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A formação do Espiritismo

A formação do Espiritismo 4

Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), mais conhecido como Allan Kardec. Biblioteca Digital Gallica, Id: btv1b8529781h

Em 18 de abril de 1857, O Livro dos Espíritos chegava às livrarias francesas. O conteúdo era exatamente o que o título prometia: em forma de perguntas e respostas, uma constelação de personalidades históricas já falecidas, entre filósofos gregos, santos católicos e até um estadista americano, dissertavam sobre os mais variados temas. Dos atributos de Deus aos elementos gerais do universo, passando por questões sociais como a desigualdade de riquezas, a escravidão e a igualdade entre os sexos, ou debates teológicos sobre a justiça divina e o sentido da vida humana na Terra, havia de tudo um pouco. Assinando a obra, um certo Allan Kardec — pseudônimo do pedagogo Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), que assim fundava, oficialmente, uma nova doutrina batizada de Espiritismo.

Hoje quase extinto na França, o Espiritismo é tido como a terceira maior confissão religiosa do Brasil, segundo o Censo do IBGE de 2010. Neste brevíssimo exame de seu surgimento, veremos algumas das influências que recebeu e a abordagem essencialmente racionalista que seu fundador lhe deu.

Ciências do invisível

A ideia de que os mortos podem se comunicar com os vivos é muito antiga. Da poesia épica de Homero ao Antigo Testamento, para citar só dois exemplos, a arte e a religião pululam de relatos que excitaram a imaginação e a fé de multidões. No entanto, no século XVIII europeu, podemos identificar dois fenômenos culturais que viriam a influenciar diretamente o modo como essa crença se expressaria no Espiritismo. O primeiro foi o swedenborguianismo; o segundo, o mesmerismo.

Emanuel Swedenborg (1688-1772) foi um polímata sueco, fundador da primeira revista científica do país e um dos mais notáveis intelectos de seu tempo. Da física à mineração, passando pela teologia e a metalurgia, tinha um bom trânsito entre a elite do seu país e de outras nações europeias. Mas foi por volta de 1744, quando contava mais de 50 anos, que sua vida deu uma guinada. Sonhos proféticos e visões extraordinárias, incluindo pelo menos um episódio documentado de clarividência atestada por terceiros, tornaram-se o foco de sua vida intelectual. A partir daí, Swedenborg se dedicou a registrar suas “descobertas” espirituais, que incluíam diálogos com seres celestes, descrições detalhadas da vida no Além — que consistia numa sociedade completa, com costumes e normas próprias — e uma reinterpretação radical da fé cristã. Segundo ele próprio, tais revelações não eram casuais, mas fruto de uma missão divina de renovação do Cristianismo. Não por acaso, após sua morte, seus seguidores se organizaram em uma denominação chamada Nova Igreja, que continuou divulgando a obra do mestre e, com ela, a firme crença de que a vida no além-túmulo não era mais o mistério que um dia fora.

Já o médico austríaco Franz Anton Mesmer (1734-1815) também atuaria no campo do invisível, mas num sentido bastante diferente. Na década de 1770, Mesmer ganhou fama graças à sua teoria do magnetismo animal: a de que o estado de saúde de um indivíduo dependia da circulação de um fluido invisível, que podia ser manipulado com fins medicinais por um operador treinado. Numa época em que predominava a chamada medicina heroica — marcada por tratamentos agressivos e pouco eficazes, como sangrias e purgativos —, o método de Mesmer, baseado em passes e outras técnicas indolores, parecia uma opção bem menos assustadora. As alegações espetaculares do bom doutor, de que obteria sucesso onde os tratamentos tradicionais fracassavam, também ajudavam.

A levitação da mesa, Roma, 1893. Publicado no livro “A externalização das habilidades motoras: uma coleção de experiências e observações”, de Albert de Rochas (1906). Fonte: Gallica, Id: bpt6k204162m.

O empenho de Mesmer não foi suficiente para as academias de ciência da época, que o denunciaram como um charlatão. Mas, apesar disso, suas ideias fizeram escola, dando origem a um novo tipo de terapeutas, os magnetizadores. Originalmente voltados para o tratamento de doenças físicas, logo alguns deles descobriram outras aplicações para sua arte, como a indução ao sonambulismo. Este consistia num estado alterado de consciência, em que o paciente demonstrava capacidades extraordinárias, como a de diagnosticar doenças em si mesmo e em terceiros, prescrever tratamentos e outros tipos de informação inacessíveis em condições normais. Esses sonâmbulos seriam objeto de alguns dos primeiros estudos sistemáticos sobre o que hoje chamaríamos de pesquisa paranormal, como o relato de Justinus Kerner sobre a “vidente de Prevorst”, Frederica Hauffe, em 1830, e os experimentos de Louis Alphonse Cahagnet com comunicação com espíritos ainda em 1846.   

Portanto, pode-se dizer que as ideias espíritas não surgem em um vácuo. Videntes, curas por meios heterodoxos, e até a comunicação com os mortos não eram uma completa novidade na Europa do século XIX. Porém, não havia ainda um movimento de massa organizado em torno de=a crença em tais fenômenos, que oferecesse uma visão de mundo articulada a partir deles. O impulso para isto veio da outra margem do Atlântico.

O Espiritualismo Moderno

Em março de 1848, no vilarejo americano de Hydesville, Nova York, as jovens Catherine e Margaretta Fox chamaram a atenção ao entabularem uma conversação com o suposto espírito de um morto. Em resposta a sons inexplicáveis que vinham incomodando a família — descritos como rappings, ou pancadas —, elas interrogaram em voz alta o seu autor, fazendo perguntas simples que podiam ser respondidas com certo número de sons. Logo os vizinhos foram chamados e, ao longo de dias, a casa da família Fox atraiu uma multidão de curiosos. O código usado para falar com o “fantasma” evoluiu a ponto de permitir maiores informações, e a história que emergiu foi de que as pancadas eram causadas pelo espírito de um caixeiro-viajante, assassinado por um casal que morara na casa antes dos Fox. Houve até buscas pelo corpo, supostamente escondido no porão, mas sem sucesso, e logo as meninas foram mandadas para a casa de parentes. Porém, os fenômenos pareciam segui-las aonde quer que fossem e, depois que elas fizeram uma demonstração pública das pancadas em Rochester, uma cidade maior, sua fama começou a se espalhar pelo resto do país.

O que poderia ter sido um mero “causo de assombração” tornou-se uma febre, à medida que outras pessoas se aventuravam também a tentar a comunicação com os mortos. Logo livros, periódicos e novas apresentações públicas — frequentemente pagas — tanto das Irmãs Fox quanto de novos médiuns ajudaram a constituir um movimento popular, que o jornalista Horace Greeley viria a batizar quatro anos depois como Espiritualismo Moderno.  

Salão parisiense com pessoas praticando três variações das mesas girantes com um anel, uma mesa e um chapéu. Fonte: “L’Illustration”, Histoire de la semaine, 14 de maio de 1853.

Reunidos principalmente em casas de família, em grupos chamados “círculos espirituais”, os investigadores espiritualistas — era assim que muitos se chamavam — diziam estar desmistificando o mistério supremo. O “sobrenatural” não passava de um aspecto até então desconhecido da natureza, e o estudo das manifestações dos espíritos nada tinha de lúgubre. Tais demonstrações, sendo empíricas, convidavam ao exame científico e, se provadas, representariam uma revolução gigantesca na cultura humana. E matéria-prima para estudos não faltava, já que o repertório de fenômenos físicos alardeados pelos espiritualistas foi muito além das pancadas: instrumentos musicais tocados por seres invisíveis, objetos que flutuavam, móveis pesados que se moviam de forma impossível à vista de todos…

Naturalmente, havia também as mensagens —  na maioria das vezes, de um ente querido falecido oferecendo consolo e palavras afetuosas, mas eventualmente também uma celebridade nacional, como Benjamin Franklin e George Washington, falando sobre temas de interesse geral. Índios e escravos, com seus maneirismos típicos, também eram presenças comuns nas séances (ou “sessões”, como as reuniões mediúnicas ficaram conhecidas em inglês).

Foi por volta de 1853 que essa onda chegou à Europa, especificamente à Grã-Bretanha e à França. Particularmente chamativa foi a técnica das mesas girantes, em que os assistentes se sentavam em torno de uma mesa, com as mãos ou os dedos sobre sua borda, e o móvel começava a oscilar, rodopiar ou até flutuar. A prática se tornou popular a ponto de ser considerada um divertimento de salão, e atraiu tanto a curiosidade como a galhofa. Mas foi justamente essa estranha moda que, em 1855, atraiu o interesse do Sr. Rivail, o futuro Allan Kardec, que desconfiou haver ali mais do que um mero espetáculo.

Uma nova doutrina

Quando Rivail se deparou com o fenômeno das mesas, já havia na França grupos espiritualistas invocando os espíritos com regularidade. Cético a princípio, ele ficou intrigado com o tipo de mensagem que alguns desses grupos obtinham. Logo ele mesmo começou a frequentar assiduamente alguns desses “círculos”, em particular o da família Baudin, cujas médiuns eram as duas filhas, Caroline e Pélagie. A técnica usada para a obtenção de mensagens era a psicografia, primeiro pela chamada “cesta de bico”  e depois na forma como é conhecida hoje, pela mão das próprias médiuns.

Mais tarde, Rivail frequentaria também o grupo do Sr. Roustan, cuja médium, a Srta. Japhet, ajudaria no trabalho de revisão das informações coletadas. Em suas Obras Póstumas, Rivail descreve a forma como conduzia seu estudo do que diziam os espíritos: “Tentei lá obter a resolução dos problemas que me interessavam, do ponto de vista da Filosofia, da Psicologia e da natureza do mundo invisível”, e “[l]evava para cada sessão uma série de questões preparadas e metodicamente dispostas”.

Ele comparava as respostas, verificava se havia inconsistências, fazia as mesmas perguntas a outros médiuns sem contato entre si, e assim foi percebendo “que aquilo constituía um todo e ganhava as proporções de uma doutrina”. Teve então a ideia de publicar seus achados no que viria a ser O Livro dos Espíritos, que, das 501 perguntas da primeira edição de 1857, chegaria a 1019 na segunda, de 1860.[1]

Capa do jornal “Progresso Espírita”, fundado por Allan Kardec e órgão da Federação Espírita Universal. 20/05/1898. Fonte: Gallica, Id: bpt6k5847697k.

A preocupação com o método era fundamental para Rivail, agora Kardec.[2] Os espíritos, dizia, eram tão-somente seres humanos fora do corpo físico (desencarnados), com suas individualidades e limitações. Nem todos eram informantes confiáveis, e o pesquisador espírita, tal qual um historiador ou detetive, tinha que levar isso em consideração ao interrogá-los. Dessa forma, o Espiritismo era uma espécie de ciência humana, usando os depoimentos disponíveis para desvendar, como num quebra-cabeças, o funcionamento do mundo dos espíritos. Essa reivindicação de um caráter racional e científico para a pesquisa espírita, que focava no conteúdo das mensagens espirituais em vez de nos fenômenos físicos que tanto encantavam os espiritualistas de língua inglesa, seria a tônica de toda a obra kardequiana, que incluiu, além dos livros que formariam o cânone do Espiritismo, também um periódico mensal, a Revista Espírita.     

Apesar desse objetivo ambicioso de levar as ferramentas da ciência para um campo que até então era largamente a província da fé e da teologia, o Espiritismo de Allan Kardec acabou se firmando mesmo como um movimento religioso, particularmente no Brasil, onde acabaria ganhando características particulares. Mas tal qual sua contraparte anglo-americana, ele acabaria tendo uma influência para além dos adeptos propriamente ditos, inspirando novelas, filmes, best-sellers — tornando-se, afinal, parte da cultura popular contemporânea.

Referências Bibliográficas

DOYLE, Arthur Conan. História do Espiritualismo. Brasília: FEB, 2013.

KARDEC, Allan. Obras Póstumas. Brasília: FEB, 2019.

MONROE, John Warne. Laboratories of Faith: Mesmerism, Spiritism, and Occultism in Modern France. Cornell University Press, 2007.

WEISBERG, Barbara. Falando com os Mortos: As Irmãs Americanas e o Surgimento do Espiritismo. Agir, 2013.

Como citar este artigo

SOUSA, Rodrigo Farias de. A formação do Espiritismo (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-formacao-do-espiritismo/ ISSN: 2674-5917. Publicado em 20 de dez. 2021.

Notas

[1] Cf. “Minha primeira iniciação no Espiritismo”, na Segunda Parte de KARDEC, 2019.

[2] A opção pelo uso de um pseudônimo vinha do fato de que Rivail não queria misturar sua reputação de pedagogo com a de inovador religioso — embora sua real identidade não fosse realmente um segredo. Quanto à escolha específica do nome “Allan Kardec”, ela se deveria à revelação, por um espírito, de que esse teria sido o nome de Rivail numa encarnação anterior, entre os antigos druidas.  

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