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Regulamentação da profissão de historiador no Brasil: muitas oportunidades e um risco considerável

No dia 18 de fevereiro de 2020, o Senado Federal aprovou por unanimidade o projeto de lei que regulamenta a profissão de historiador no Brasil. O texto aprovado foi um substitutivo (SCD 3/2015) da Câmara dos Deputados ao PL 368/2009, de autoria do Senador Paulo Paim (PT-RS). Trata-se de uma dupla aprovação, haja vista que na votação de consulta pública, realizada antes do projeto ser apreciado pelo parlamento, a regulamentação recebeu 2.185 votos a favor e apenas 131 contra. O projeto segue agora para a última etapa de tramitação antes de se tornar lei: a sanção presidencial.

Segundo o texto aprovado, poderá exercer a atividade de historiador quem tem diploma de curso superior, mestrado ou doutorado em História; diploma de mestrado ou doutorado obtido em programa de pós-graduação reconhecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com linha de pesquisa dedicada à História; e profissionais diplomados em outras áreas que comprovarem ter exercido a profissão de historiador por mais de cinco anos a contar da data da promulgação da futura lei.

Luta antiga

A regulamentação da profissão de historiador é uma luta antiga dos historiadores brasileiros e da principal associação da classe no país, a Associação Nacional de História (ANPUH), fundada em 1961. A primeira tentativa de normatização ocorreu em 1968, quando um projeto foi apresentado à Câmara Federal pelo então deputado Ewaldo de Almeida Pinto, que acatou por sua vez um anteprojeto de regulamentação que lhe fora proposto pelo jornalista Heródoto Barbeiro, à época presidente da Federação Brasileira de Centros de Estudos Históricos (FBCEH), ligada a União Nacional dos Estudantes (UNE).

Projeto de lei segue agora para sanção presidencial. Foto: Pixaby.

A relação com o movimento estudantil, que então fazia dura oposição à ditadura militar, custou caro: representantes dos militares no Congresso Nacional fizeram com que o projeto fosse sumariamente arquivado. Depois disso, até a aprovação em 2020, foram feitas oito tentativas visando a regulamentação: em 1983 (PL2647), em 1991 (PL1883), em 1994 (PL4753), em 1995 (PL351), em 1999 (PL2047;PL2260; PL3492) e em 2004 (PL3759). Todos os oito projetos foram arquivados por motivos diferentes – leia aqui um dossiê cronológico completo produzido pela ANPUH.

A presidente da ANPUH, a historiadora Márcia Motta, professora de História na UFF, comemorou a notícia com um vídeo publicado no perfil da entidade no Twitter: “A Associação Nacional de História parabeniza a todos os historiadores e historiadoras pela regulamentação de nossa profissão (…) por essa conquista que demorou muitos anos”.

Divisão dentro da comunidade acadêmica

A aprovação do atual projeto de regulamentação da profissão de historiador não se deu sem que antes se produzisse interpretações divergentes sobre o mesmo no meio acadêmico. Em 2012, em entrevista à Folha de S. Paulo, por exemplo, o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho se manifestou contra a regulamentação: “Isso é um corporativismo inadmissível. Reserva de mercado é algo absurdo. Posso listar grandes historiadores brasileiros que não são formados em história”.

Já o historiador Rodrigo Patto Sá Motta, quando ainda ocupava o cargo de presidente da ANPUH, em 2015, manifestou-se favorável. Em texto, explicou a sua posição: “o que está em jogo, principalmente, é uma iniciativa legislativa que vai retirar obstáculos à contratação de historiadores nos órgãos públicos, com possíveis desdobramentos positivos para a formação profissional, ao tornar a carreira um pouco mais atraente para os jovens”.

Na imprensa, o tema também repercutiu. Em 2012, o jornalista da Folha de S. Paulo Fernando Rodrigues publicou um artigo no jornal paulista chamando o texto do projeto de lei de “estapafúrdio” e de “um maniqueísmo atroz”. Rodrigues entendeu que o projeto impediria que pessoas sem diploma de história lecionassem a disciplina. O projeto, ele afirmou, “ignora que médicos, sociólogos, economistas, engenheiros, juristas, jornalistas ou cidadãos sem diploma possam acumular conhecimentos históricos sobre suas áreas de atuação. Terão todos de guardar para si o que aprenderem”.

Na época, o PL realmente previa que o exercício da profissão de historiador, em todo o território nacional, seria “privativo dos portadores de diploma de curso superior em história, expedido por instituição regular de ensino”. Mas isso não poderia ter qualquer efeito no campo do magistério. Rodrigues ignorou as Leis de Diretrizes e Bases (LDB) e os editais de concursos das universidades, que já permitem há bastante tempo que profissionais de outras áreas lecionem história. O PL não poderia passar por cima de nenhum dos dois – no máximo provocaria um choque com eles.

Dois dias depois da publicação do artigo de Rodrigues, o historiador Benito Bisso Schmidt, então presidente da ANPUH, e o senador Paulo Paim, publicaram na mesma Folha de S. Paulo um artigo dizendo que “algumas controvérsias” derivavam do “desconhecimento do projeto”. Os dois esclareciam que ninguém seria impedido de escrever história caso o projeto de lei fosse aprovado (rumor que surgiu na época) e não mexeria nas exigências já previstas em lei quanto ao magistério. “O projeto não veda a ninguém o direito de escrever sobre história nem pretende impor de uma hora para outra a especialização a todos os docentes. Apenas quer assegurar a presença de historiadores profissionais em espaços dedicados ao ensino e à pesquisa científica em história, para que esses possam, em colaboração com outros estudiosos, contribuir para o avanço da área.”

Os jornalistas não foram os únicos a achar que o magistério estaria sob ameaça. Na época, em entrevista ao Estado de S. Paulo, o sociólogo Simon Schwartzman, então presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), tomou dados do Censo Escolar de 2010 que mostravam o déficit de professores de História do Ensino Básico no Brasil para criticar o projeto de lei da regulamentação, afirmando que esse déficit seria ainda maior caso o mesmo fosse aprovado. “A oferta atual não vai dar conta da necessidade que vai gerar de professores com graduação de história nem de profissionais especializados. Vão criar mais um problema com essa lei, que atende a interesses corporativistas”, afirmou.

A interpretação de que a regulamentação da profissão de historiador impediria outras pessoas de escreverem história e eliminaria a interdisciplinaridade em escolas e universidades era, assim, um falso problema, embora compreensível, já que o texto do PL não fazia menção, por exemplo, a LDB. Porém, outro problema, esse sim real e bastante grave, dizia respeito a interdição de reconhecimento à pesquisadores acadêmicos de outras áreas, mesmo que tais áreas contemplassem a história.

Pesquisadores de “áreas fronteiriças” logo notaram o problema. A Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC)  foi a primeira a expressar os seus medos. A entidade, que reúne pesquisadores em história, mas com formação em programas interdisciplinares, publicou uma carta aberta mostrando que diversos historiadores da ciência perigavam ser desconsiderados por aquela primeira versão do projeto de lei. Reação semelhante teve a Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), que divulgou manifesto em oposição PL. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), em apoio às diversas sociedades científicas e associações profissionais, foram outras entidades também se movimentaram nesta direção, enviando uma carta ao Congresso Nacional na qual pediam a recusa da medida.

Diante de tantos questionamentos, o projeto passou alguns anos estacionado, e os próprios historiadores envolvidos no debate, além da própria ANPUH, começaram a revisar o seu texto, propondo aos parlamentares alterações que julgavam necessárias a fim de mostrar que regulamentação não era uma questão de reserva de mercado e impedir qualquer tipo de injustiça contra profissionais formados em outras áreas, desde que oriundos de programas com linhas de concentração em história. Foi assim que surgiu, em 2015, depois de muito debate e algum consenso, o texto substitutivo aprovado em 2020 no Senado.

Oportunidades e riscos do projeto aprovado

Uma das principais mudanças do novo texto é muito positiva: os profissionais das “áreas fronteiriças”, por exemplo, os historiadores da educação ou da ciência, são plenamente reconhecidos como historiadores. Ou seja, ficava definitivamente afastada qualquer leitura de “reserva de mercado”. A intenção da ANPUH e dos diversos historiadores que apoiam o projeto, na verdade, sempre foi de uma forma geral muito nobre: acredita-se que a regulamentação da profissão pode gerar mais empregos, estimular o interesse dos jovens pela área, evitar casos de assédio moral em ambientes de trabalho, promover o reconhecimento social da profissão, combater a precarização neoliberal, conferir segurança jurídica aos profissionais e contribuir para a qualificação da historiografia produzida no país – e é possível que muitos desses benefícios se concretizem se o projeto virar lei, o que explica o fato de tantos historiadores formados (eu me incluo nesse grupo) serem a favor da regulamentação.

Por outro lado, existe um risco significativo no projeto de lei que agora espera a assinatura do presidente Jair Bolsonaro: o item “V” do Art. 3º. Esse item estabelece que o exercício da profissão de Historiador, em todo o território nacional, é assegurado aos “profissionais diplomados em outras áreas que tenham exercido, comprovadamente, há mais de 5 (cinco) anos, a profissão de Historiador, a contar da data da promulgação desta Lei”.

Não consegui identificar qual parlamentar propôs a alteração, mas a novidade apareceu durante os debates sobre a questão realizados na Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP), no âmbito da Câmara dos Deputados. O Senador Edison Lobão, Presidente daquele grupo de trabalho, e a Senadora Gleisi Hoffimann, Relatora “ad hoc” do mesmo, explicam do seguinte modo a mudança:

“Trata-se de uma correção justa, frequente nas regulamentações de profissões, no sentido de preservar direitos adquiridos e valorizar profissionais que já se encontram no mercado de trabalho, em exercício da profissão que se pretende regulamentar. É o caso, bem lembrado na CTASP da Câmara, dos professores de história do ensino fundamental: muitos são formados em outros cursos da área de ciências humanas”. (veja aqui o quadro comparativo entre o projeto original, de 2009, e o substitutivo, de 2015).

Paulo Paim é Senador pelo Partido dos Trabalhadores, Rio Grande do Sul.

Inicialmente, este item contempla não só os mencionados docentes, como bem apontado acima, mas também profissionais de áreas vizinhas da “História”, tais como sociólogos, internacionalistas, comunicadores, filósofos, bibliotecários, museólogos e arquivistas e professores com diferentes formações – profissionais qualificados que, de fato, podem desenvolver algumas atividades descritas pelo projeto de lei como atribuições do historiador, a saber: organização de informações para publicações; exposições e eventos sobre temas de História; planejamento, organização, implantação e direção de serviços de pesquisa histórica; assessoramento, organização, implantação e direção de serviços de documentação e informação histórica; assessoramento voltado à avaliação e seleção de documentos para fins de preservação; elaboração de pareceres, relatórios, planos, projetos, laudos e trabalhos sobre temas históricos.

Porém, existe uma ranhura nesse item do projeto de lei que requer cautela, uma espécie “efeito colateral” que pode surgir caso a regulamentação seja aprovada por Bolsonaro: ele facilita a obtenção do registro profissional por pessoas comprometidas apenas com agendas políticas, bastando demonstrar que nos últimos cinco anos atuaram como historiadoras. Nenhuma formação específica em história é demandada neste caso. O registro seria uma forma de obterem autoridade e legitimidade.

Com ou sem formação em história, sempre é possível que um profissional atue sem ética, tendo em vista apenas projetos políticos. Mas observando o contexto em que vivemos, este item do projeto facilita muito a vida de um grupo bastante antiético que vem ganhando terreno no país e no mundo.

Usos políticos da história

Nos últimos cinco anos, o Brasil, seguindo uma tendência global, testemunhou o avanço de movimentos e grupos ultraconservadores e autoritários que utilizam a história como forma de legitimação de suas práticas políticas. Esses grupos são os principais formuladores de diferentes tipo de negacionismos históricos – produzem narrativas históricas que negam ou relativizam o racismo, a escravidão, a homofobia, os direitos humanos, o Holocausto, a ditadura militar, o desmatamento e a desigualdade social, dentro outras questões sociais importantes para o campo historiográfico.

Negam, mentem ou distorcem o passado com a finalidade de proteger privilégios simbólicos e materiais que reconhecem estar perdendo diante da consolidação, nos últimos anos, de narrativas históricas mais inclusivas, emancipatórias e marcadas pela diversidade. No Brasil, a exemplo de outros países, esse reativo grupo chegou ao poder e já ocupa cargos de relevo em todo o Estado.

Uma vez que a história produzida por esses indivíduos e grupos é uma história falsificada e, portanto, carente de idoneidade acadêmica, a obtenção do registro profissional poderá funcionar como um atalho para lograr a tão perseguida chancela profissional, agora reconhecida pelo Estado – por mais que se viva hoje uma era de anti-intelectualismo e anti-cientificismo, tais indivíduos têm consciência de que a chancela intelectual e científica são fundamentais para dotar seus projetos de autoridade.

Enquanto as universidades públicas enfrentam cortes expressivos de receitas, contingenciamento, tetos de gastos, diminuição de bolsas de estudos, interrupções de concurso públicos e outros desinvestimentos, empresas privadas especializadas na produção narrativas históricas negacionistas têm avançado em diversas frentes. Podem assumir muitas formas: produtoras de vídeos, sites, revistas, perfis de redes sociais, editoras, periódicos, agências de consultorias e assessorias.

“O item “V” do Art. 3º do aprovado projeto de lei que regulamenta a profissão de historiador no Brasil abre uma brecha para que profissionais desvinculados da ética e das regras do ofício possam receber muito facilmente a chancela de historiadores profissionais, haja vista que a lei, caso sancionada, observaria, de acordo o referido item, apenas o desempenho de funções descritivas, dispensando a obrigatoriedade, neste caso, de formação profissional em História ou área equivalente. O item “V” do Art. 3º faz, assim, com que a força da lei sobreponha-se a força do campo.

A possibilidade da criação de um Conselho Federal ou de conselhos regionais de história, algo que até o início da década passada assustava até mesmo os que defendiam a regulamentação da profissão, pode surgir nesse momento como um mecanismo de contenção de práticas desonestas de escrita da história. Contudo, mesmo que tais conselhos existam, que poder eles realmente teriam e o que impediria concretamente que esses conselhos, tomados então como impedimentos de arbitrariedades, não caiam nas mãos dos negacionistas, tornando-se mais um instrumento para a legitimação de suas práticas políticas?

Sanção presidencial: o que esperar?

O presidente Jair Bolsonaro sancionará o projeto de lei aprovado pelo Senado Federal? Muitos de meus colegas historiadores acreditam que não. E com razão, afinal de contas, a Associação Nacional de Historia, uma das grandes interessadas na aprovação do projeto, têm promovido uma aberta oposição ao atual governo. Além disso, a prática de regulamentação de profissões vai contra o neoliberalismo que orienta a gestão Bolsonaro.

Mas o que tem acontecido, na verdade, é o contrário. Em novembro de 2019, o governo federal revogou além de artigos da Consolidação das Leis Trabalhistas, uma série de leis específicas que determinavam a obrigatoriedade de registro profissional para diversas carreiras. No total 11 categorias profissionais foram afetadas: jornalista, artista, corretor de seguros, publicitário, atuário, arquivista e técnico de arquivo, radialista, estatístico, sociólogo, secretário, guardador e lavador autônomo de veículos. O registro junto às Superintendências Regionais de Trabalho não será mais exigido para nenhuma delas, o que gerou diversas denúncias de precarização profissional por parte de associações que representam esses profissionais. Para neoliberais, conselhos, marcos regulatórios e registros profissionais emperram a economia e oneram o Estado.

Porém, existe uma possibilidade significativa de que Bolsonaro sancione a regulamentação da profissão de historiador, contrariando a lógica que até agora tem regido a sua administração: muitos dos grupos negacionistas que citei anteriormente apoiam o seu governo. São eles que produzem insumos que energizam o atual governo. Se Bolsonaro sancionar o projeto de lei aprovado este ano, temos um indicador talvez de que esses indivíduos e grupos, sobretudo os que operam dentro da chave negacionista, podem estar mais próximos do poder em Brasília do que se imaginava. A conferir.

Como citar este artigo

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Regulamentação da profissão de historiador no Brasil: muitas oportunidades e um risco considerável (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/regulamentacao-da-profissao-de-historiador-riscos-oportunidades/. Publicado em: 24 fev. 2020. ISSN: 2674-5917. Acesso: [informar a data].

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