastadora. Se não mata, incapacita, acarreta doenças crônicas e traumas insuperáveis. Conforme assinalam as organizadoras da obra Impactos da violência na saúde, ao ser reconhecida como problema de saúde pública, a violência em suas mais diversas e perversas configurações é também questão de educação, segurança pública, ação social, trânsito, entre outras, e responsabilidade de toda a sociedade.

Notas

[1] Artigo de abertura do livro Impactos da violência na saúde.

Referências

CERQUEIRA, D. et al. Atlas da violência 2020. Brasília, DF: Ipea: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. A inclusão da violência na agenda da saúde: trajetória histórica. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2006, vol.11, supl., pp.1259-1267.

MINAYO, Maria Cecilia de Souza et al. Institucionalização do tema da violência no SUS: avanços e desafios. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro,  v. 23, n. 6, p. 2007-2016,  jun.  2018.  

NJAINE, K., ASSIS, S.G., CONSTANTINO, P., and AVANCI, J.Q., eds. Impactos da Violência na Saúde [online]. 4th ed. updat. Rio de Janeiro: Coordenação de Desenvolvimento Educacional e Educação a Distância da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, ENSP, Editora FIOCRUZ, 2020, 448 p. ISBN: 978-65-5708-094-8.

Como citar este artigo

D’AVILA, Cristiane. Como a violência passou a ser vista como um problema de saúde pública após a redemocratização (Artigo). In: Café História. Publicado em 31 maio de 2021. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-violencia-como-questao-de-saude-publica/. ISSN: 2674-5917.

Cristiane d’Avila

Jornalista, doutora em Letras pela PUC-Rio, Tecnologista em Saúde Pública da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), onde atua no Departamento de Arquivo e Documentação. Mestre em Comunicação Social e Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-Rio. É organizadora do livro “Cartas de João do Rio a João de Barros e Carlos Malheiro Dias”, publicado pela Funarte em 2013, e autora do livro “João do Rio a caminho da Atlântida”, publicado em 2015 com apoio da Faperj. Colabora mensalmente com o Café História com textos sobre História das Ciências e da Saúde.

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