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Emancipação feminina em uma escola de enfermeiras

Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac

Alunas religiosas e leigas na Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac. Recreação com música (com piano e violão). Sem data. Imagem do Arquivo Histórico da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac.

Aberta em 1939, no Rio de Janeiro, a Escola de Enfermeiras Luiza de Matrilac foi a primeira escola de enfermagem do Brasil criada exclusivamente por uma congregação católica, a Congregação das Filhas de Caridade da Associação São Vicente de Paulo. Ela se destacava bastante em relação às outras escolas de enfermagem da época. Em primeiro lugar, porque não contava com a participação direta de médicos vinculado à Faculdade de Medicina e nem de autoridades sanitárias. Em segundo lugar e, talvez, mais importante, porque, exceto pela primeira turma, constituída apenas por irmãs vicentinas, todas as demais foram formadas majoritariamente por alunas leigas (não freiras) até 1961, quando a instituição de ensino é fechada. Portanto, apesar de ser uma instituição dirigida por uma congregação católica que historicamente destinava suas religiosas à assistência aos doentes e desvalidos, a escola abriu suas portas às mulheres leigas de diferentes partes do Brasil. Tal fato permitiu construir um importante caminho à emancipação feminina.

A conformação do corpo discente

Entender a formação do corpo discente da Escola é uma tarefa bastante complexa. Sua diversidade fascina pela possibilidade de mergulhar na diferença e de entender como se dá, a partir da experiência educacional, o encontro de projetos de vida e de mundos distintos por meio do convívio entre freiras e leigas, jovens e senhoras, solteiras e viúvas, mulheres do Nordeste, do interior dos estados do Sul e dos grandes centros do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Essa configuração era estratégica para a direção da Escola que, organizou diversas frentes para possibilitar o ingresso de mulheres de diferentes partes do Brasil. A iniciativa foi tão bem-sucedida que a maior parcela de alunas não era natural do estado do Rio de Janeiro, onde a Escola estava localizada. Esse ponto deve ser considerado chave em análises sobre a escola, pois, afinal de contas, estamos tratando do deslocamento de mulheres nas décadas de 1930-1960 sem a tutela masculina e com o objetivo de iniciar uma formação profissional.

A tabela fixada abaixo oferece um panorama da origem geográfica das alunas do corpo discente. Inicialmente, vale observar o expressivo número de alunas naturais da região Nordeste.

Tabela 1. Naturalidade das alunas (1939 a 1961)

Naturalidade1939 a 1961%
Região Norte102,45
Região Nordeste20650,49
Região Centro Oeste153,68
Região Sudeste15638,24
Região Sul92,20
Estrangeiras20,49
Não identificadas102,45
Total408100

Fonte: ESCOLA DE ENFERMEIRAS LUIZA DE MARILLAC. Dossiê das Alunas da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac. Ficha de inscrição, 1939-1961. Arquivo histórico da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac.

A fim de alcançar tantas regiões, a direção da Escola organizou uma forma descentralizada de recrutamento, isto é, para inscrever-se e prestar exames não era necessária a presença das candidatas na sede da instituição, no Rio de Janeiro. Para isso, fez-se uma rede de diversos colaboradores espalhados pelo Brasil, que contou com ex-alunas da Escola, políticos, religiosas responsáveis por colégios católicos e membros do clero. Em alguns casos, essas parcerias contaram até mesmo com o apoio de órgãos federais.

A iniciativa de maior destaque neste sentido foi realizada em Maceió (AL) pela enfermeira Syther Medeiros de Oliveira e não por acaso dessa localidade vem o maior número de alunas recrutadas – 118 alunas, o equivalente a 57% do total da região Nordeste. Uma vez formada pela Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac (1949-1952), Syther retornou à sua cidade natal, Maceió, e foi selecionada para trabalhar no Serviço Especial de Enfermagem de Alagoas. Ainda em 1953, a enfermeira passou a atuar como agente de recrutamento de sua antiga escola de formação, tendo por objetivo estimular outras moças a trilhar o mesmo caminho que o seu. O sucesso dessa iniciativa em Maceió está intimamente relacionado ao empenho desta profissional, cujo papel se estende desde o convencimento das famílias mais reticentes sobre a vinda das moças para a capital do Brasil até a organização de cursos preparatórios para as provas de admissão.

Em outra capital nordestina, Aracaju (SE), mais uma ex-aluna realiza a função de recrutadora. A enfermeira Eunice Gama, também formada entre 1949-1952, foi responsável pelo ingresso de 12 das 21 sergipanas que iniciam seus estudos na Escola, tornando o estado de Sergipe o segundo maior no quadro da representação discente. Ressaltar esses vínculos promovidos tanto em Maceió quanto em Aracajú nos permite perceber a comunhão mantidas entre as egressas e a instituição que as forma, assim como também o desejo dessas mulheres em promover a formação profissional de outras mulheres dos seus respectivos estados.

“Por que estudar enfermagem?”

Todas as candidatas, ao preencherem a ficha de inscrição na Escola, deveriam responder à questão: por que estudar enfermagem? Mais da metade [1] mencionou que a vocação foi a principal razão para ingressar no curso de enfermagem. As candidatas religiosas que destacaram o papel da vocação, entendiam que a inclinação à vida religiosa faria delas missionárias para quaisquer necessidades apontadas por suas congregações. E isso fazia bastante sentido, já que um dos primeiros passos à consagração religiosa se faz por meio dos votos de pobreza, castidade e obediência. Mas o sentido vocacional evocado pelas mulheres leigas apresenta mais sutilezas. A vocação nesses casos aparece relacionada a outros elementos, que podemos classificar da seguinte forma: vocação profissional e religiosa por apontarem simultaneamente a dedicação ao aprendizado, a aquisição de técnica, o serviço à pátria, o serviço abnegado e a caridade; a vocação feminina por ressaltarem qualidades ditas inatas ao sexo feminino como a paciência, a dedicação e o dom maternal; ou unicamente a vocação profissional por apontarem a inclinação ao aprendizado e ao domínio do conhecimento técnico científico.

Para compreender esses sentidos vocacionais, podemos tomar como referência a categorização proposta por Max Weber [2]. Segundo o sociólogo, o conceito de vocação tem sentidos múltiplos, que envolvem o sagrado como o responsável pelo movimento impulsionador (“chamamento interior”) e a ação transformadora do ser humano, movida pela racionalização e pelo exercício do individualismo. Nesses termos, o ethos vocacional envolve aspectos religiosos, morais e profissionais, os quais podemos considerar fundamentais para conferir à enfermagem os aspectos de contenção e de decoro percebidos como essenciais para que as mulheres se lancem nessa profissão, adquirindo aval da sociedade e da família. O enquadramento religioso e o imperativo cívico e patriótico também presentes mostram-se imprescindíveis tanto para a disseminação da relevância da enfermagem na sociedade quanto para o entendimento de que esta carreira é uma profissão edificante às mulheres.

Mas nem todas as mulheres mencionaram o sentimento vocacional para explicar a procura pelo curso de enfermagem. A partir da fala daquelas que destoam desse discurso habitual é possível demonstrar o limite do modelo fundamentado na vocação e ampliar nossas considerações sobre o papel da formação profissional  na  vida  dessas  mulheres. [3] Basicamente, dois grandes anseios devem ser destacados: a emancipação e a mudança da situação econômica familiar. Ou seja, a ruptura com os padrões culturais relativos ao gênero feminino e a mobilidade socioeconômica estão no horizonte.

De forma explícita, uma aluna descreve sua inquietação em começar o curso: “sou professora normalista, mas nunca lecionei, pois, a vida do interior do Nordeste aterra-me! E pretendo ir para o Sul.” [4] Outra relata: “já estou um pouco na prática de enfermagem. Tomo conta de uma enfermaria de homens, portanto este é um meio de ter um diploma e ajudar meus pais na velhice” .[5] Estudar enfermagem, para essas mulheres, era, então, uma forma de lutar pela autonomia, por seus projetos pessoais. Para elas, ingressar na Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac significava dar o primeiro passo em direção à independência, simbolizada pela saída da casa dos pais e da cidade natal e, em um segundo momento, iniciar uma carreira e aliar ganho monetário e status de profissional diplomada.

As atividades femininas fora do âmbito doméstico se iniciaram muito antes do século XX. No Brasil, as mulheres pobres exerciam inúmeras atividades remuneradas tanto no campo como na cidade. A novidade disseminada em fins do século XIX e XX é a relação entre a escolarização/profissionalização feminina e o ganho monetário, possibilidade aberta também às mulheres das camadas mais populares por meio do magistério e da enfermagem.

As diferentes formas de expressar a motivação para o ingresso no curso de enfermagem são contemporâneas e representam a diversidade de ideias articuladas ao estudo e à profissionalização em enfermagem. Essa abordagem nos permite obter indícios para a reconstrução das experiências concretas dessas mulheres como sujeitos de sua própria história e para a percepção de intercessões entre a enfermagem e os projetos pessoais. O curso de enfermagem é retratado pelas alunas como um caminho de diversas possibilidades pelo qual elas podem negar o “destino” de gênero. Em aproximação com os estudos de Michelle Perrot, podemos enfatizar a centralidade da profissionalização do trabalho social, nesse caso a enfermagem, para que as mulheres comecem a expor seus projetos e interesses pessoais e a serem reconhecidas enquanto agentes no processo da assistência profissional. Portanto, utilizando as categorias produzidas por Michelle Perrot [6], podemos afirmar que o curso de enfermagem foi para as alunas da Escola a oportunidade de “sair fisicamente” ao deixarem a casa dos pais e morarem longe dos estados onde nasceram, e também o “sair moralmente” dos papéis que lhes são atribuídos, passando da submissão para a independência.

Notas

[1] Em duzentas e setenta e nove fichas de admissão, de um total de quatrocentos e oito, a vocação é citada como o principio impulsionador ao estudo da enfermagem.

[2] WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993.

[3] Ao todo 28 mulheres, em um universo de 408.

[4]BARROS, Edineide Galvão. Dossiê das Alunas da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac. Ficha de Inscrição, 1955. Arquivo Histórico da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac.

[5]FERRARI, Solange Benedita. Dossiê das Alunas da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac. Ficha de Inscrição,1952. Arquivo Histórico da Escola de Enfermeiras Luiza de Marillac.

[6] PERROT, Michelle. “Sair”. In: PERROT, Michelle; DUBY, Georges (orgs). História das Mulheres no Ocidente. Lisboa: Edições afrontamentos. 1994, v.4, pp.503-540.

Bibliografia

BALDWIN, Douglas. Discipline, obedience and female support groups: Mona Wilson at the Johns Hopkins Hospital School  of  Nursing, 1915-1918. Bulletin of History of Medicine, Baltimore, v.69, n.4, 1995, pp. 599-619.

NELSON, Sioban. Say Little, Do Much. Nursing, Nuns, and Hospital in the Nineteenth Century. Philadelphia: University of Pennsylvania, 2001.

PERROT, Michelle. “Sair”. In: PERROT, Michelle; DUBY, Georges (orgs). História das Mulheres no Ocidente. Lisboa: Edições afrontamentos. 1994, v.4, pp.503-540.

WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1993.

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