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Apreensão, fé e esperança em meio ao caos: o milagre de San Gennaro na Itália do imediato pós-Guerra

Apreensão, fé e esperança em meio ao caos: o milagre de San Gennaro na Itália do imediato pós-Guerra 6

O martírio de San Gennaro e companheiros no Menólogo de Basílio II. Imagem: Wikipedia.

Em meados da década de 1940, além do desafio de ter que lidar com crescentes movimentos de secularização e a expansão do comunismo, a Igreja Católica também era desafiada pelo sentimento de crise e desesperança que pairava, sobretudo na Europa, nos momentos finais da Segunda Guerra Mundial e no seu período imediato. Afinal, como manter a fé de que Deus é bom em meio a tantas catástrofes geradas pela guerra? Como manter a esperança em meio à fome, às doenças, às destruições de cidades, às mortes de familiares, às deportações e, principalmente, ao horror dos campos de concentração?

Esse quadro de questionamentos, incertezas e desconfianças era comum a todos os europeus ao final da guerra, mas se manifestava de forma particular entre aqueles que professavam a fé católica, principalmente porque durante muito tempo o papa Pio XII havia silenciado quanto às atrocidades cometidas pela Alemanha Nazista e ao apoio de alguns membros do clero às ações de Hitler. À medida que a Europa ia sendo libertada do nazismo, muitas autoridades católicas da época, preocupadas com a situação da fé católica, se questionavam como lidar com tantas perguntas e mudanças.

San Gennaro , Corrado Giaquinto , 1745, Museu de Arte da Universidade de Princeton. Imagem: Wikipedia.
San Gennaro , Francesco Solimena , 1702. Imagem: Wikipedia.

Em meio a essa incerteza, a imensa adesão aos festejos do Milagre de San Gennaro (no Brasil conhecido como São Januário), ocorridos em 1944, em Nápoles, nos mostra uma outra face da questão: a catástrofe como impulso para a fé e a religiosidade, na busca por sentido e por esperança. Neste artigo, meu objetivo será analisar como os festejos católicos de San Gennaro, em uma Itália recém-saída da guerra, ilustra bem o cenário de apreensão, fé e esperança em meio ao caos do imediato pós-guerra na Itália.

O “milagre”

Desde o século XVII, época em que as cerimônias e rituais do “milagre” tomaram o formato que persiste até hoje, os napolitanos se encontram no Duomo de Nápoles para descobrir a sorte do futuro da cidade. Nessas ocasiões, ampolas com uma substância creditada como o sangue de San Gennaro, bispo da cidade de Benevento, mártir do século III e desde então padroeiro de Nápoles, são retiradas do cofre da igreja e passam por uma série de rituais litúrgicos, na espera de que haja uma liquefação, isto é, de que o “sangue”[1], que lá se encontra coagulado, passe para o estado líquido. Caso essa liquefação aconteça, a religiosidade popular, muitas vezes impulsionada pelo clero local, interpreta que o tempo vindouro será de fartura, paz e boa sorte para o povo de Nápoles, guardado por San Gennaro. Se ela não ocorrer ou se demorar muito para se realizar, os napolitanos acreditam que o ano seguinte será de dificuldades.

Cardeal Crescenzio Sepe durante o rito da dissolução do sangue de San Gennaro. Foto: Paola Magni, Wikipedia.

Esse processo ocorre três vezes por ano e suas datas não são aleatórias. A primeira exposição das relíquias ocorre no sábado anterior ao primeiro domingo de maio, dia em que se comemora a memória da transferência das relíquias de volta para Nápoles, ocorrida em 1497, após passarem cerca de mais de um século na Abadia de Montevergine. A segunda ocasião ocorre no dia 19 de setembro e é a data dos principais festejos, uma vez que nesse dia se comemora o martírio de San Gennaro. A terceira e última exibição da relíquia ocorre no dia 16 de dezembro, instituído por aclamação popular por fazer memória à proteção da cidade diante da erupção do Vesúvio de 1631, considerada como obra do santo.

O “Milagre de San Gennaro” em 1944

Na primeira metade de 1944, a situação da cidade de Nápoles não era uma das melhores. Em setembro do ano anterior, a cidade e sua população haviam sofrido vários bombardeios dos Aliados, bem como várias retaliações dos alemães lá situados. Mesmo com a libertação da cidade pelos próprios napolitanos e com a chegada, no dia primeiro de outubro, das tropas aliadas, os problemas e dificuldades estavam longe de acabar.

Em decorrência dos estragos feitos por ambos os lados (Aliados e alemães), a cidade passava por uma enorme escassez de água e comida, exigindo dos napolitanos ações extremas, como a tentativa de filtrar, de forma caseira, a água do mar para torná-la própria ao consumo humano. Muitos napolitanos, em decorrência dessa destruição, perderam seus bens, inclusive roupas, o que levou a uma série de improvisos como a utilização de cortinas para a confecção de vestidos, bem como a construção de jangadas para pesca, feitas com portas retiradas de ruínas. Além disso, a presença das forças de ocupação aliadas estava associada a aspectos sombrios, como o aproveitamento da vulnerabilidade das mulheres que tinham que se prostituir, a prática de diversas extorsões, a conivência com a pilhagem e o mercado clandestino comandados pela Camorra, a máfia local.

Diante dessa situação de penúria generalizada, era de se esperar um esvaziamento dos festejos do Milagre de San Gennaro, motivado pela desesperança e descrença frente a tamanhas adversidades. A realidade, contudo, se mostrou contrária a essa expectativa, como mostra o relato de Norman Lewis. Autor e jornalista britânico, ele esteve em Nápoles entre final de 1943 e 1944, a serviço do Intelligence Corps (Corpo de Inteligência), mais especificamente no Field Security Service (Serviço de Segurança de Campo) britânico, que – em sua missão em Nápoles – estava anexado à Quinta Armada Norte-Americana, a pedido da mesma, uma vez que ela não possuía serviço de segurança próprio.

No período em que esteve em Nápoles, Lewis tomou anotações, quase que diárias, sobre o que via e vivia e, com elas, escreveu o livro Naples 44, publicado em 1978. Em vários momentos do livro, Lewis aborda, de forma cética, aspectos da religiosidade popular em Nápoles, se referindo a eles como retornos à Idade Média ou como alucinações em massa. O milagre de San Gennaro, contudo, parece ter um destaque maior para o autor, possivelmente pela ampla mobilização e repercussão que o evento católico causava à população local. O frisson era algo surpreendente para ele.

Esta fotografia, tirada de um avião de reconhecimento, mostra alguns dos danos ao porto italiano de Nápoles causados ​​por 500 bombardeiros aliados no maior ataque aéreo combinado até então por esquadrões aéreos aliados operando contra o Eixo a partir de bases no norte da África. No ataque, lançado na escuridão da manhã por RAF Wellingtons e continuado por uma hora e meia de luz do dia por bombardeiros da USAAF, corvos observaram tremendas explosões quando o Arsenal Real foi explodido com destruição ou danos a todos os seus edifícios. Todos os edifícios da fábrica de torpedos e de um trem de munição foram explodidos em pedaços. Outros danos são indicados por outros algarismos como segue: (3) trilhos de ferrovia rasgados, com crateras claramente visíveis; (4) trens de carga e passageiros danificados, destruídos e incendiados na área central dos pátios de triagem; (5) casa de máquinas e galpões para carruagens e reparos bastante danificados, com inúmeras batidas em trilhos e lixeiras frias; (6) tanques de óleo destruídos, com incêndios ainda ardendo furiosamente; (7) uma fábrica destruída; (8) trilhas quebradas e grandes edifícios destruídos na saída norte dos pátios de manobra de Nápoles, e (9) uma fábrica de petróleo fortemente danificada. Foto: Wikipedia.

Em seu relato, Lewis descreve o primeiro festejo do ano de 1944, ocorrido no dia seis de maio, sábado anterior ao primeiro domingo de maio daquele ano. Segundo ele, contudo, a ansiedade e mobilização da população local começou antes. Isso pode ser observado, por exemplo, nas suas notas sobre o dia 25 de março, em que ele escreve que a força de ocupação estava preocupada para lidar com a não liquefação do sangue, fato que poderia ser usado, por facções secretas Antialiadas e encrenqueiros, para gerar tumultos, como sempre acontecia quando o milagre falhava.

A preocupação das forças aliadas em relação às repercussões que o “milagre” poderia ter evidencia grande mobilização e ansiedade que ele gerava desde março. Já no dia primeiro de maio, pouco menos de uma semana do milagre, o autor registra que a esperança e expectativa geral é de que o sangue se liquefaça e que napolitanos, de todos os credos políticos e graus religiosos, acreditam que a fortuna da cidade depende do “milagre”. Além disso, nesse mesmo relato, ele explica que em vários jornais apareciam anúncios pagos, por firmas comerciais ou partidos políticos, desejando um “bom e próspero milagre”. Por fim, segundo Lewis, na noite de sexta-feira, dia cinco de maio, uma multidão já se formava na vizinhança do Duomo, em um silêncio que só seria quebrado na tarde do dia seguinte, com o que ele chama de agitações e bolsões de histeria.

O dia do milagre em si, segundo Lewis, foi marcado por “um torpor nervoso associado com apreensão”. Ele conta que nesse dia os barcos estavam nos portos, as lojas e cafés estavam vazios e as pessoas perambulavam na rua como se fosse feriado público, esperando o resultado do milagre. Lewis relata que, perto das 17 horas, um tumulto ocorreu nas pequenas ruas atrás do Duomo, resultando em algumas vitrines quebradas e na presença de forças policiais para conter a situação. Segundo ele, na hora seguinte, a rua Strada di Tribunali, que era caminho para o Duomo, se tornou intransitável e pessoas corriam, de um lado para o outro, numa espécie de transe, que os levava a profetizar maldições e até mesmo a babar pela boca.

Em meio a esse clima de grande nervosismo, Lewis conta que um burburinho começou a ocorrer na Catedral, uma vez que o milagre estava demorando a acontecer e alguns napolitanos passaram a acreditar que a presença de oficiais americanos e britânicos, colocados perto do altar, poderia ser o motivo do atraso. Diante dessa situação, alguns napolitanos lá presentes começaram a gritar “Fora com os heréticos”, como ocorria no passado[2]. Lewis, então, diz que foram chamadas, para assumir seus lugares ao redor do altar, as Parenti di San Gennaro, isto é, mulheres creditadas popularmente como descendentes do santo e como detentoras do poder de fazer pressão ao mesmo (por meio de ameaças e maldições) para assegurar a liquefação.

Túmulo de San Gennaro visto de cima, dentro das Catacumbas de San Gennaro. O túmulo foi o primeiro local de sepultamento do Santo em Nápoles. Foto: Wikipedia.

Pouco tempo após a chegada das Parenti di San Gennaro, perto das 20 horas, o “milagre” aconteceu. Segundo Lewis, ele foi recebido com júbilo, mas numa escala muda, com muitas das pessoas rapidamente se dirigindo para suas casas. Mau sinal, então? Não necessariamente. O esvaziamento deve ser olhado com cautela. Ele não pode ser lido como um sinal de fracasso do milagre, isto é, de que as pessoas estavam descrentes. O próprio autor vai dizer que “uma liquefação pobre, mas melhor que nenhuma, era o veredicto geral”, revelando que, se em outras ocasiões a demora da liquefação poderia ser sinal de tempos ruins, naquele momento de dificuldade, os napolitanos decidiram interpretar aquilo como esperança.

Apesar de ter gerado uma série de questionamentos desafiadores para a religiosidade católica, que poderiam levar à descrença dos indivíduos, a Segunda Guerra Mundial e seu imediato pós-guerra, com todos os seus sofrimentos e dificuldades, também foi campo fértil para a mesma. Na procura por sentido e esperança, muitas pessoas se voltaram à religiosidade em busca de respostas. A fé, de alguma forma, se renovara. O caso do Milagre de San Gennaro, ocorrido em Nápoles, no ano de 1944, e narrado por Norman Lewis, é uma evidência nesse sentido, mostrando a expectativa e mobilização religiosa daquela população, que acreditava que o milagre poderia ser sinal de tempos melhores.

Notas

[1] Para uma discussão sobre possíveis explicações científicas do líquido contido na ampola e de como ele se liquefaz, consultar RAMACCINI, Franco. Idagine sul sangue di San Gennaro. Disponível em: www.studiliberali.it/uploads/Religioni/INDAGINE_SU_S.GENNARO.pdf. Último acesso: 06/01/2022.

[2] No século XVII, havia entre fiéis a ideia de que quase certamente o sangue de San Gennaro não iria liquefazer até que infiéis e heréticos, isto é, não católicos presentes na catedral, fossem perseguidos.

Referências Bibliográficas

CEGLIA, Francesco Paolo de. Thinking with the Saint: The Miracle of Saint Januarius of Naples and Science in Early Modern Europe. In: Early Science and Medicine. Leiden: Brill, vol. 19, 2014, p. 133-173.

FERREIRA JÚNIOR, Sílvio Pinto. São Gennaro (San Gennaro) ou São Januário como também conhecido no Brasil. In: Festas “italianas” em São Paulo e a Proteção do Patrimônio Imaterial: a identidade de grupo no contexto da diversidade. São Paulo: PUC-SP, 2009, p. 194-226.

LEWIS, Norman. Naples’44. Nova York: Phanteon Books, 1978.

Como citar este artigo

BORGES, Daniel. Apreensão, fé e esperança em meio ao caos: o milagre de San Gennaro no contexto do Pós-Guerra Italiano. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/o-milagre-de-san-gennaro-napoles-1944/. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 24 jan. 2022.

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