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Por que há pessoas que negam o Holocausto?

Mesmo os nazistas tendo destruído parte de seus arquivos nos momentos finais da guerra, a quantidade de documentos que ajudam a contar a história do Holocausto é hoje abundante. Esses documentos foram encontrados por promotores aliados já no imediato pós-guerra e, depois, por historiadores. Além disso, a história do massacre dos judeus é contada pelos testemunhos de soldados, de fugitivos, por relatos da imprensa, por ofícios enviados por agentes do serviço secreto e, claro, pelas memórias dos sobreviventes. Examinado em filmes, peças de teatro, livros didáticos, pesquisas historiográficas e documentários, o assassinato em massa de judeus durante a Segunda Guerra Mundial se tornou um dos grandes eventos do nosso tempo. Apesar disso, é possível encontrar pessoas que negam veementemente o Holocausto. Mas por que isso acontece?

Diferentes “negacionistas”

Não há uma resposta única para essa pergunta. Há diferentes grupos e indivíduos que negam o Holocausto, cada qual com um motivo e propósito particulares. O ex-presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad (2005-2013), por exemplo, já levantou várias dúvidas quanto a existência do Holocausto. Ele fez isso quando ainda era presidente, tanto em entrevistas à imprensa quanto em discursos públicos. Ahmadinejad, assim como alguns grupos árabes extremistas, negam o Holocausto tendo em vista o contexto do conflito árabe-israelense. A negação, neste caso, é parte de um esforço em deslegitimar o Estado de Israel, criado em 1948. Tais grupos acreditam que Israel só existe por causa do Holocausto (algo que a historiografia desmente), logo, questionar o Holocausto é uma forma de negar o direito de existência do Estado de Israel e o projeto nacional judaico.

“Holocausto: a grande mentira”. Cartaz em manifestação de rua. Fonte: Museu do Holocausto de Washington.

A negação do Holocausto também é encontrada no campo da extrema-esquerda. É possível encontrar nesse quadrante ideológico grupos que acusam “os judeus” de inflacionarem o número de mortos a fim de justificarem indenizações financeiras, o aparato bélico e o uso da violência por parte do Estado de Israel contra as populações palestinas. Aqui, mais uma vez, a negação do Holocausto é uma forma de deslegitimar o Estado de Israel no contexto do conflito entre israelenses e palestinos. Na ultra-esquerda, a negação do Holocausto, explica o historiador Luís Edmundo de Sousa Moraes, é feita principalmente por grupos bordiguistas franceses. O “bordiguismo”, esclarece Moraes, tem origem no pensamento de Amadeo Bordiga, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano. Até os anos 1970 Bordiga participou da fundação de diversos grupos de extrema-esquerda.  

No campo religioso, a negação do Holocausto é feita por católicos superconservadores, que se inspiram em um antigo ressentimento antissemita: os judeus carregam a culpa pela crucificação de Cristo. É o caso de alguns católicos lefebvrianos, como são chamados os seguidores do bispo tradicionalista Marcel Lefebvre. Esse antissemitismo católico acredita que os judeus são maquiavélicos, controladores, traíras, conspiradores, uma ameaça a civilização ocidental e cristã. O Holocausto é visto por eles como mais uma dessas mentiras, a maior de todas, que visaria, segundo acreditam, obter a simpatia da sociedade a fim de dirimir o miasma que carregam pela morte de Cristo. Desvelar essa “mentira”, portanto, seria desnudar outras tantas mentiras contadas pelos judeus. 

Em 2010, um tribunal alemão condenou o bispo católico tradicionalista Richard Williamson a uma multa de 10.000 euros (13.500 dólares) por negar o Holocausto nazista. O caso ficou muito famoso. Um ano antes, em 2009, Williamson dissera em entrevista a um canal da TV sueca que “de 200 mil a 300 mil judeus morreram nos campos de concentração, mas nenhum nas câmaras de gás” – de acordo com a historiografia, cerca de seis milhões de judeus foram mortos no Holocausto. O tribunal alemão que julgou Williamson entendeu que o negacionismo do religioso era uma incitação ao ódio. 

Finalmente, temos os negacionistas de extrema-direita. Esse grupo (na verdade, há vários grupos) é o mais importante porque é o mais poderoso (tem mais recursos), o mais organizado e o que faz da negação uma empreendimento sistemático. Quando nós, historiadores e historiadoras, falamos em “negacionismo” ou “negacionistas”, estamos quase sempre nos referindo a negação do Holocausto por parte da extrema-direita.

O ator Timothy Spall interpreta o escritor negacionista David Irving no excelente “Negação”, disponível no Netflix. O filme fala do embate jurídico nos anos 1990 entre Irving e a historiadora Deborah Lipstadt.

Diferente de outros negacionistas que vimos até agora, os negacionistas de extrema-direita produzem artigos, publicam livros, fazem palestras, eventos e fundam instituições com o objetivo de produzir narrativas voltadas para o grande público. Essas narrativas negacionistas buscam simular a produção historiográfica na sua forma, isso é, os negacionistas tentam produzir algo que pareça com o trabalho do historiador. Eles querem ser vistos como historiadores, tanto que muitos se proclamam “revisionistas”. Contudo, esse material não é uma revisão, mas uma falsificação, carecendo de todos os elementos que caracterizam a historiografia e o trabalho do historiador: fontes, metodologia, controle dos pares, escrita ética, debate historiográfico, reconhecimento acadêmico e, principalmente, verdade histórica. Há materiais negacionistas que até usam documentos. Mas é justamente nesses casos em que a mentira e falta de ética fica mais escancarada, pois tais documentos são utilizados de maneira distorcida ou fora de contexto.

Mas por que tanto esforço em negar um dos crimes mais conhecidos e documentados da história moderna e contemporânea? No caso da extrema-direita, a negação do Holocausto é a condição para que esse grupos possam tornar seus projetos políticos aceitáveis socialmente. O fascismo, embora não tenha acabado com a guerra, sofreu uma grande rejeição pública, O Holocausto, afinal de contas, é produto do fascismo. Para tornar projetos fascistas novamente uma opção, inclusive partidária, esses grupos precisam encarar um desafio: desatrelar o fascismo do Holocausto. Se o Holocausto for negado ou, ao menos, relativizado, o projeto de um novo fascismo se fortalece. 

Fenômeno complexo

Todos esses grupos (radicais islâmicos, extremistas católicos, ultra-esquerda, extrema-direita) podem ter mais de um motivo para negar o Holocausto. Na extrema-direita, por exemplo, a negação pode ter a ver não só com a revalidação do projeto fascista, mas também com racismo, xenofobia, crenças religiosas e consipiracionismos. No caso de radicais católicos, crenças políticas conservadoras podem explicar também a negação. O filósofo Roger Garaudy, antigo líder dos intelectuais comunistas franceses, personagem icônico entre os negacionistas, era reverenciado pelo regime islâmico iraniano.

O que todas essas negações têm em comum? Nenhuma é despretenciosa e nem fruto de pesquisa histórica: são ações politicamente interessadas. O negacionismo está em todos os lugares: nos Estados Unidos, na Alemanha, na Argentina e na França. No Brasil, há alguns anos, um editor chegou a ser condenado a quase dois anos de reclusão pela justiça do Rio Grande do Sul por publicar livros que negavam o Holocausto. Um de seus livros se chamava “Holocausto Judeu ou Alemão? Nos Bastidores da Mentira do Século”.

Refletir sobre o fenômeno do negacionismo

Negar o Holocausto não é apenas falsificar o passado. Quem nega o Holocausto, fortalece os extremismos, permite a ascensão do fascismo, fere profundamente todos aqueles e aquelas que pereceram nas mãos dos nazistas e os que sobreviveram para contar suas experiências e dores. Rechaçar o negacionismo não significa ignorar as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado de Israel; pelo contrário: repudiar o negacionismo (e os negacionistas) é um ato em defesa da história, do conhecimento e, principalmente, dos direitos humanos, pois o Holocausto é um evento chave para se compreender diferentes violências e violações da dignidade humana. Por fim, pensar o negacionismo do Holocausto é uma forma para pensarmos outros negacionismos: da ditadura militar, da tortura, da desigualdade social, do genocídio indígena, da escravidão e outros tantos. 

Referências Bibliográficas

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. O negacionismo do Holocausto na internet: o caso da “Metapédia – a enciclopédia alternativa”. Faces da História, v. 3, n. 1, p. 5-23, 2016.

CASTRO, Ricardo Figueiredo de. O Negacionismo do Holocausto: pseudo-história e história pública. Resgate: Revista Interdisciplinar De Cultura, v. 22, n. 2, p. 5-12, 2014.

LIPSTADT, Deborah E. Negação: uma história real. São Paulo: Universo dos Livros, 2017.

MILMAN, Luis. Neonazismo, negacionismo e extremismo político. Editora da Universidade, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2000.

MORAES, Luís Edmundo de Souza. O negacionismo e o problema da legitimidade da escrita sobre o passado. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História, 2011.

MORAES, Luis Edmundo de Souza. Negacionismo: a extrema direita e a negação da política de extermínio nazista. Revista Tempo Presente. Universidade Federal Fluminense, RJ, 2013.

CALDEIRA NETO, Odilon. Intolerância e Negacionismo: Sérgio Oliveira e Revisão Editora. Revista História e-história, 2009.

Como citar este artigo

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Por que há pessoas que negam o Holocausto?(Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/por-que-negam-o-holocausto/. Publicado em: 30 dez. 2019. ISSN: 2674-5917. https://www.cafehistoria.com.br/por-que-negam-o-holocausto/

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