Em pleno 2024 é impossível não nos perguntarmos o que ainda não vimos sobre guerras e conflitos e que ainda precisaria ser filmado, fotografado ou gravado ao redor do globo. Nesse exato momento temos duas grandes guerras que ocupam diariamente os noticiários e vários outros conflitos, alguns que se estendem há bastante tempo, sem nenhuma ou pouca atenção da grande mídia. No quesito Guerra, ainda não há de faltar assunto bem longe da ficção.
Mais recentemente tivemos “Nada De Novo No Front” (2022) e “Napoleão” (2023), fora os documentários, séries e podcasts de maior ou menor relevância sobre conflitos históricos e contemporâneos e seus participantes. O assunto, sempre atual, é quase uma unanimidade no interesse humano, e isso se espelha muito na produção audiovisual. Somos “bombardeados” quase que diariamente com o tema que mexe com os medos e com os brios de toda a humanidade.
O diretor e roteirista Alex Garland, mais conhecido pelos seus filmes autorais “Ex Machina” (2014) e “Men” (2022), resolveu arriscar a sua visão sobre o tema, de um ponto de vista não tão comum – o dos jornalistas de guerra. Em um futuro não muito distante os conflitos gerados por uma “polarização política” – bem entre aspas mesmo para usar o termo em voga apesar de pessoalmente não concordar com a dicotomia – são levados as vias de fato e os EUA passam pela segunda guerra civil de sua história. Dessa vez sem mosquetes e espadas, mas com armamentos pesados e tecnológicos a duração das batalhas é bem menor. É a guerra moderna – apesar de não atômica.
No pandemônio em que o país rapidamente se afunda, a jornalista Lee – nomeada em homenagem ao ícone Lee Miller, a primeira jornalista fotográfica a entrar no bunker de Hitler após a derrota do Terceiro Reich – é interpretada pela sensacional Kirsten Dunst. Ela é uma veterana do ramo da fotografia de guerra que atua diretamente na linha de frente. Com ela estão Joel, interpretado pelo ator e diretor brasileiro Wagner Moura, um suposto enviado da Reuters, a jornalista iniciante Jessie, papel de Cailee Spaeny, e um dos únicos remanescentes do que um dia foi o jornalismo do New York Times – Sammy, incorporado pelo experiente ator Stephen McKinley Henderson.
Os quatro iniciam uma longa jornada de NYC até Washington D.C., cidade-palco da batalha derradeira entre rebeldes e governo. Nessa roadtrip sem garantia de retorno, permeada por cidades abandonadas, covas rasas, explosões, milicias e saqueadores, o grupo se depara com as dificuldades de um mundo pós-apocalíptico. Garland escreveu também o roteiro de “28 Days Later” (2002) do diretor Danny Boyle. Um dos filmes precursores da febre Zombie moderna que atingiu seu auge com a série “The Walking Dead” (2010-2022), portanto qualquer semelhança aqui, não é coincidência. A terra arrasada deixada pela guerra também tem suas comunidades alienadas como ilhas de negacionismo em meio ao mar de destruição.
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Também não temos como ignorar as (nem tão) discretas homenagens do diretor a vários clássicos de guerra como “Apocalipse Now” (1979), “Full Metal Jacket” (1987) ou “Platoon” (1986). Em uma cena de pouso de helicópteros eu quase escutei a “Cavalgada das Valquírias” de fundo musical. Em outros momentos o uso frequente da câmera lenta para corpos peneirados por balas também me remeteu diretamente aos filmes sobre a guerra do Vietnam dos anos 80. Porém, de uma forma geral o foco da cenografia e da dramatização realça o olhar fotográfico através da utilização de uma série de stills, muitos em p&b, de momentos chave dos conflitos captados pelas câmeras dos jornalistas. São as imagens que entram para a história pela lente do profissional – a documentação visual pelas mãos de um fotógrafo de guerra.
Guerra Civil é um filme feito no estilo inconfundível da produtora A24. Nele nós não vemos romantização da luta, não vemos um excesso de páthos dos personagens. Não é delineado o roteiro de uma luta do bem contra o mal com uma dicotomia previsível e irreal. Aqui, de pomposo, temos apenas a trilha sonora e a magnífica sonoplastia, que nos fazem quase pular nos assentos do cinema. A edição é propositalmente contrastada e muitas vezes nos parece brusca, especialmente naqueles takes onde o diretor acentua os paradoxos de um conflito sangrento – enquanto uns morrem sob bombas e chuvas de granadas e balas, outros precisam manter o que resta da rotina e do atendimento das necessidades básicas. De um lado temos destruição e do outro crianças que brincam enquanto a vida segue seu rumo.
A incrível capacidade do ser humana de se adaptar às situações mais extremas é evidente. A guerra não acaba totalmente com o riso e com a apreciação de pequenos momentos. Vemos os jornalistas bebendo e confraternizando numa noite e logo correr risco de vida na batalha no dia seguinte. O que mudou desde os mais antigos conflitos humanos? A tecnologia das armas? A rapidez da chegada de informação? Um irrigador molha gramados em um subúrbio que mais parece um universo paralelo, ou como diz Jessie no filme: “como num episódio de “Twilight Zone”. No mesmo momento Joe, perplexo, pergunta: “Vocês perceberam que está ocorrendo uma guerra civil?” Ao que a vendedora de uma loja do lugarejo responde: “Sim, mas escolhemos não participar.” Ela reage como se a guerra fosse apenas uma decisão política banal que nunca os afetaria diretamente. Mais uma vez aqui, não é por acaso. Todos conhecemos pessoas com esse tipo de comportamento no mundo real. A banalização da violência, o culto do indivíduo acima do coletivo enquanto esse se encontrar seguro em comunidades vigiadas. Mas Guerra Civil não vive somente de hard facts. Somos guiados pelas mãos do diretor que nos faz ver um pouco de poesia no terror e desolação. Em especial isso fica claro na cena em que uma floresta em chamas nos remete a uma paisagem onírica sublinhada por uma deliciosa, apesar de melancólica, trilha sonora.
Em seu microcosmo o filme aborda o tema da compartimentalização necessária para se manter minimamente a saúde mental como um fotojornalista atuante na linha de frente de conflitos sangrentos. Também coloca em pauta o acordo moral da profissão de apenas documentar os acontecimentos sem intervir pessoalmente. Como diz Lee em um determinado momento: “Nós não fazemos as perguntas, nós registramos os fatos para que as pessoas levantem os questionamentos”. Lee está cansada e, apesar de endurecida pelos longos anos de profissão, ela trava uma luta diária com as imagens terríveis gravadas em sua mente. Já Jessie é puro entusiasmo e adrenalina, pelo menos até sua resistência e coragem serem colocadas à prova. Em boa parte de sua duração Guerra Civil é como um portifólio de um jornalista de guerra. A obra trata dos medos, mas também da euforia gerada pela relevância da profissão e da caça à foto perfeita, aquela que pode consagrar o fotógrafo.
Apesar de afirmar não tentar assumir posições políticas definidas o filme deixa bem claro a sua crítica ao trumpismo nas entrelinhas, e, por vezes, podemos perceber até mesmo nos diálogos quais são as “afinidades” do dito presidente americano no poder, um papel assumido pelo ator e comediante Nick Offerman. Em certo momento ele é comparado com Gaddafi e Mussolini, o que delimita bem claramente as fronteiras de um sistema totalitário. Além disso, uma das cenas mais fortes, que expressa a xenofobia e o discurso que conhecemos dos extremismos atuais, é protagonizada de forma breve, porém brilhante, por Jesse Plemons (marido de Dunst) no papel de um soldado.
O filme entra em cartaz num ano de eleições presidenciais estadunidenses onde Trump volta a ser candidato. E, de novo, não acredito ser coincidência. Claramente estamos sempre a um passo de tornarmos a ficção realidade. Guerra Civil é filme necessário – apesar de mais para os norte-americanos do que para nós brasileiros – intrigante e muito bem realizado que faz a visita à sala de cinema valer cada centavo.