A questão da saúde reprodutiva e o feminismo negro no Brasil

Como inter-relações entre raça, gênero e saúde reprodutiva estiveram no centro do processo de formação do feminismo negro brasileiro.
24 de abril de 2017
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Neste artigo, defendo a ideia de que a constituição de uma identidade racial entre as ativistas do movimento feminista negro no Brasil esteve relacionada aos debates e ações no campo da saúde reprodutiva da população negra no país. Em particular, às acusações de que as mulheres negras estariam sendo vítimas de esterilização cirúrgica em massa durante a década de 1980, com o objetivo de controlar a natalidade desse grupo populacional. O presente artigo parte do pressuposto que tais acusações se transformaram na mola propulsora de uma militância feminista negra no Brasil.

Os anos 1980 e a questão da saúde reprodutiva no Brasil

Na década de 1980, as discussões em torno de conceitos como saúde e direitos reprodutivos no Brasil se ampliaram, em especial, a partir da presença progressiva de mulheres em partidos políticos, instituições estatais, ONGS feministas e agências internacionais, bem como a partir da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CPID), realizada no Cairo em 1994, e da IV Conferência Mundial sobre a mulher, realizada no ano de 1995, em Beijing, na China. Neste período, devido às ações capitaneadas por movimentos de mulheres, começaram a ser implantadas no país políticas públicas voltadas à saúde da mulher e ao direito ao planejamento familiar, caso, por exemplo, do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM).

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O movimento feminista negro enfrentou questões importantes nas décadas de 1980 e 1990. Imagem: Agnali, Pixabay.

Neste contexto, as feministas negras passaram a centrar sua atuação no campo da saúde e dos direitos reprodutivos, reagindo a denúncias sobre supostas políticas de controle de natalidade que teriam como alvo principal a população negra do país. Uma das maiores denúncias do tipo foi o documento O censo de 1980 no Brasil e no estado de São Paulo e suas curiosidades e preocupações [1], publicado em 8 de junho de 1982 e de autoria do economista Benedito Pio da Silva, membro, na época, de um grupo de estudo financiado pelo governo estadual de São Paulo. O documento continha trechos polêmicos e de cunho racista, relacionados ao controle da natalidade da população negra, a saber:

Verifica-se pela análise do documento que o principal receio era uma possível ascensão dos negros e pardos aos mais importantes cargos políticos do país. A polêmica provocada pelo documento culminou no afastamento de Benedito Pio da Silva do governo de São Paulo e no arquivamento de sua proposta. Em uma carta enviada no dia 7 de agosto de 1982 ao então presidente da Assembleia Legislativa de São Paulo, o deputado Januário Montelineto, Pio da Silva negou as acusações de racismo, enfatizando a proposta de “um planejamento familiar e um programa de paternidade responsável”. [2] Ao propor o controle populacional dos negros e pardos, o documento favoreceu a luta das feministas negras em torno da especificidade da saúde reprodutiva entre as mulheres negras.

As campanhas publicitárias em torno da inauguração do Centro de Pesquisa e Assistência em Reprodução Humana (CEPARH), criado em 1986, em Salvador, e dirigido pelo médico Elsimar Coutinho na Bahia, também deram visibilidade ao viés racial nas ações políticas no campo da saúde reprodutiva. Segundo militantes, tais como Luiza Bairro, Coutinho utilizou como material de divulgação outdoors com fotos de crianças e mulheres negras com os seguintes dizeres: “Defeito de Fabricação”, para convencer a população baiana da necessidade do controle da natalidade. Esta campanha foi bastante criticada pelo movimento negro por revelar um caráter racista.

Neste período, outro fator relevante para o ativismo das feministas negras no campo da saúde reprodutiva foi a elaboração do suplemento especial da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), edição de 1986. O documento foi produzido pelo IBGE e apresentou dados oficiais desagregados por cor, relativos aos métodos contraceptivos utilizados pelas mulheres. Dentre tais métodos, a pílula e a esterilização eram, respectivamente, os dois mais recorrentes entre as mulheres casadas no período, sendo o percentual de esterilização desse grupo de 27%. Os maiores índices de mulheres esterilizadas, entre 15 a 54 anos, encontravam-se nos estados do Maranhão (75,4%), Goiás (71,3%) e Pernambuco (61,4%) indicando a prevalência da esterilização cirúrgica na região Nordeste, onde a população parda e preta é majoritária.

Campanha contra esterilização e CPMI

Durante a década de 1990, o ativismo das feministas negras se consolidou com base nas denúncias da prática da esterilização cirúrgica, indicando a associação do movimento com o campo da saúde reprodutiva. As críticas à esterilização cirúrgica foram importantes para a criação da Campanha Nacional Contra a Esterilização de Mulheres Negras, iniciada em novembro de 1990 e liderada pela médica e ativista negra Jurema Werneck. De acordo com as responsáveis pela campanha, o cenário em que as esterilizações estavam sendo realizadas, desde a década de 1980, era formado por: “Milhões de mulheres negras e mestiças esterilizadas (grifo meu) por acreditarem que esta é a única forma de evitar filhos (…)” [3].

No ano de 1993, ocorreu ainda o primeiro evento nacional destinado a discutir questões voltadas à saúde reprodutiva das mulheres negras no Brasil. O Seminário Nacional Políticas e Direitos Reprodutivos das Mulheres Negras foi realizado entre os dias 20 e 22 de agosto, na cidade de Itapecerica da Serra, no estado de São Paulo. O Seminário foi idealizado por movimentos de mulheres negras com a intenção de expressar a visão das ativistas negras acerca da questão dos direitos reprodutivos.

Na esfera parlamentar, a polêmica em torno da prática da esterilização cirúrgica no Brasil se deu em 1993, quando foi criada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), sob a liderança da então deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ) e da militante negra Luiza Bairros. A CPMI tinha o intuito de apurar as alegações de que as mulheres negras eram mais esterilizadas que as brancas, principalmente, durante a década de 1980, bem como de averiguar se a prática da esterilização cirúrgica se configurava como uma política eugênica direcionada à população negra no país.

Além das feministas negras, a CPMI entrevistou 23 representantes do movimento de mulheres, professores universitários, representantes da Igreja Católica e da OAB, políticos, médicos e demógrafos. Os depoentes abordaram os seguintes temas: implicações do incentivo de agências controlistas norte-americanas nas políticas de planejamento familiar no país, desinformação da população acerca da prática e das consequências da esterilização cirúrgica, falta de oferta na rede pública de variados métodos contraceptivos, a não implantação do PAISM no plano nacional e a ausência de uma lei específica de regularização da esterilização no país.

O relatório final da CPMI apresentou as seguintes conclusões: não havia uma política voltada à saúde da mulher no Brasil; existia interesse internacional na implementação do controle demográfico; as agências controlistas internacionais forneciam recursos financeiros às nacionais e o Estado não tinha, até então, definido critérios para a prática da esterilização no país. Os membros da CPMI não confirmaram a tese defendida pelo movimento negro e pelas ativistas de que a esterilização cirúrgica foi direcionada às mulheres negras na década de 1980 com o objetivo de controlar a natalidade desse grupo populacional no Brasil. Por outro lado, os membros da CPMI concordaram com o fato de que não havia até aquele período, estatísticas oficiais satisfatórias que desagregassem por raça os aspectos relacionados à saúde da população brasileira [4].

Algumas considerações finais       

A CPMI de 1993 fomentou uma ampla discussão política acerca dos aspectos que envolviam a prática da esterilização cirúrgica. Avalio que a CPMI foi importante para o movimento das mulheres negras porque abriu espaço em âmbito parlamentar para apurar as denúncias levantadas por ativistas. Todo este esforço das feministas negras em torno da questão da esterilização cirúrgica culminou na criação da Lei de Planejamento Familiar nº 9263, criada em janeiro de 1996, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso.

Tal lei estabeleceu que a esterilização cirúrgica só pode ser realizada em mulheres com idade mínima de 25 anos ou que tiverem pelo menos dois filhos. A Lei 9263, de 1996, também estabeleceu uma série de punições àqueles que realizassem a esterilização de forma irregular, tais como: reclusão, de dois a oito anos, e multa, se a prática não constituísse crime mais grave [5].

As investigações da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) de 1993 não constataram a existência de políticas oficiais voltadas ao controle da população negra no país. Inclusive, um dos dados apontados pela CPMI foi justamente a falta de informações e dados suficientes que ratificassem as acusações das militantes negras. Todavia, a CPMI conseguiu chamar a atenção para a necessidade de que os dados levantados considerem também segmentação por raça. E mais: a CPMI representou um passo importante na afirmação da identidade das ativistas negras na medida em que abriu espaço, na esfera parlamentar e governamental, para averiguação das denúncias suscitadas pelas militantes gerando maior visibilidade do feminismo negro. A experiência política das militantes negras contribuiu para a implementação de ações direcionadas à população negra ao longo dos anos de 1990 e 2000 [6].

Notas

[1] ESTADO DE SÃO PAULO. Deputado denuncia racismo em projeto. Estado de São Paulo, 10 de agosto de 1982, p.6.

[2]FOLHA DE SÃO PAULO. Sob acusação de racismo, GAP afasta integrante. Folha de São Paulo, 11 de agosto de 1982, p. 6.

[3]  CEAP. Folheto de divulgação da Campanha Contra a Esterilização de Mulheres Negras. Programa de Mulheres do CEAP, 1990. Acervo do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas.

[4] BRASIL. Congresso Nacional. Relatório Nº 2 de 1993. Relatório Final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito destinada a examinar a incidência de esterilização em massa nas mulheres no Brasil. Presidente: Benedita da Silva. Relator: Senador Carlos Patrocínio. Brasília, 1993: 116-118.

[5] BRASIL. Ministério da Saúde. Lei nº 9263 de 12 de janeiro de 1996, que dispõe acerca da prática da esterilização cirúrgica no país.

[6] Para saber mais ver: MAIO, Marcos Chor & MONTEIRO, Simone. Tempos de racialização: o caso da ‘saúde da população negra’ no Brasil. Rev. História, Ciência, Saúde- Manguinhos. 12 (2) 2005, pp. 419-446.

Referências Bibliográficas:

ALVES, Branca M & PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. Brasília: Brasiliense, 1981. 77 p.

BRAZIL, Érico V & SCHUMAHER, Schuma. Mulheres negras no Brasil. São Paulo: SENAC/São Paulo, 2007. 477 p.

CALDWELL, Kia Lily. Negras in Brazil. Re-envisioning Black Women, Citizenship, and the Politics of Identity. New Jersey: Rutgers University Press. 2007. 226 p.

COSTA, Ana Maria. Desenvolvimento e Implantação do PAISM no Brasil. IN: GIFFIN, Karen & COSTA, Sarah H. Questões da saúde reprodutiva. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.

OLIVEIRA, Fátima. Saúde da População Negra. Brasil: Ano 2001. Brasília: Opas, 2003. 344 p.

Mariana Damasco possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2005) e mestrado em História das Ciências e da Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (2009). Tem experiência na área de História, com ênfase em História da Saúde Pública, atuando principalmente nos seguintes temas: hanseníase, história oral, políticas públicas de sáude, gênero, raça e saúde da mulher no Brasil. Também está inserida no ramo da educação e atua como professora de História do município e estado do Rio de Janeiro.

Como citar este artigo

DAMASCO, Mariana. A questão da saúde reprodutiva e o feminismo negro no Brasil. In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-questao-da-saude-reprodutiva-e-o-feminismo-negro-no-brasil/. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 24 abr. 2017.

Mariana Damasco

Possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2005) e mestrado em História das Ciências e da Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (2009). Tem experiência na área de História, com ênfase em História da Saúde Pública, atuando principalmente nos seguintes temas: hanseníase, história oral, políticas públicas de sáude, gênero, raça e saúde da mulher no Brasil. Também está inserida no ramo da educação e atua como professora de História do município e estado do Rio de Janeiro.

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