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Descolonizar a Idade Média: Heloísa não foi uma mulher “à frente de seu tempo”

Dizer que algo se situa à frente de seu tempo é dizer que “algo está fora do lugar”. Esse enunciado bastante comum em nosso cotidiano expressa os sentidos de um tempo progressivo e linear, além de uma forma de situar pessoas e acontecimentos num lugar que lhes seria de direito. Tenho chamado essa operação de tirania do contexto, isto é, uma história que está presa à continuidade e que dispensa os desvios, os abusos e as descontinuidades.

Esse modo de pensar a história é uma operação de uma temporalidade colonizada, produto do olhar iluminista e eurocêntrico sobre os outros e, particularmente, sobre a Idade Média, que é a vista como a “infância das nações” ou como uma época afeita à fantasia, à religiosidade e as guerras. Quando falamos em uma Idade Média “colonizada”, queremos dizer que ela se tornou um outro negativo da razão moderna e da sociedade burguesa e iluminista. E é dessa engenhosa operação que o tempo se tornou evolução, progresso e linha, excluindo mulheres como Heloísa de Argenteuil (saiba mais sobre a sua história aqui) para fora da Idade Média, estando à frente do seu tempo.

Abelardo e sua pupila Heloise, por Edmund Leighton, 1882.

A suposição de que há corpos e acontecimentos fora do lugar está fundada na ideia de que um período, uma época, uma mentalidade ou coisa parecida, é monolítica, como se somente existisse uma experiência do tempo em cada momento histórico determinado. Significa dizer ainda que algo é incapaz de ser explicado pelo seu contexto.

A Idade Média, portanto, seria reduzida ao tempo das guerras, das violências, dos homens, da religião e do domínio inconteste da Igreja Católica. Nesse espaço, nem Heloísa nem o amor profano seriam possíveis ou simplesmente estariam à frente do seu tempo. 

O que quero argumentar é que nada existe fora do seu tempo. Uma existência em si cria sua própria temporalidade. Logo, a experiência temporal é diversa, somente pensamos em eras, épocas, contextos, em razão do processo de produção de uma narrativa histórica que é tributária de uma política do tempo, recortando a realidade em função de lutas e disputas de poder.

Portanto, se formos pensar numa época como a Idade Média e procurar nos aproximarmos da diversidade de experiências que lá se deram, a fim de aprender com tudo o que foi lá criado, pensaríamos o tempo medieval como uma quantidade inumerável de experiências, irredutíveis a uma linha ou a um contexto. Logo, é possível supor que na Idade Média tivemos tanto a violência, a guerra e o patriarcado, quanto a universidade, a paz, o amor profano e Heloísa e muito mais que ainda nem sabemos.

Heloísa, portanto, não era uma mulher à frente de seu tempo, ela apenas parece ter sido um acontecimento, um corte em uma temporalidade dominante, de onde se supunha que as mulheres poderiam ser objetos do pai, depois do marido e, por fim, do padre, sem uma subjetividade e, sobretudo, incapazes de pensar, estudar, escrever, filosofar.

Mas, o fato é que Heloísa foi uma existência, acontecimental, certamente, mas uma existência nem à frente, nem num contexto, nem em débito com sua época. Heloísa simplesmente nos faz suspender a ideia de uma época, de uma mentalidade, de um contexto ou de uma Idade Média da qual se pode escolher 4 ou 5 características para descrever. Heloísa nos põe inquietos, pois ela pensou, amou, sofreu por amor e enfrentou os perigos de uma mulher que ama e é amada.

O que inquieta é justamente o fato dela nos fazer duvidar das explicações e das interpretações generalizantes e contínuas que damos a uma época como a Idade Média. A solução mais fácil é destacar Heloísa do medievo e colocá-la à frente do seu tempo.

Ora, isso só pode ser aceito como verdade no interior de um pensamento e de uma temporalidade colonizada, que observa o passado desde um presente mais evoluído e que, a partir de uma arrogância iluminista, enterra o medievo nas trevas, destacando dele toda e qualquer existência que esteja desviada da linha contínua e reta. Se falo, portanto, em temporalidade colonizada, é porque o presente tem a capacidade de colonizar o passado.

Heloísa pertence a Idade Média, da mesma forma que a Igreja Católica

De qualquer modo, aceitar que Heloísa é tão medieval quanto a própria Igreja Católica, é um modo de “descolonizar a Idade Média”, mas também a nossa própria experiência do tempo e o modo como narramos o passado. O medievo é bifurcado, labiríntico, atravessado por experiência múltiplas. Heloísa é apenas uma delas. Radicalmente acontecimental, porque não se deixou reduzir aos clichês, nem ao contexto, nem ao modelo masculino e misógino. Heloísa amou Abelardo. Foi amada por ele. E o amor dos dois ultrapassou os limites de uma identidade, de uma materialidade e da própria carne, para se instalar na eternidade do acontecimento, a dividir o presente em passado e futuro, escapando sempre as definições e as narrativas que a tentaram prender e a identificar como uma mulher à frente do seu tempo.

Entretanto, muito menos se pode pensar em uma Heloísa de Abelardo, modo como de costume são apresentadas as mulheres. A Heloísa medieval, a Heloísa acontecimento, teve uma existência independente do grande filósofo Abelardo, acusado e condenado por heresia pela Igreja e que desenvolveu e problematizou um dos temas mais relevantes da história da filosofia, a questão dos Universais. A Heloísa de que falo é essa descrita pelas mãos de Patrícia Rangel , num artigo interessante chamado “A abadessa infiel e o cavaleiro apóstata”, onde a autora se pôs a demonstrar as ideias e os feitos de uma mulher, como a nos deixar a ver uma experiência singular e acontecimental, medieval sim, mas descontínua e surpreendente de Heloísa.

Portanto, uma vez liberado o tempo das representações cristalizadas que dele fizemos e de uma certa “tirania do contexto”, temos uma abertura para todas as Heloísas. Olhar para a Idade Média sem o peso da ideia de evolução e progresso nos permite acessar esse passado de outro modo e pensá-lo em sua potência para problematizar o presente e se abrir ao futuro. Uma vez que o tempo não é linha, mas “emaranhado”; não é sucessão, mas “coexistência”; não é ordem, mas “variação infinita”, uma série de consequências se introduzem na discussão sobre o papel da Idade Média nos currículos escolares da escola básica, por exemplo, e, nesse momento, Heloísa é tão  medieval quanto Abelardo, mas tão histórica e protagonista de si mesma quanto as mais pesadas estruturas feudais.

O encontro de uma sala de aula com Heloísa dá vazão a “histórias menores”, pensando o tempo como um emaranhado que faz os acontecimentos serem multitemporais, dialogando simultaneamente com presente e futuro, sendo o futuro  a dimensão ética guardada no elemento do passado que percorre o presente como resíduo. Aprender com Heloísa é tanto aprender sobre o medievo, quanto aprender sobre mulheres hoje, pois Heloísa é um passado vivo e acontecimental. Mas, para percebê-la, é preciso silêncio, porque aprender guarda, em si, o elemento indecifrável do silêncio – o silêncio que nos faz escutar o grito dos poetas-cantores galego-portugueses, de “menor categoria social”, entoando cantigas de escárnio; o silêncio que faz aparecer Joana d’Arc, mulher e guerreira; o silêncio que nos mostra a insubordinação dos Puros (cátaros); o silêncio que nos faz ouvir os gritos dos camponeses; o silêncio que rompe com a onipresença da Igreja e faz aparecer as heresias; o silêncio que abriga o grito dos poetas trovadores nordestinos, num ruminar da Idade Média em pleno Sertão.

Enfim, é um silêncio que, deixando em seu rastro o mistério da aprendizagem, oferece encontros improváveis com o medievo, afirma suas “pulsantes” experiências, deixando que se escutem as histórias menores e dando visibilidade aos resíduos que embaralham nossas concepções temporais.

Referências Bibliográficas

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1998.

DUBY, Georges. O cavaleiro, a mulher e o padre. Tradução de G. Cascais Franco. Lisboa: Editora Dom Quixote, 1988.

FOUCAULT, Michel. Soberania e Disciplina. In: Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

PELBART, Peter Pál. A vertigem por um fio: políticas da subjetividade contemporânea. São Paulo: Iluminuras, 2000.

RANGEL, Patrícia. A abadessa infiel e o cavaleiro apóstata. Belo Horizonte. Revista de Estudos Hum(e)anos. Número 0, 2010/01. P. 74 a 95.

ZUMTHOR, Paul. Correspondência de Abelardo e Heloísa/ texto apresentado por Paul Zumthor e traduzido por Lucia Santana Martins. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Como citar este artigo

PEREIRA, Nilton Mullet. Descolonizar a Idade Média: Heloísa não foi uma mu-lher “à frente de seu tempo”. In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/descolonizar-a-idade-media/‎. Publicado em: 7 jul. 2019.

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