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A medicina não é suficiente: por que precisamos das ciências sociais para acabar com essa pandemia

Por mais duras que sejam, as medidas de confinamento social para evitar o contágio funcionam. Este é o resultado de uma pesquisa publicada na revista “The Lancet Infectious Diseases”, na qual os autores concluem que a quarentena de pessoas com COVID-19, juntamente com o fechamento de centros educacionais e o distanciamento das pessoas no local de trabalho, são medidas efetivas para reduzir o número de casos da doença.

O estudo avalia o efeito potencial dessas ações em Cingapura, um dos primeiros locais a relatar casos importados de COVID-19. 

Em outra análise publicada na mesma revista, os pesquisadores Joseph A. Lewnard e Nathan C. Lo, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, enfocam a dimensão ética do confinamento social. “É importante enfatizar que os líderes políticos devem adotar políticas de quarentena e de distanciamento social que não gerem preconceitos contra nenhum grupo social. Os legados de injustiças sociais e econômicas perpetrados em nome da saúde pública têm repercussões duradouras”, alertam os pesquisadores.

A pandemia do novo coronavírus é uma questão não só de profissionais da saúde, mas também das ciências humanas. Foto Engin Akyurt on Unplash.

Os pesquisadores se referem a possíveis reduções na renda e no aumento do desemprego como fatores que afetam desproporcionalmente as populações menos favorecidas, e pedem políticas para reduzir esses danos sociais. Esses grupos mais vulneráveis incluem sem-tetos, prisioneiros, idosos, pessoas com deficiência e migrantes irregulares.

Em emergências de saúde como a que estamos enfrentando atualmente, os especialistas em ciências sociais se esforçam para que tais medidas não deixem ninguém para trás. “Se quisermos superar esse vírus, precisaremos da experiência e do conhecimento de uma ampla variedade de disciplinas, desde ciências sociais e humanas até medicina, biologia e engenharia”, diz Hetan Shah , diretor executivo da Academia Britânica.

Medidas mais humanas

Em um artigo publicado na revista “Nature” em meados de janeiro, quando o coronavírus (SARS-CoV-2) ainda não havia atingido a faixa pandêmica, Shah lembrou que as epidemias são fenômenos biológicos, mas também sociais, e destacou o papel da antropóloga Melissa Leach em sua luta contra o Ebola. Para reduzir o risco de contágio e respeitando o máximo possível as tradições das comunidades que estudava, Leach propôs a substituição de rituais de enterro por outros rituais mais seguros, ao vez eliminar completamente esse tipo de cerimônia religiosa local.

Como ela conseguiu fazer isso? Shah e sua equipe da “Plataforma de Antropologia da Resposta ao Ébola” em Serra Leoa reconheceram a importância social dos rituais religiosos nessas comunidades e conversaram com as suas lideranças a fim de substituir as cerimônias físicas por cerimônias não presenciais, pelo menos até o fim da crise.

“As medidas de saúde pública vacilaram, muitas vezes, por razões sociais e culturais”, lembrou a antropóloga depois que a epidemia foi superada. “Conseguimos combinar as medidas de emergência com as ciências sociais, ajudando a torná-las mais eficazes”, disse Leach, que lidera o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento (Reino Unido).

No caso da pandemia do novo coronavírus, segundo um editorial do “LSE Impact Blog” (leia um artigo deste blos já traduzido peloCafé História aqui), as ações de saúde pública para impedir a propagação do vírus, desde a lavagem das mãos, o autoisolamento social ou fechamento das cidades, exigem a contribuição da pesquisa social para serem eficazes.

As ciências sociais têm um papel fundamental na resposta a essa pandemia”, diz Shah, que destaca o perfil de dois tipos de profissionais das humanidades: psicólogos e economistas. Os primeiros sabem como promover comportamentos sociais que reduzem a propagação do vírus, enquanto os últimos podem aconselhar a administração pública e as empresas a enfrentar essa crise econômica.

E não é só isso. Esta é uma pandemia que envolve uma grande onda de boatos e desinformação. Os psicólogos explicam os mecanismos por trás dessas ações e como o nosso cérebro é influenciado por preconceitos e medos, o que pode nos levar a baixar a guarda diante de mentiras ou fazer com que lidemos mal com o conteúdo verdadeiro.

Lições aprendidas de epidemias anteriores

Para enfrentar a crise atual, os cientistas recomendam analisar o que foi feito em epidemias passadas. Um documento publicado pela plataforma Ciências Sociais em Ação Humanitária – promovido pelo UNICEF e pelo Instituto de Estudos para o Desenvolvimento – sintetizou 15 lições aprendidas das epidemias passadas de gripe e da SARS (uma doença respiratória causada por outro coronavírus em 2003).

Muitos dessas lições podem ser aplicadas no contexto atual, como, por exemplo, a transparência da informação. A retenção de informações do público, segundo este documento, pode ser muito prejudicial, pois se as pessoas não obtiverem esses dados de fontes oficiais, elas dependerão de meios não confiáveis. Na pandemia de Influenza A de 2009 (H1N1), a neutralidade da Organização Mundial da Saúde (OMS) foi questionada porque o público pensava que o risco havia sido exagerado em benefício das empresas farmacêuticas, que se beneficiariam do acúmulo de vacinas.

Para evitar que isso se repetia, os especialistas que prepararam o documento recomendam que as autoridades sejam transparentes sobre o que se sabe sobre a epidemia e também sobre as limitações dos dados. “Instituições, governos nacionais ou a OMS devem ser transparentes quanto ao seu compromisso com especialistas e a indústria farmacêutica para explicar como eles lidam com conflitos de interesse”, afirmam.

“No momento, existem ou deveriam existir cientistas sociais que aconselham governos e agências sobre as melhores estratégias a serem adotadas, como está acontecendo na OMS, por exemplo”, afirmou Annie Wilkinson, coautora do relatório e antropóloga do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento.

Outra medida é evitar estigmatizar certos grupos sociais ou nacionais, como aconteceu com os espanhóis na gripe de 1918, comumente chamada de “gripe espanhola”. No caso desta pandemia, originada na província de Hubei (China), as autoridades e a mídia conseguiram não rotular essa população, usando os nomes promovidos pela comunidade científica: COVID-19 para falar doença e SARS-CoV-2 para se referir ao vírus.

A pobreza dificulta o confinamento

De acordo com Manuel Franco, professor de Epidemiologia da Universidade de Alcalá, em Madri, e da Escola de Saúde Pública Johns Hopkins, nos Estados Unidos, em um artigo intitulado “Saúde urbana e crise dos coronavírus: no confinamento, a desigualdade é ampliada”, as diferentes medidas para conter a propagação do vírus não afetam igualmente toda a população e podem aumentar as desigualdades.

Nesse sentido, as autoridades de saúde e os antropólogos estão preocupados com a incidência dessa pandemia nos países em desenvolvimento, especialmente os da África, onde os sistemas de saúde são em geral frágeis e onde há pouca proteção social.

Grafiti urbano representa o medo do novo coronavirus. Photo by Adam Nieścioruk on Unsplash.

“Os desafios de gerenciar esta pandemia são enormes no continente africano, principalmente nos países de menor renda do planeta e onde as desigualdades globais de riqueza são mais pronunciadas”, revela Tamara Giles-Vernick , chefe da Unidade de Pesquisa em Antropologia de Emergências em Doenças do Instituto Pasteur (França) e coordenadora do Sonar-Global .

Além do provável aumento de casos em centros hospitalares, o que compromete o sistema de saúde, como ocorre em algumas partes da Europa, acrescenta-se no caso da África outros complicadores, como a falta de água em algumas regiões e áreas rurais. A falta de sistemas de esgoto, coleta de lixo ou limpeza urbana que algumas áreas sofrem também não ajudam a situação.

Apesar dessas limitações, Giles-Vernick enfatiza que é um erro referir-se à África como uma entidade única, sem reconhecer sua diversidade, e pede que se evite preconceitos. “Vejo alguns artigos na imprensa que apontam para a ‘cultura africana’ como uma barreira para o confinamento efetivo, mas devemos ser extremamente cuidadosos ao atribuir à ‘cultura’ o que, acima de tudo, pode ser um problema de pobreza e seus problemas e consequências ”, afirma.

As ciências sociais mostram que não é a cultura, mas pobreza, a principal barreira para alcançar medidas preventivas. E isso é algo que os vírus aproveitam.

Este texto foi originalmente publicado em espanhol com o título “La medicina no basta: por qué necesitamos ciencias sociales para frenar esta pandemia”, na Agencia Sinc

Como citar este artigo

CHAPARRO, Laura. A medicina não é suficiente: por que precisamos das ciências sociais para acabar com essa pandemia (Artigo). Tradução de Bruno Leal. In: Café História – História feita com clique. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/ciencias-sociais-novo-coronavirus-pandemia/. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 20 abr. 2020.

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