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História da ditadura militar para iniciantes

Ditadura-Militar

Estudante Claudio Torres da Silva, participante do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, detido. Arquivo Nacional, Correio da Manhã, PH FOT 00364 057.

Como de costume, essa bibliografia comentada é voltada para iniciantes no tema. Procurei reunir aqui obras que ora oferecem um painel global do que foi a ditadura militar brasileira, como o livro do historiador Marcos Napolitano, o primeiro da lista, ora obras que esquadrinham algum aspecto específico do regime, caso do livro de Paulo César de Aráujo, que mostra como artistas da chamada “música cafona” também sofreram perseguições do regime.

Todos os livros abaixo listados foram publicados nos anos 2000, e isso tem explicação. Nos últimos 20 anos, a historiografia da ditadura militar deu um salto quantitativo e qualitativo enorme, fruto de uma confluência de fatores: ampliação dos programas de pós-graduação em história, abertura de novos arquivos, desclassificação de documentos, realização da Comissão Nacional da Verdade, maiores investimentos em pesquisa em humanidades (pelo menos durante um tempo), avanço de novas metodologias, de novos conceitos, de novas correntes historiográficas e de debates provocados por efemérides, como a de 60 anos do Golpe de 1964, em 2014. A lista possui autores já consagrados, como Carlos Fico, e autores de uma nova geração, caso de Janaína Martins Cordeiro; as perspectivas política e econômica da ditadura militar estão representadas na lista, mas a cultural e a social também estão lá. 

A lista principal possui oito obras. Mas, como sempre, muitos bons livros acabam ficando de fora. A fim de mitigar os efeitos dessa duríssima seleção, eu gostaria de compartilhar uma lista paralela e complementar de livros que também recomendo ao leitor interessado no período da ditadura militar: “O sindicato que a ditadura queria: o Ministério do Trabalho no governo Castelo Branco (1964-1967)”, de Heliene Nagasava; “Revolucionário e gay: a extraordinária vida de Herbert Daniel – pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão”, de James Green; “O movimento estudantil na resistência à ditadura militar (1969-1979)”, de Angélica Müller, “Pouso forçado: a história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo regime militar”, de Daniel Leb Sasaki, “À direita de Deus, à esquerda do povo: protestantismos, esquerdas e minorias (1974-1994)”, de Zózimo Trabuco. Eu ficaria de olho em todos esses livros. No mais, boa leitura!

“1964: história do regime militar brasileiro”, de Marcos Napolitano, Editora Contexto, 2014. 

Marcos Napolitano, professor da Universidade de São Paulo, faz nesse livro uma equilibrada síntese do período da ditadura militar. Se você está começando a estudar o assunto, preparando-se para uma prova, um concurso ou apenas quer se informar melhor sobre o tema, esse livro é uma boa pedida. É um livro bem introdutório e fácil de ler. É voltado para quem não conhece muito a história do golpe civil-militar de 1964 e seus desdobramentos. A obra começa de uma maneira convencional: com a crise do governo de João Goulart (Jango). Porém, os capítulos seguintes conseguem escapar da mesmice: embora não abram mão de uma narrativa linear, o autor privilegiou temáticas. Um capítulo, por exemplo, aborda o mito da “ditabranda”, enquanto outro discute a vida cultural durante os “anos de chumbo”. Há debates sobre intelectualidade, jornalismo e economia. Napolitano defende a interpretação de que o golpe de 1964 foi a culminância de uma ampla coalisão civil-militar, conservadora e antireformista, e cujas origens não podem ser resumidas ao comportamento e as medidas do governo de Goulart. “O golpe foi resultado de uma profunda divisão na sociedade brasileira, marcada pelo embate de projetos distintos de país, os quais faziam leituras diferenciadas do que deveria ser o processo de modernização e reformas sociais”, afirma Napolitano. 

“O Golpe de 1964. Momentos Decisivos”, de Carlos Fico, FGV Editora, 2014. 

“O golpe de Estado de 1964 é o evento-chave da história do Brasil recente. Dificilmente se compreenderá o país de hoje sem que se perceba o verdadeiro alcance daquele momento decisivo”. Assim diz o autor, Carlos Fico, na apresentação deste livro de bolso lançado há 7 anos pela FGV Editora. O livro explora os diversos atores históricos envolvidos no golpe de 1964: grupos de direita, grupos religiosos, o Supremo Tribunal Federal e governo dos Estados Unidos (na chamada “Operação Brother Sam”), dentre outros. Embora seja um livro pequeno, o autor consegue explorar com densidade esse acontecimento crucial para a história brasileira da segunda metade do século XX. Se você já tem algum conhecimento sobre a ditadura militar, mas quer se aprofundar um pouco no evento que lhe dá origem, esse livro é altamente indicado. Carlos Fico, que é professor titular da UFRJ, está entre os maiores especialistas no tema no Brasil. 

“Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira: A visão da espionagem”, de Paulo César Gomes, Record, 2013.

A dimensão militar da ditadura é fundamental para se compreender o período autoritário. No entanto, tem sido um consenso entre os historiadores que as relações entre o regime militar e os diversos atores sociais são igualmente importantes. Neste livro, o historiador Paulo César Gomes examina a relação entre militares e bispos católicos ao longo da ditadura. Recusando análises simplistas e cristalizadas, Gomes demostra que não houve homogeneidade na atuação dos bispos católicos durante o regime, mesmo aqueles rotulados como “progressistas”. Embora a repressão tenha vigiado os bispos que considerava subversivos, e apesar de uma entidade como a Confederação  Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) ter desempenhado um papel de contestação ao arbítrio, nunca houve uma ruptura total entre os militares e a Igreja. Nas palavras do historiador, “as duas instituições sempre buscaram manter espaços de negociação, pois ambas entendiam a necessidade de conservar boas relações”. Paulo César Gomes é editor-chefe do ótimo História da Ditadura

Eu não sou cachorro, não. Música popular cafona e a ditadura militar”, de Paulo César de Araújo, Record, 2002. 

Paulo César de Araújo é mais conhecido por ser o autor da biografia “Roberto Carlos em detalhes”, injustamente, na minha opinião, censurada pelo músico e pela justiça em 2007. Antes se envolver nessa amarga controvérsia, Aráujo escreveu “Eu não sou cachorro, não”, que examina a música popular cafona durante a ditadura militar. O historiador, que é professor do curso de comunicação na PUC-RJ, é um grande especialista em Música Popular Brasileira. Neste livro, ele mostra que cantores e compositores cafonas dos anos 1970 não eram tão alienados ou adesistas como certa interpretação faz crer. Araújo mostra que esses artistas também foram censurados, sofreram críticas da direita, tiveram que alterar letras e até deixaram o país. Trata-se de um estudo, portanto, da cultura popular produzida durante a ditadura militar no Brasil.

“Estranhas Catedrais — As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar: 1964-1988”, de Pedro Henrique Pedreira Campos, EdUFF, 2015. 

O livro do historiador Pedro Henrique Pedreira Campos examina como a ditadura militar favoreceu um seleto grupo de empreiteiras brasileiras, que no espaço de pouco mais de 20 anos se tornaram empresas extremamente poderosas, não só no Brasil, mas no circuito regional sul-americano também. De acordo com o historiador, que é professor no Departamento de História da UFRRJ, esse crescimento foi benéfico para ambos os lados, e a despeito de narrativas míticas quanto a inexistência de corrupção durante a ditadura militar, Campos mostra como muitas dessas empresas cresceram graças a práticas irregulares e até mesmo ilegais. Anulação da concorrência, monopólios e políticas públicas baseadas em arrocho salarial, incentivos fiscais, subsídios e uma rede de favorecimentos pavimentaram o caminho dessas empreiteiras. Segundo aponta Campos, “o amordaçamento de mecanismos fiscalizadores, como a imprensa, o parlamento e parte da sociedade civil, permitia aos empreiteiros maximizar seus lucros com práticas ilícitas e tocar obras com rapidez, agilidade e sem preocupação com os impactos do empreendimento”. O livro deriva da tese de doutorado do autor (baixe a tese gratuitamente aqui) e sagrou-se vencedor do Prêmio Jabuti 2015, na categoria “Economia, Administração, Negócios, Turismo, Hotelaria e Lazer”.

Policiais sobre o Congresso Nacional em outubro de 1966. Arquivo Nacional, Correio da Manhã, PH FOT 01996.005.

“As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização autoritária”, de Rodrigo Patto Sá Motta, Zahar, 2014.

Qual o impacto do regime militar sobre as universidades e os professores da academia? Como atuaram os apoiadores do regime autoritário nos meios acadêmicos? Essas são algumas das perguntas que orientam essa obra de Rodrigo Patto Sá Motta, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais. É bastante conhecido o impacto da repressão nas universidades brasileiras durante a ditadura: invasões (como a da UnB), vigilância, prisões, torturas, exonerações e impedimentos de todo o tipo. Motta discute não só isso, como também o esforço do regime militar para modernizar as instituições de ensino superior, tendo como exemplo o modelo norte-americano. A reforma universitária introduziu professores em com dedicação exclusiva, ciclos básicos por áreas de saber, organização departamental etc. Esse movimento ilustra a tese que alguns historiadores denominam de “modernização conservadora” (ou “modernização autoritária”). Em outras palavras, modernizou-se os campi e a estrutura universitária ao mesmo tempo que as liberdades políticas e individuais mais básicas eram cerceadas. Nas palavras do historiador, “para além das ações repressivas, que não podem ser minimizadas, tais relações foram permeadas por jogos de acomodação que não se enquadram na teologia resistência versus colaboração”. 

“Apesar de vocês – oposição à ditadura brasileira nos Estados Unidos, 1964-1985”, de James Green, Companhia das Letras, 2014. 

Como bem resume Carlos Fico no prefácio da obra, “este livro conta a história de norte-americanos empenhados em combater a ditadura militar brasileira”. Para isso, o historiador James Green, professor no Departamento de História da Brown University, nos Estados Unidos, examina a trajetória de diversos intelectuais, artistas e acadêmicos, norte-americanos ou brasileiros exilados, que durante o período da repressão trabalharam duro para colocar os direitos humanos na agenda do governo norte-americano, o mesmo que apoiara de forma decisiva o golpe de 1964. Um dos casos analisados no livro é o do The Living Theatre, conhecida companhia teatral experimental off Broadway fundada em 1947 em Nova York. O grupo esteve no Brasil em 1970, mas acabou expulso pelo governo brasileiro por conta de acusações falsas de posse de maconha. De volta aos Estados Unidos, o grupo começou um movimento para isolar o regime militar brasileiro. Diz Green: “embora poucos tivessem criticado os militares brasileiros quando estes assumiram o poder em 1964, em 1969 um conjunto de acadêmicos, religiosos, exilados brasileiros e ativistas políticos decidiu empregar diversos maios para informar o público norte-americano sobre a situação política naquele país distante e mobilizar uma oposição à ditadura”. Em suma, um ótimo livro para quem deseja compreender como funcionou a oposição à ditadura militar brasileira no exterior. 

“A ditadura em tempos de milagre – comemorações, orgulho e consentimento”, de Janaína Martins Cordeiro, FGV Editora, 2015. 

Janina Martins Cordeiro, professora do Departamento de História da UFF, apresenta neste livro a sua pesquisa sobre as festividades dos 150 anos da Independência do Brasil, comemorada com grande pompa pela ditadura. A efeméride envolveu campeonatos de futebol, a trasladação dos restos mortais de D.Pedro I de Portugal para o Brasil, discursos públicos e outras ações propagandística do regime, que visava insuflar o nacionalismo e a narrativa heróica de um passado idealizado. Esse é um livro, portanto, que estuda processos sociais de memória e os usos políticos do passado. De acordo com Cordeiro, “a ditadura soube canalizar profundas aspirações e tendências, fazendo com que convergissem distintas aspirações, numa festa que ela organizou, imprimindo mesa seu selo: o do progresso com a ordem, da modernização sem sobressaltos, o todo sintonizado com os valores da civilização cristã e democrática – o que não significa, certamente, que a sociedade tenha se tornado toda ela, adepta do regime”.  

Como citar esta bibliografia comentada

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. História da Ditadura Militar no Brasil para iniciantes (Bibliografia Comentada). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/historia-da-ditadura-para-iniciantes/. Publicado em: 24 jan. 2021. ISSN: 2674-5917.

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