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Republicanos e democratas: uma breve história da polarização política nos EUA

Republicanos e democratas: uma breve história da polarização política nos EUA 1
“A eleição do condado” (1854), de  George Caleb Bingham, 1811 – 1879. A imagem retrata uma aglomeração em dia de eleição no século XIX. Imagem: Domínio Pú lico / Humanities.

A cada ciclo eleitoral nos Estados Unidos, uma pergunta acaba sempre reaparecendo: por que, numa nação de proporções continentais, existe tamanha polarização entre dois partidos políticos? Melhor dizendo: por que republicanos e democratas são as únicas organizações com chances reais de ganharem eleições executivas e legislativas há mais de um século? Afinal de contas, outras agremiações partidárias existiram (e existem!) e, alguns momentos, chegaram a deter relativo poder local em alguns estados. Ainda assim, a despeito dessa força, não conseguiram quebrar o duopólio republicano e democrata na política estadunidense e que, apesar da crescente crise no sistema político do país, não parece dar sinais de exaustão.  Com mais de um século de duração, essa divisão, em suas diferentes formas, continua sustentando o funcionamento da estrutura política nos Estados Unidos sem que se veja um fim para ela.

O sistema eleitoral norte-americano

Uma das respostas para a longa duração do bipartidarismo está no sistema eleitoral norte-americano, em que predomina, desde as reformas eleitorais da década de 1840, o voto distrital por maioria simples, sacramentado pela lei federal de 1967, que proíbe qualquer outro tipo de representação. Na prática, isso transforma os pleitos para os legislativos estaduais e o federal em eleições majoritárias, pois somente um único candidato pode ser escolhido por distrito, sempre definido geograficamente e sem segundo turno – o que enfraquece substancialmente a possibilidade de terceiras forças surgirem em estados controlados por um ou outro partido.[1]

Quando aliado ao chamado “gerrymandering”, isto é, a manipulação dos limites distritais para garantir a continuidade do domínio republicano ou democrata, esse mecanismo reforça a reprodução da polarização, ao mesmo tempo em que é estruturado por ela. Na percepção do pesquisador Sandy Maisel, isso gera, principalmente em cidades maiores e/ou distritos mais populosos, uma restrição da competição eleitoral aos principais partidos e, consequentemente, um empobrecimento das possibilidades de representação, sobretudo dos eleitores e eleitoras independentes.

Neste infográfico podemos ver como um distrito, dependendo da flexibilidade dos limites distritais, podem alterar a proporção do pleito. Isso é chamado, no inglês, de gerrymandering.

Finalmente, temos outra peculiaridade, tão americana quanto a torta de maçã e obsessão por armas de fogo: a existência de um Colégio Eleitoral, que decide as eleições para a Presidência, amparado pelo chamado princípio do “winner-takes-it-all”, ou seja, o partido eleito pela maioria simples dos habitantes de um determinado estado leva todos os seus votos na escolha para o Executivo federal, não importa quão tênue tenha sido a diferença entre o vencedor e o perdedor. Esse sistema, cujas raízes elitistas e antidemocráticas são manifestas, desestimula a pluralidade partidária efetiva, pois concentra poder nas mãos dos partidos dominantes, além de criar distorções, como, por exemplo, a sobre-representação da América rural em relação à urbana e a escolha de Presidentes derrotados no voto popular (ocorrida em 1824, 1876, 1888, 2000 e 2016), que são corrosivas à própria democracia no longo prazo. A crescente insatisfação dos norte-americanos com essa estrutura é um indício de suas limitações para o século XXI.

Uma antiga característica política

Por outro lado, a polarização política tem sido uma característica norte-americana desde a crise que levou à Guerra de Independência e seus desdobramentos posteriores, sendo o mais importante deles o conflito entre “patriotas” e “lealistas” cedendo, após 1783, à luta entre federalistas e jeffersonianos e, mais tarde, democratas e whigs.

O mote desses confrontos era, primeiramente, a questão da organização nacional (a extensão do poder federal, em particular); a predominância de um dos setores econômicos, agricultura e indústria, sobre o outro; a extensão do sufrágio e dos direitos eleitorais; a expansão continental; e, por fim, a escravização de seres humanos. Em linhas gerais, os federalistas, e os whigs posteriores, defendiam um Executivo federal com um papel crucial no fomento ao crescimento econômico e o favorecimento da indústria local contra a britânica. Eles também viam com maus olhos a dilatação do território nacional, eram ambíguos quanto à escravidão e suspeitavam da “tirania da maioria” simbolizada, aos seus olhos, pelas administrações de Thomas Jefferson, presidente entre 1801 e 1809, e Andrew Jackson, que governou de 1829 a 1837.

Datado do século XIX, mapa mostra os resultados eleitorais da eleição presidencial de 1880. Aquele ano pode ter sido o primeiro a registrar a polarização político-partidária entre democratas e republicanos em larga escala. Fonte: Cortesia da Bibloteca do Congresso.

Já os seus opositores, os jeffersonianos, chamados de “democratas” depois de Jackson, depositavam sua fé no “homem comum” contra o governo, suspeitando do alargamento de suas funções e instituições[2]; desejavam a marcha a Oeste e a extensão das fronteiras dos Estados Unidos, incluindo a remoção das populações nativas e o embate com adversários estrangeiros – como visto na Compra da Louisiana (1803), nas guerras indígenas empreendidas por Jackson e na Guerra Mexicano-Americana (1846-1848). Os jeffersonianos eram agrarianistas contrários a qualquer benefício à indústria em detrimento da agricultura; e, no Sul, eram ardorosos defensores da escravidão. Essas divergências, que podiam ter variações locais, foram recorrentes a toda primeira metade do século XIX. A crise da década de 1850, contudo, reorganizaria o sistema partidário e daria fôlego renovado à polarização, agora sob outra forma.

Com o agravamento das tensões entre Sul e Norte a respeito da expansão da escravidão, e entre os próprios abolicionistas sobre as melhores maneiras de se acabar com o império do Rei Algodão, o partido Whig, sempre recalcitrante sobre o tema, colapsou internamente, e surgiu o Partido Democrata, dividido em duas alas, uma moderada, dedicada a preservar os compromissos que davam base à União e com força em cidades como Nova York e Philadelphia, e outra, centrada nos estados sulistas, radicalmente pró-escravidão. Do realinhamento político ocorrido nesse período, surgiu também o Partido Republicano. Fundado em 1854 ele foi resultado da aliança entre whigs e democratas anti-escravocratas, nativistas do velho Know Nothing Party, protecionistas e fazendeiros livres do Oeste. O que lhes dava um ímpeto comum era tanto o temor de uma extensão incontrolada da escravidão para além dos limites do Sul quanto a necessidade, no seu entendimento, de uma modernização econômica dos Estados Unidos, sintetizada na famosa afirmação de Abraham Lincoln de que uma casa não podia ser meio-livre, meio-escrava ao mesmo tempo. “Tornar os homens livres”, lembra Heather Cox Richardson, era o resumo ideológico do novo partido, eleito à Presidência, com Lincoln, em 1860.

Esse triunfo marcaria o início da Guerra Civil e, após seu encerramento, do longo controle republicano no Executivo federal que duraria até 1933 e que seria concomitante à consolidação, depois do fim da Reconstrução, do domínio democrata no Sul segregacionista e supremacista branco – um virtual regime de partido único, graças à supressão de votos, perseguição de opositores, corrupção e violência política generalizada comum à região naqueles dias.

Tickets do Partido Republicano; União Nacional e o candidato Abraham Lincoln nas eleições de 1860 e 1864. (Biblioteca Do Congresso)

As linhas de divisão, nesse contexto, se alteraram: de um lado, os republicanos, encorajados pela vitória da União contra os estados sediciosos, radicalizaram sua plataforma de modernização econômica, promovendo uma política de protecionismo econômico, investimento em infraestrutura de transportes e comunicação, expansionismo imperial e defesa do big business; de outro, os democratas apresentavam uma improvável coalizão entre a classe operária urbana, homens de negócios (os Bourbon Democrats) e os sulistas, muito embora suas divisões internas fossem pronunciadas: em alguns estados, os conflitos intrapartidários dos democratas eram mais acerbos do que aqueles entre eles e seus tradicionais adversários republicanos. Essa era, na verdade, uma condição de ambas as agremiações: como eram agremiações de massa, sem fundamentos ideológicos específicos (ao contrário, por exemplo, do Partido Socialista), suas disputas interiores eram bastante aguerridas, pois os dois possuam alas conservadoras que antagonizam, a seu modo, com elementos mais reformistas/progressistas.

Desta forma, embora republicanos e democratas estivessem à direita do espectro político, podiam, em alguns momentos (como no movimento antitruste da década de 1880 ou no apoio a certas exigências dos trabalhadores urbanos) terem setores mais à esquerda, até como forma de contenção de desafios à ordem estabelecida – um “reformismo conservador” que acomodava avanços sem, contudo, questionar a estrutura socioeconômica maior. E ambos também não hesitavam em reprimir, ou dar seu apoio à repressão, duramente o movimento operário quando necessário, como visto durante as grandes greves de 1886 e 1894.  Até os anos 1930, quando o Partido Democrata migra, em política interna, para o centro, com algumas alas de centro-esquerda, nenhuma das duas agremiações podia ser considerada genuinamente de esquerda.

Uma terceira força questiona o duopólio

Nem sempre o duopólio ficou inquestionado. Durante a década de 1890, uma terceira e importante força emergiu para confrontar republicanos e democratas: o Partido do Povo (People’s Party), centrado nas demandas de pequenos fazendeiros do Oeste e do Sul e dos operários das cidades do Norte e Leste e contraposto ao conservadorismo dos partidos dominantes. Na sua famosa Plataforma de Omaha (1892), que sumarizava a “insurgência” política populista, como a chamou Lawrence Goodwyn, o Partido do Povo acusava o governo de ser um instrumento dos ricos, denunciava a repressão contra o proletariado e exigia, dentre outras coisas, a nacionalização das ferrovias, uma reforma agrária e um imposto de renda para financiar essas reformas.

Convenção de nomeação de candidatos do Partido do Povo realizada em  Columbus, Nebraska , 15 de julho de 1890. Foto: Solomon D. Butcher (1856-1927) – Biblioteca do Congresso

Nas eleições daquele mesmo ano, Benjamin Weaver, seu candidato, recebeu mais de um milhão de votos, mas, dadas as já mencionadas particularidades do sistema eleitoral norte-americano, os populistas elegeram somente onze deputados federais (e nenhum senador) – demonstrando, assim, a impossibilidade real de uma terceira força em quebrar a hegemonia democrata-republicana. Apesar disso, nos anos seguintes, tiveram êxitos circunstanciais, como no Alabama e na Carolina do Norte, onde brancos pobres e negros se uniram em aliança contra as oligarquias estaduais. Ainda assim, e sobretudo após a derrota nas eleições de 1896[3] e o massacre de Wilmington, em 1898, quando os democratas depuseram o governo populista eleito para o governo daquela cidade e assassinaram, em represália, vários de seus moradores afro-americanos, o Partido do Povo colapsou e desapareceu da cena política estadunidense. Somente em 1912, com a candidatura do socialista Eugene Debs, um terceiro partido à esquerda voltaria a ter uma votação expressiva à Presidência.

De Realinhamento em Realinhamento, tudo volta para o lugar

A partir da década de 1930, ocorreria um novo realinhamento: com o New Deal de Franklin Delano Roosevelt, os democratas finalmente consolidariam seu poder entre a classe operária, com os sindicatos tornando-se um dos pilares da nova coalizão, e aumentariam progressivamente sua presença entre afro-americanos e a classe média intelectualizada; enquanto isso, os republicanos organizaram uma duradoura aliança anti-New Deal composta pelo big business, fazendeiros do Oeste, setores médios, protestantes e conservadores mais extremados que duraria por trinta anos, mais ou menos. A partir dos anos 1960, apesar de algumas mudanças importantes desde então, a situação partidária se estabiliza em mais um reordenamento, com o Partido Republicano assumindo-se como a força de direita hegemônica, inclusive atraindo antigos democratas segregacionistas para seus quadros e eleitores sulistas insatisfeitos com a Lei de Direitos Civis de 1964, e o Partido Democrata adquirindo uma identidade de centro-esquerda que dura até os dias de hoje, em que se pese o enfraquecimento de sua ala operária e a adoção de princípios neoliberais nos anos do governo Bill Clinton (1992-2000). Sob essa ótica, a polarização se reinventa a cada novo realinhamento e acaba por manter-se viva.

Nessa conjuntura, mesmo que existam terceiros partidos com relativa força eleitoral (os Dixiecrats em 1948, a candidatura independente de Ross Perot em 1992 e os partidos Libertário e Verde mais recentemente), pouca chance tem de conseguir destronar o duopólio, porque o sistema funciona exatamente para sua autopreservação. Nesse sentido, é interessante perceber que, nos momentos de crise, há realinhamentos e não rupturas partidárias significativas: dadas as características do sistema eleitoral do país, é praticamente impossível que uma nova agremiação possa, de baixo, ameaçar o duopólio. Para que isso ocorra, é necessário que um dos partidos esteja à beira do colapso, como os whigs antes da Guerra Civil, ou que exista um improvável abandono generalizado de um deles pelos eleitores a ponto de causar, por cima, o surgimento de uma nova organização. É muito significativo que, no contexto atual, insurgências à direita, como a do Tea Party em 2008-2009, ou à esquerda, representada pela figura de Bernie Sanders e seu movimento de apoio, acabem sendo incorporadas aos partidos dominantes para que tenham mínima chance de sucesso ou visibilidade nacional – aliás, a colonização do Partido Republicano realizada por Donald Trump e pelo “trumpismo”, dando vestes cada vez mais extremistas ao Grand Old Party, é paradigmática a esse respeito.

Ademais, a história dos realinhamentos também serve para dirimir um nominalismo simplório que, fazendo tábula rasa de circunstâncias históricas específicas, acredita ver no Partido Democrata atual o “partido da escravidão” ou nos republicanos contemporâneos os “sucessores de Lincoln”. É importante, portanto, contextualizar seus câmbios ideológicos, sociais e eleitorais sem essencializar suas identidades, para podermos ver as multifacetadas e complexas formas de manutenção da polarização, o duopólio em questão, em terras norte-americanas e o papel do sistema eleitoral em sua reprodução (quase) perene.

Notas

[1] O caso exemplar aqui é o do Partido do Povo que, durante as eleições nacionais de 1896, precisou fundir-se ao Partido Democrata em diversas localidades para poder eleger seus candidatos, o que desagradou algumas de suas lideranças e eventualmente levou à sua dissolução.

[2] Na administração de Jackson, por exemplo, o Segundo Banco dos Estados Unidos, única instituição até então autorizada a emitir papel-moeda e conduzir as transações fiscais do governo, teve sua concessão cassada pelo Executivo, que o acusava de obedecer aos interesses dos grandes comerciantes e especuladores em detrimento do “homem comum”. Igualmente, foi durante os anos da “democracia jacksoniana” que o sufrágio foi estendido a todos os homens brancos cidadãos do país – ao mesmo tempo em que, por outro lado, se expandia o território da escravidão e se removia grupos ameríndios à força de seus lugares de origem (LYNN, 2019).

[3] Em 1896, os populistas apoiaram o derrotado William Jennings Bryan, candidato democrata identificado com os pequenos e médios fazendeiros do Sul e do Oeste e com algum apoio do movimento operário, contra o republicam William McKinley, explicitamente vinculado ao big business. Embora a diferença entre a votação de ambos tenha sido menos de 4% no voto popular, ela foi de 95 votos no Colégio Eleitoral. Com o revés e sua vinculação com o Partido Democrata, os populistas praticamente sumiram do mapa político dos Estados Unidos como terceira força.

Referências

BREWER, Mark D. & STONECASH, Jeffrey. Dynamics of American Political Parties. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

GOODWYN, Lawrence. The Democratic Promise: the Populist movement in America. New York: Oxford University Press, 1976.

MAISEL, L. Sandy. American Political Parties: a very short introduction. New York: Oxford University Press, 2007.

RICHARDSON, Heather Cox. To Make Men Free: a history of the Republican Party. New York: Basic Books, 2014.

SCHICKLER, Eric. Racial Realignment: The Transformation of American Liberalism, 1932–1965. Princeton: Princeton University Press.

ZUCCHINO, David. Wilmington’s Lie: the murderous coup of 1898 and the rise of white supremacy. New York: Atlantic Monthly Press, 2020.

Como citar este artigo

AVILA, Arthur Lima de. Republicanos e democratas: uma breve história da polarização política nos EUA (Artigo). In: Café História. Publicado em 26 abr de 2021. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/republicanos-e-democratas-a-polarizacao-politica-nos-eua/. ISSN: 2674-59.

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