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Uma breve história das campanhas de imunização no Brasil: a vacina como direito e cultura

De acordo com levantamento recente da Fundação Oswaldo Cruz divulgado às vésperas do Dia D da Campanha Nacional de Vacinação do Ministério da Saúde, em 19 de outubro, doenças como poliomielite e sarampo, consideradas eliminadas ou erradicadas no país, voltaram a representar um grave problema de saúde pública. No Brasil, os índices de cobertura vacinal das principais vacinas ofertadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) vêm apresentando expressiva queda. Dados da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas/OMS) apontam crescimento de 300% de casos notificados de sarampo no mundo nos primeiros três meses deste ano, em comparação ao mesmo período de 2018.

Veículos a serviço da campanha de vacinação – Garanhuns (PE) – 1971 – Acervo DAD/COC

Vítimas de sua própria eficiência, as vacinas são negligenciadas à medida que as doenças se tornam controladas. À enganosa sensação de segurança somam-se notícias falsas divulgadas por grupos antivacina, que proliferam informações sobre possíveis reações à imunização. O que não é ressaltado, entretanto, é que a vacinação tem impacto na redução da mortalidade comparável apenas à garantia de água potável e saneamento básico às populações.[1]

Algumas instituições de saúde estão muito preocupadas com esse cenário. É o caso da Fiocruz. Por meio de seu Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos – Bio-Manguinhos, a entidade produz e desenvolve imunobiológicos para atender às demandas do SUS. De 2014 a 2018, a Fundação forneceu mais de 503 milhões de doses de vacinas ao Programa Nacional de Imunizações (PNI). Atualmente, constam do portfólio de Bio-Manguinhos 10 das 19 vacinas do PNI. Por sua relevância e urgência, o tema foi pauta do 20º Encontro Anual da Rede de Produtores de Vacina dos Países em Desenvolvimento (DCVMN, da sigla em inglês), realizado de 21 a 23 de outubro, em Bio-Manguinhos, no Rio de Janeiro.[2]

Mas será que a vacina sempre foi vista com desconfiança no Brasil? O que a história tem a nos dizer a respeito? O objetivo deste artigo é examinar o passado recente do país, procurando explicar como se deram as principais campanhas da imunização no país, a sua relação com as políticas estatais de saúde pública e o civismo que elas evocam.

Uma breve história das campanhas de imunização no Brasil

Ainda que pesem os recentes índices de queda de cobertura vacinal e as investidas do movimento antivacina em curso no mundo, há fatos na história relativamente recente do Brasil que podem ser considerados emblemáticos da adesão da população às campanhas de vacinação. Seja por medo de doenças, seja pelo reconhecimento da importância da prevenção, ou pela forte presença do Estado nessas ocasiões, o fato é que os brasileiros, ainda que com exceções, aderem ao chamamento do poder central quando o assunto é o dever e o direito à vacinação.

Grosso modo, as campanhas de vacinação são práticas discursivas da medicina e das ciências biomédicas para o controle de doenças e envolvem fatores complexos relativos ao direito à informação, às relações entre Estado e sociedade, à geopolítica, à ética, e também à vida e à morte [3]. Não à toa, a história da imunização e das vacinas no Brasil reflete a força das políticas estatais de saúde pública na construção da cidadania no país.

A oferta pública de amplo pacote de imunizantes e boa cobertura da população nas campanhas de vacinação pode igualmente ser considerada responsável pelo “civismo imunológico” ou por uma “cultura da imunização” inclusiva, construídos ao longo do século XX, conforme avalia o pesquisador da Casa da Oswaldo, Cruz Gilberto Hochman, Segundo ele, “o Programa Nacional de Imunizações, criado em 1975 na esteira da erradicação da varíola no Brasil, é a expressão institucional desse processo, assim como os dias nacionais de vacinação – cruciais para a erradicação da poliomielite no Brasil – são a forma mais saliente de mobilização pública em torno da imunização.”[4].

Campanha de vacinação contra varíola em Cambé (PR) – 1969 – Acervo DAD/COC

De fato, a história da imunização tem profundo lastro na própria trajetória do Brasil como nação, em particular na expansão da malha ferroviária nacional. Elos de integração dos rincões do país aos portos e principais cidades litorâneas do Sudeste no início do século XX, as ferrovias foram objeto de inúmeras ações sanitárias para promover sua construção.

Segundo Jaime Benchimol, “elas desempenharam papel fundamental nos estudos e nas intervenções práticas destinadas a vencer os obstáculos à expansão da economia e sociedade capitalistas que floresciam no litoral do Brasil. Ao mesmo tempo, induziram investigações importantes que ajudaram a conformar a medicina tropical, aquela que lida com complexos ciclos de vida de parasitas em múltiplos hospedeiros e com sinergias muito dinâmicas entre tais processos biológicos e os ciclos econômicos das sociedades humanas”[5].

Dilene Raimundo do Nascimento, pesquisadora da COC e organizadora da obra “Uma história da poliomelite”, aponta que o processo de erradicação de doenças por meio de cobertura vacinal massiva não está relacionado apenas à legitimação das políticas de saúde nacionais e internacionais e ao processo de incorporação de tecnologias e inovação. Refere-se também à capacidade de mobilização da sociedade e à mudança de mentalidade de governos e população em relação às vacinas. A erradicação da varíola, seguida da erradicação da poliomielite, são exemplos dessa cultura, hoje desafiada.

Fontes para pesquisa

No Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz, os arquivos de Claudio do Amaral Júnior (1934-2019) e Herman G. Schatzmayr (1936-2010), da Fundação Serviço de Saúde Pública (FSESP) e os depoimentos orais dos projetos “História da poliomielite e de sua erradicação no Brasil” e “Vacina antivariólica: história e memória da erradicação da varíola” são as principais fontes de pesquisa sobre a história das campanhas para a erradicação da varíola e da poliomielite no Brasil.

Gestor de políticas públicas de saúde no país, o médico sanitarista Claudio do Amaral Júnior se destacou pela participação na Campanha de Erradicação da Varíola (CEV) nos estados do Maranhão, Pernambuco, Rio de Janeiro e Paraná, a partir de 1967. De 1973 a 1976 atuou na Índia como consultor em doenças transmissíveis da Organização Mundial da Saúde (OMS) e de 1976 a 1980 acompanhou na Etiópia os últimos casos de varíola.

Como diretor do Departamento de Epidemiologia da FSESP (a partir de 1981), exerceu atividades de coordenação de campanhas de vacinação contra poliomielite, sarampo e tuberculose. Com a experiência adquirida com a varíola, colaborou junto à Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) no projeto para a erradicação da poliomielite no Brasil.

A FSESP teve papel preponderante na Campanha de Erradicação da Varíola. Através de convênio assinado com o Ministério da Saúde em janeiro de 1970, atuou para a execução de um serviço de vigilância epidemiológica e operação de bloqueios de surto. A expertise da fundação em atividades de planejamento e controle foi fundamental, uma vez que a vacinação em massa, por si só, não era garantia de um controle sobre a doença a ser erradicada.[6]

Voluntários a procura de doentes de varíola – Etiópia – Acervo DAD/COC

Outras fontes fundamentais para a compreensão dos processos de descoberta de vacinas eficazes, o desenvolvimento de técnicas laboratoriais para diagnóstico e de novos procedimentos de vigilância epidemiológica para o combate à varíola e à poliomielite no Brasil são os depoimentos orais concedidos por profissionais de saúde no projeto “Vacina antivariólica: história e memória da erradicação da varíola”. O acervo reúne oito depoimentos sobre o processo de controle e erradicação da doença, da década de 1940 até fins de 1970.

No projeto “História da poliomielite e de sua erradicação no Brasil”, os pesquisadores analisaram cartazes das campanhas de vacinação, fotografias, documentos textuais e orais. Em relação aos depoimentos, foram ouvidas 31 personagens com formação variada que atuaram na gestão de políticas de saúde, pesquisa básica em vacinas e campanhas de vacinação, abarcando a história da poliomielite e do seu processo de erradicação no Brasil.

Breve histórico da Varíola 
Por Gilberto Hochman 

Ao final da Primeira República (1889-1930), a varíola, que junto com a febre amarela e a peste bubônica tinha sido o foco das ações da saúde pública brasileira nas primeiras décadas do século XX, deixou de ser uma prioridade do governo brasileiro e desapareceu da agenda da saúde pública. Durante o Primeiro Governo de Getúlio Vargas (1930-45), mesmo se tratando de um período de forte centralização política e administrativa, aprofundada em seu período ditatorial a partir de 1937, o entendimento era de que a produção da vacina e a vacinação deveriam ficar sob responsabilidade dos governos estaduais e municipais.  

Entre 1958 e 1961, o Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERu), órgão do Ministério da Saúde, iniciou um programa de vacinação antivariólica que atingiu 2.600.000 pessoas em 18 unidades federativas. Ainda em 1961 foi iniciada a fabricação da vacina liofilizada no Instituto Oswaldo Cruz, que depois também seria fabricada em institutos vacínicos do Sul e do Nordeste do país. 
 No final de janeiro de 1962, o governo João Goulart decidiu criar a Campanha Nacional Contra a Varíola. Esta foi a primeira organização nacional criada para coordenar o combate à doença em quase sessenta anos. Em agosto de 1966, foi criada a Campanha de Erradicação da Varíola (CEV) com a finalidade exclusiva de eliminar a doença do país. 

De 1966 a 1971, o programa de erradicação, ao mobilizar recursos disponíveis de órgãos federais, estaduais e municipais, operou com um número exíguo de 3.563 funcionários, sendo 654 vacinadores e 613 condutores de veículos. Outra inovação importante foram as técnicas de vacinação utilizadas. 

A partir de experimentos realizados em 1965 junto com o CDC (Center for Diseases Control) em duas capitais de estados do Norte do Brasil, decidiu-se pelo uso de jet-injector nas zonas urbanas, permitindo maior número de vacinações por dia por uma equipe de vacinadores e menos desconfiança da população e nas zonas rurais, e nas situações de vacinação casa a casa, seria empregada a agulha bifurcada. A mobilidade das equipes de vacinação seria garantida por 230 veículos, em grande parte obtidos com recursos internacionais. Esses foram os recursos utilizados para produzir um total de 81.745.290 vacinações, que correspondia a 84% da população brasileira. 

A estratégia para vacinação em massa nas áreas urbanas, ou com significativa concentração de pessoas, foi a de mobilização da população para grandes encontros em lugares públicos, que marcavam a chegada dos vacinadores e o início da vacinação. Essa inovação foi reproduzida depois nos “Dias Nacionais de Vacinação” utilizados para a campanha antipoliomielite no Brasil. 

A erradicação da varíola foi a oportunidade para a constituição de um Programa Nacional de Imunizações e um Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, com seus subsistemas estaduais, resultados certamente não antecipados pelas agências internacionais e de cooperação bilateral, nem sequer imaginados pelos primeiros dirigentes do regime militar ou pelos profissionais envolvidos na campanha.[1]
 
 [1] Trechos do artigo “Vacinação, varíola e uma cultura da imunização no Brasil” (Hochman, 2011). 
Breve histórico da Poliomielite 
Por Dilene Raimundo do Nascimento

Somente na década de 1940, com o avanço da virologia e o uso do microscópio eletrônico, foi esclarecida a forma de transmissão da poliomielite: ficou evidenciado que o poliovírus se multiplicava no trato gastrointestinal e sua transmissão ocorria pela via fecal-oral, isto é, por meio da água ou produtos contaminados por fezes e ingeridos pela boca. 

O Ministério da Saúde adotou, oficialmente, a vacina oral trivalente de vírus vivo atenuado – a vacina Sabin – e iniciou, em julho de 1961, campanhas de vacinação da população infantil nas cidades de Santo André, São Bernardo e São Caetano, no estado de São Paulo, com a expectativa de vacinar 25 mil crianças. 

No Rio de Janeiro, após uma experiência piloto no Instituto Fernandes Figueira (hoje a unidade materno-infantil da Fundação Oswaldo Cruz), onde foram vacinados os filhos dos funcionários na faixa etária de quatro meses a seis anos, ocorreu uma vacinação em massa, de 28 de agosto a 2 de setembro, em Petrópolis. 

Essa vacinação, cuja expectativa era vacinar 15 mil crianças, recebeu ampla cobertura da imprensa, noticiada como a inauguração oficial da “Campanha Nacional de Vacinação Oral contra a Poliomielite no Brasil”. No início da década de 1960, a Fiocruz começou a pesquisar tecnologias que foram fundamentais para o controle da poliomielite. O Instituto Oswaldo Cruz desenvolveu técnicas cada vez mais sensíveis e rápidas de diagnóstico do poliovírus, assim como o aperfeiçoamento da formulação da vacina antipólio oral. 

Em 1973, foi criado o Programa Nacional de Imunizações (PNI), que incorporou o controle da poliomielite e introduziu a multivacinação, incluindo principalmente a vacina do sarampo, ainda com estratégia de campanhas. Em 1975, estabeleceram-se as atividades de vigilância, com a implantação do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica, fundamental para qualquer plano de controle, que incluíam normas técnicas para a confirmação clínica e laboratorial dos casos de poliomielite e para a investigação epidemiológica em âmbito nacional, que já estava sendo gestada desde a década de 1960. 

Assim, nos dias 14 de junho e 16 de agosto de 1980 se realizaram respectivamente a primeira e a segunda etapas da vacinação contra a poliomielite no país, para vacinar todas as crianças de zero a cinco anos de idade, independentemente de vacinação prévia, em um só dia, em todo o território nacional. Em consequência dessa vacinação, chamada de “Dias Nacionais de Vacinação”, houve uma acentuada redução do número de casos da doença, passando de 1.290 casos, em 1980, para 122, em 1981. No ano seguinte, observou-se o menor número de casos já registrados nacionalmente: 45 casos confirmados.[1]
 
 [1] Trechos do artigo “As campanhas de vacinação contra a poliomielite no Brasil (1960-1990)” (Nascimento, 2011). 

Notas

[1] Boletim Parlamentar da Fundação Oswaldo Cruz. Ano 3, Nº 1. 2019

[2] A presidente da Fundação, Nísia Trindade Lima, em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 15 de outubro de 2019, destacou o evento como uma iniciativa fundamental para reduzir as assimetrias globais, uma vez que a monopolização dos mercados de produção de vacinas pode tornar inacessível à maioria da população as novas tecnologias nesse campo. Segundo ela, a rede DCVMN é essencial para a garantia do acesso universal à imunização. E enfatiza: “cabe-nos afirmar a vacinação como um bem público e uma das principais conquistas para o direito de todos ao cuidado e à prevenção”. Ver mais aqui.

[3] Porto, Ponte, 2003.

[4] Hochman, 2011, p.376.

[5] Benchimol, 2008, p.720.

[6]  ANDRADE, Márcio Magalhães de. Proposta para um resgate historiográfico: as fontes do SESP/FSESP no estudo das campanhas de imunização no Brasil. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. 2003, vol.10, suppl.2, pp.843-848. ISSN 0104-5970. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702003000500021.

[7] SCHATZMAYR, Hermann G.; FILIPPIS, Ana Maria Bispo de; FRIEDRICH, Fabian and  LEAL, Maria da Luz Fernandes. Erradicação da poliomielite no Brasil: a contribuição da Fundação Oswaldo Cruz. Hist. cienc. saude-Manguinhos [online]. 2002, vol.9, n.1, pp.11-24. ISSN 0104-5970.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702002000100002.

[8] Trechos do artigo “Vacinação, varíola e uma cultura da imunização no Brasil” (Hochman, 2011).

[9] Trechos do artigo “As campanhas de vacinação contra a poliomielite no Brasil (1960-1990)” (Nascimento, 2011).

Referências Bibliográficas

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Como citar este artigo

D’AVILA, Cristiane. A vacina como direito e cultura: uma breve história das campanhas de imunização no Brasil (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Publicado em 4 de novembro de 2019. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-da-vacinacao-no-brasil

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